Frestas e sombras no Censo Religioso do IBGE.
Roberto Malvezzi (Gogó)
Alguns pontos:
1. Transição religiosa: o que os números indicam não é apenas o abandono de um Igreja Cristã por outra, ou a saída do catolicismo para o protestantismo neopentecostal, mas uma verdadeira transição religiosa: crescem os evangélicos percentualmente, mas não na proporção esperada e agora representam (26,9%) da população brasileira; diminuem os católicos, mas não na proporção esperada (56,7%); crescem os adeptos do candomblé (1%)); diminuem os espíritas (1,8)); crescem os sem religião (9,4%). Se olharmos com mais cuidado para os números, vamos perceber que a transição religiosa é ampla e aponta caminhos futuros, talvez como o que aconteceu na Europa. Primeiro a transição do catolicismo para o protestantismo. Agora, o esvaziamento tanto do catolicismo como do protestantismo para os indiferentes às religiões, o que não significa ateísmo.
2. Os empobrecidos nas igrejas: criou-se o mito que os empobrecidos e pretos estavam todos indo para o neopentecostalismo protestante. Entretanto, os números questionam esse mito. A região mais católica do Brasil é o Nordeste (63,9%). O estado mais católico do Brasil é o Piauí (77,43%). Entretanto, o Piauí é o 25º estado no ranking do PIB brasileiro. Mesmo no Norte, a região mais evangélica do Brasil, a maioria continua católica, ainda que estejamos falando de um catolicismo nominal. Mas, também há hoje os evangélicos nominais, que não frequentam nenhuma igreja. O IBGE não capta essa nuance. Mas, muitos pastores críticos das posturas neopentecostais, hoje falam no crescimento dos “desigrejados”, isto é, pessoas que se identificam como evangélicas, mas não estão em nenhuma Igreja.
3. O que explica o Nordeste: a região tem lastro na piedade popular, em figuras como Ibiapina, Pe. Cícero, Frei Damião, Ir. Dulce, Dom Hélder Câmara, Canudos, Caldeirão, Pau-de-Colher e tantos outros e outras que deitaram raízes no meio do povo. A piedade popular é devota, acolhedora, servidora, sabe colocar Deus e as pessoas na mira do Evangelho. Além do mais, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) continuam enraizadas, e elas tem uma fé mais adulta, mais madura, que não se permite qualquer tipo de ilusão ou proselitismo religioso.
4. As periferias das grandes cidades: aí é que os evangélicos penetraram com mais fecundidade, já que a Igreja Católica sempre teve dificuldade com essa transição do rural para o urbano. As CEBs foram durante muito tempo a “base” do catolicismo nas periferias. Entretanto, a vontade da cúpula eclesial de desmantelar as CEBs – até nos documentos oficiais da Igreja o termo desapareceu por razões claras -, o vazio deixado por elas tornou a Igreja quase que ausente das periferias.
5. Movimentos midiáticos de massa: fica claro também que esses movimentos midiáticos de massa não alteram a qualidade e a quantidade de pessoas fiéis às Igrejas. É a presença real, o trabalho miúdo, que pode ser reforçado pelo uso de mídias, que gera discípulos e seguidores. Vale aqui registrar o velho debate: “devoções geram devotos, mas só o seguimento gera discípulos”. O desafio de um conteúdo mais maduro na fé, principalmente entre os católicos, é o que pode desacelerar o esvaziamento da Igreja Católica.
6. Perspectivas católicas: não há mágica, tudo depende do trabalho a ser feito. A Igreja Católica, se não quiser continuar sangrando, terá que recuperar o espírito das CEBs, terá que cultivar suas lideranças, enraizar a formação bíblica e catequética, terá que cultivar a essência das CEBs que é a união evangélica de “fé e vida”. Terá que rever os ministérios, inclusive na linha do Sínodo para Amazônia, que solicitou a ordenação de homens casados para o sacerdócio e diaconato para as mulheres que lideram as comunidades. A estrutura pesada da Igreja Católica, ao estilo do exército romano, não tem mobilidade para acompanhar a transição religiosa. A figura do Papa Francisco também trouxe muita gente de volta à Igreja, por sua postura acolhedora, misericordiosa, justa e proponente da fraternidade universal e o esforço por uma ecologia integral.
