Quem Te Viu, Quem Te Vê - Chico Buarque ‧ 1967
Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala
Você era a favorita onde eu era mestre-sala
Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua
Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua
Hoje o samba saiu procurando você
Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece não pode reconhecer
Quando o samba começava, você era a mais brilhante
E se a gente se cansava, você só seguia adiante
Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado
Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado
Hoje o samba saiu procurando você
Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece não pode reconhecer
Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe
De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse
Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia
Hoje o samba saiu procurando você
Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece não pode reconhecer
Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria
Quero que você assista na mais fina companhia
Se você sentir saudade, por favor não dê na vista
Bate palmas com vontade, faz de conta que é turista
Hoje o samba saiu procurando você
Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece não pode reconhecer
AO MEU PROFESSOR CLODOVIS BOFF
Celso Pinto Carias, “mendigo de Deus”.
Caro professor.
Suas aulas e textos eram para mim a reflexão de um dos mais profundos teólogos que tive a honra de conhecer pessoalmente. Além da grande admiração por alguém que unia teoria e prática, que dava testemunho do que falava e escrevia.
Porém, agora fico me perguntado para onde foi este teólogo? Não escrevo para fazer contestação, mas para tentar encontrar este Clodovis que conheci.
Minha impressão, usando um ditado popular, é que você “está jogando a água é bebê fora”.
Não há dúvida que um intelectual profundo como você pode ir reformulando a própria reflexão ao longo tempo. Não me surpreende a revisão que você tem feito. Em certa medida, você sabe, até concordo que a TdL não aprofundou a relação da teologia com vida existencial do povo, não aprofundou, suficientemente, a dimensão subjetiva e simbólica.
Hoje mesmo (22/06), na pequena comunidade que participo, uma senhora que nunca tínhamos visto participou da Celebração da Palavra conosco. Na partilha ela disse que passou em frente e procurou saber o horário da celebração. Cremos que, como foi bem acolhida, abriu o coração. Disse que estava ali, na igreja, depois de três anos. Perdeu um filho assassinado, envolvido com drogas. Sentia-se culpada. Ora, o que poderíamos oferecer a ela? Falar da injustiça que o sistema impõe aos pobres? Dizer que há um processo de exclusão que estimula a aparofobia e segrega, sobretudo os negros? A comunidade simplesmente a acolheu e buscou afirmar que a vida dela tem valor e que vale a pena ela continuar. Parece que ela gostou.
Porém, sabemos bem, que isso não significa que possamos afirmar que o compromisso com os pobres seja um mero detalhe da Boa Nova de Jesus Cristo. Que o Reino de Deus não seja o centro da missão de Jesus de Nazar Também não dá para ficar no dualismo platônico entre alma e corpo, não reconhecendo a salvação como um processo integral até a plenitude.
Mas não tenho condições de fazer esta reflexão neste texto. O que me surpreende é a situação na qual você envolveu a sua crítica. Meu irmão, muitos dos que estão em sua volta hoje, utilizando-se do seu posicionamento, tem promovido mentiras e discurso de ódio. Alguns até suspeitos de estarem promovendo golpe de estado. Promovendo a divisão na Igreja de forma desonesta. Nosso Papa Francisco sofreu muito com eles.
Seria tão bom se pudéssemos bater um longo papo ao redor de uma mesa, com fraternidade, serenidade e acolhimento, para compreender tudo isso melhor. Fico imaginando uma conversa entre você e seu irmão Leonardo, que tanto te ama, e eu assistindo e dando um “pitaco” ou outro para provocar o aprofundamento.
Não sei se chegará a ler este pequeno texto, mas seria tão bom, sem querer ultrapassar o mestre, se a conversa não fosse pelo caminho escolhido por você, isto é, a aliança com setores eclesiais que nos odeiam, que rejeitam o Concílio Vaticano II. Não seria melhor uma conversa, pelo menos inicial, com pessoas que eram muito próximas a você?
Meu professor, se esta carta chegar a você, receba o meu abraço fraterno.
Um Cristo sem Jesus e sem os apelos do Reino: análise de um livro. Artigo de Faustino Teixeira
O objetivo desta minha reflexão é delinear alguns tópicos que estão presentes no recente livro de Clodovis Boff: A crise da Igreja católica e a teologia da libertação [1]. O livro recolhe dois textos anteriores de Clodovis Boff, publicados na Revista Eclesiástica Brasileira (REB) nos anos de 2007 e 2008. O primeiro texto foi publicado depois da Conferência de Aparecida (2007), com grande repercussão na ocasião, com reações publicadas também na REB, com artigos de teólogos como Leonardo Boff, Luis Carlos Susin, Francisco de Aquino Junior, José Comblín e João Batista Libânio [2]. A controvérsia já tinha de certa forma se iniciado por ocasião de uma conferência de Clodovis no encontro da SOTER, no ano 2000, onde abordou o tema: “Retorno à arché da teologia”. O texto veio publicado no livro organizado por Luiz Carlos Susin, A sarça ardente [3]. Além dos dois textos citados, o livro vem acrescido de um artigo inédito de Clodovis Boff e duas entrevistas concedidas por ele na Folha de São Paulo e na Adital [4]. A apresentação do livro foi feita por Leonardo Razera, também organizador da obra.