7. Perspectivas evangélicas: minha convicção é que – baseada na opinião de vários pastores e pastoras que acompanho -, a mercantilização da fé, a busca frenética por dinheiro, por fama, por sucesso, às custas do suor do povo simples das periferias urbanas, está descaracterizando a proposta original dos evangélicos. Por isso, o grande número de desigrejados. Então, esse arrefecimento da expansão evangélica pode se tornar até uma regressão, pela percepção que o próprio povo tem da vulgaridade de algumas dessas lideranças.
8. Enfim: o cenário futuro é incerto. Essa transição religiosa deve ser longa, até se estabilizar e acabarmos com esse proselitismo religioso e mercantil que domina a sociedade brasileira em nossos dias.
9. Meu único medo: meu único medo é que, essa base social que está transitando religiosamente, continue sendo e expandindo a base ideológica da “extrema direita brasileira no meio dos empobrecidos”. Há aí também os grupos católicos ultraconservadores, mas eles tendem a ser predominantemente da classe média e extratos de cima da sociedade.
O retrocesso conservador da Igreja Católica que desmantelou as CEBs e as Pastorais Sociais deixou nas periferias das grandes cidades e nos lugares remotos do Brasil um vazio religioso rapidamente ocupado pelo pentecostalismo autônomo das "igrejas de garagem" que hoje reúne um terço do segmento religioso censado como "evangélico". Veja interessante indicação na matéria abaixo👇
Igrejas evangélicas de garagem proliferam nas periferias
O número de brasileiros que se declaram evangélicos, mas sem vínculos com igrejas tradicionais, cresceu de forma vertiginosa nos últimos anos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, entre 2010 e 2020, esse grupo teve um aumento de 466%.
O fenômeno se concentra, especialmente, nas periferias urbanas e está relacionado à proliferação de igrejas autônomas fundadas por iniciativa individual, muitas vezes sem qualquer ligação com instituições religiosas consolidadas.
Conhecidas popularmente como “igrejas de garagem”, essas congregações geralmente surgem a partir da ação de moradores locais, frequentemente com experiência anterior como pastores ou líderes religiosos. Quando insatisfeitos com suas igrejas de origem, eles assumem uma posição dissidente e fundam suas próprias instituições, muitas vezes no quintal de casa ou em espaços improvisados.
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O crescimento da parcela de brasileiros que se declaram evangélicos perdeu força pela primeira vez desde 1960, revelam os resultados preliminares sobre religiões do Censo 2022, divulgados nesta sexta-feira (6/6) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Conforme o IBGE, 26,9% dos brasileiros ou 47,4 milhões se declaravam evangélicos em 2022, ante 21,7% em 2010.
O avanço é de 5,2 pontos percentuais (p.p.), abaixo da alta de 6,5 pontos registrada entre os censos de 2000 e 2010 e primeira desaceleração na tendência de crescimento em 62 anos.
A parcela de católicos recuou de 65% em 2010 para 56,7% em 2022, somando 100,2 milhões e dando continuidade à tendência de perda de força da religião no país que, neste Censo, mostra a maior diversidade religiosa de sua história.
Até a década de 1970, mais de 90% dos brasileiros se declaravam católicos.
No vídeo explicamos como cada religião cresceu no Brasil desde o último censo. A reportagem completa está no https://www.bbc.com/portuguese/articles/crk2p5xr0m7o
Censo 2022: católicos seguem em queda; evangélicos e sem religião crescem no país
'Excesso de política nas igrejas tem gerado desgaste entre evangélicos. As pessoas não se reconhecem mais nas lideranças'
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