O incentivo à minha reação ocorreu também em razão de uma live com participação de Clodovis Boff, onde ele pôde apresentar o conteúdo essencial de seu novo livro. Isso ocorreu no dia 14 de junho de 2023, promovido pela diocese de Barra do Piraí e Volta Redonda, com o título: Diálogos fraternos sobre a unidade cristã. Educação e a Casa Comum [5].
Eu tive o privilégio de ter sido aluno de Clodovis Boff durante o meu mestrado no Rio de Janeiro, entre 1978 e 1982. Pude acompanhar várias disciplinas ministradas por Clodovis, entre elas uma que abordou o tema de sua tese doutoral, recém defendida na Universidade de Lovaina na Bélgica. A tese veio publicada em livro no ano de 1978 [6]. Na ocasião, pudemos trabalhar cuidadosamente com ele todas as argumentações a respeito do método da Teologia da Libertação (TdL). Além das aulas, lembro-me que fizemos também um grupo de estudos sobre o livro, com participação de Inácio Neutzling, que era igualmente aluno do mestrado em teologia.
Leia o artigo completo AQUI
Clodovis Boff é um teólogo, filósofo e escritor brasileiro, nascido em 1944 em Concórdia, Santa Catarina. Ele é membro da Ordem dos Servos de Maria (OSM) e irmão do também teólogo Leonardo Boff. Sua trajetória intelectual e pastoral é marcada por uma evolução significativa, especialmente em relação à Teologia da Libertação, da qual foi um dos expoentes iniciais, mas que posteriormente criticou de forma contundente .
Sobre Frei Clodovis Boff. De Expoente importante a critico da Teologia da Libertação ?
Estudou filosofia em Mogi das Cruzes e doutorou-se em Teologia na Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), com uma tese sobre a metodologia da Teologia da Libertação .
Foi professor em instituições como a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), além de lecionar em Roma .
Contribuição à Teologia da Libertação:
Defendeu a integração das ciências sociais (influenciado pelo marxismo de Louis Althusser) na reflexão teológica, mas sempre com a ressalva de que a fé em Deus deveria ser o fundamento, não substituído pela luta social .
Sua obra Teoria do Método Teológico (1998) é considerada fundamental para entender a estrutura epistemológica da Teologia da Libertação .
Envolvimento Pastoral:
Trabalhou com comunidades eclesiais de base (CEBs) e atuou na pastoral de favelas do Rio de Janeiro, sempre enfatizando a dimensão espiritual da libertação .
Quem é Clodovis Boff nos dias atuais?
A partir dos anos 2000, Clodovis Boff passou por uma mudança significativa em seu pensamento, criticando a Teologia da Libertação "realmente existente" e aproximando-se de posições mais alinhadas com o Vaticano.
Críticas à Teologia da Libertação:
Em 2007, publicou o artigo "Teologia da Libertação e Volta ao Fundamento", onde acusou a corrente de inverter prioridades, colocando "os pobres no lugar de Cristo" e reduzindo a fé a um instrumento político .
Recentemente, em 2023, lançou o livro A Crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação, no qual atribui o declínio do catolicismo no Brasil ao esvaziamento espiritual causado por uma ênfase excessiva em questões sociais .
Posicionamento Atual:
Defende uma Igreja centrada em Cristo, criticando o que chama de "ONGização" da Igreja, que prioriza causas como justiça social e ecologia em detrimento da pregação da salvação .
Em 2025, enviou uma carta aberta ao Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), reprovando a ênfase repetitiva em temas sociais e cobrando maior foco em espiritualidade, oração e transcendência .
Polêmicas e Polarizações:
Suas críticas recentes têm sido instrumentalizadas por grupos conservadores dentro da Igreja, embora ele mesmo afirme não se alinhar a polarizações políticas .
Alguns críticos, como o teólogo Romero Venâncio, acusam-no de ter abandonado o legado do Concílio Vaticano II e adotado um discurso próximo ao tradicionalismo .
Conclusão
Clodovis Boff é uma figura complexa: de pioneiro da Teologia da Libertação a crítico ferrenho de seus desvios. Hoje, aos 81 anos, ele insiste na necessidade de reafirmar a centralidade de Cristo na Igreja, embora mantendo uma preocupação com os pobres — agora subordinada à fé. Sua trajetória reflete as tensões entre espiritualidade e engajamento social que marcam o catolicismo contemporâneo
Mensagem do Celam: impulsionados a “renovar nosso compromisso com uma Igreja misericordiosa, sinodal e em saída”
CARTA ABERTA AOS BISPOS DO CELAM
Caríssimos irmãos da CNBB
Li a Mensagem que mandaram no final da 40ª Assembleia que tiveram no Rio no fim do mês de maio. Que boa-nova li aí? Perdoem-me a franqueza: Nenhuma. Os Srs., bispos do CELAM, repetem sempre a mesma cantilena: social, social e social. E isso há mais de cinquenta anos.
Caros irmãos maiores, não veem que essa música já cansou? Quando é que nos darão boas-novas de Deus, de Cristo e do seu Espírito? Da Graça e da Salvação? Da Conversão do coração e da Meditação da Palavra? Da Oração e da Adoração, da Piedade para com a Mãe do Senhor e de outros temas semelhantes? Enfim, quando é que vão nos mandar uma mensagem verdadeiramente religiosa, espiritual? É precisamente disso que mais necessitamos hoje e que estamos esperando há tempos.
Vem-me aqui à mente a palavra de Cristo: “Os filhos pedem pão e vós lhes dais uma pedra” (Mt 7,9). O próprio mundo secular está farto de secularidade e parte em busca de espiritualidade. Mas não; os Srs. continuam a oferecer-lhes o social e ainda o social; do espiritual, quase só migalhas.
E pensar que os Srs. são depositários da riqueza maior, aquela de que o mundo mais precisa e que, no entanto, de certa forma, lhe sonegam. As almas pedem o sobrenatural, e os Srs. insistem em lhes dar o natural. Esse paradoxo se nota até nas paróquias: enquanto os leigos se comprazem em mostrar sinais da sua identidade católica (cruzes, medalhas, véus, blusas com estampas religiosas), padres e freiras vão na contramão e aparecem sem qualquer sinal distintivo.
E, no entanto, os Srs. dizem, sem qualquer hesitação, que ouvem os “clamores” do povo e que estão “conscientes dos desafios” de hoje. Mas sua escuta vai até o fundo? Não fica na superfície? Leio sua lista de “clamores” e “desafios” de hoje e vejo que não passa daquilo que observam os jornalistas e os sociólogos mais ordinários.
Não ouvem os Rev.mos que, do “mundo profundo”, levanta-se hoje um formidável grito por Deus? Um grito que até muitos analistas seculares ouvem? E não é porventura para escutar esse grito e dar-lhe uma resposta, a resposta verdadeira e plena, que a Igreja e seus ministros existem? Para os “clamores sociais”, estão aí os Governos e as Ongs. A Igreja, sem dúvida, não pode ficar fora desse jogo. Mas não é ela, nesse campo, a protagonista. Seu campo próprio de ação é outro e mais alto: responder precisamente ao “clamor por Deus”.
Sei que os Srs. bispos são dia e noite acossados pela opinião pública para se definirem como “progressistas” ou como “tradicionalistas”, como “da direita” ou “da esquerda”. São, porém, essas, categorias para bispos? Não são, antes, as de “homens de Deus” e “ministros de Cristo”? Nisso São Paulo é categórico: “Quero que todos nos reconheçam como ministros de Cristo e como administradores dos Mistérios de Deus” (1Cor 4,1). Não é ocioso lembrar aqui que a Igreja é, antes e acima de tudo, “Sacramento de salvação” e não uma simples instituição social, progressista ou não.
Ela existe para anunciar Cristo e sua graça. Aí está seu foco central, seu compromisso maior e perene. Tudo o mais vem depois. Desculpem, caríssimos, se estou aqui lembrando o que já sabem. Mas, por que então tudo isso não aparece em sua Mensagem e nos escritos do CELAM em geral? De sua leitura, tira-se quase inevitavelmente a conclusão de que a grande preocupação da Igreja hoje, em nosso continente, não é a causa de Cristo e de sua salvação, mas, antes, as causas sociais, como a justiça, a paz e a ecologia, que os Srs. em sua Mensagem citam, tal um outro refrão.
A própria carta que o Papa Leão mandou para o CELAM, na pessoa do Seu Presidente, fala com todas as letras da “necessidade urgente de recordar que é o Ressuscitado que protege e guia a Igreja, reavivando-a na esperança, etc.” Recorda-lhes ainda o Santo Padre que a missão própria da Igreja é, nas palavras dele mesmo, “ir ao encontro de tantos irmãos e irmãs, para anunciar-lhes a mensagem da salvação de Cristo Jesus”. Entretanto, qual foi a resposta que os Venerandos irmãos deram ao Papa? Na carta que lhe escreveram, não há qualquer eco dessas advertências papais. Antes, os Srs. lhe pedem que os ajude, não a manter viva na Igreja a memória do Ressuscitado; não a anunciar aos irmãos a salvação em Cristo, mas, sim, a apoiá-los em sua luta para “incentivar a justiça e a paz” e para “sustentá-los na denúncia de toda forma de injustiça”. Em suma, o que os Srs. fizeram sentir ao Papa foi a velha cantilena: “social, social...”, como se ele, que trabalhou entre nós por décadas, nunca a tivesse ouvido. Dirão os Srs.: “Mas essas são verdades pressupostas, que não precisa repetir o tempo todo.” Não, caríssimos; precisamos, sim, repeti-las, com renovado fervor, todo o santo dia, se não, se perdem. Se não fosse preciso sempre redizê-las, por que então o Papa Leão lhas recordou? Sabemos o que acontece quando um homem dá por descontado o amor de sua esposa e não cuida em alimentá-lo. Isso vale infinitamente mais em relação à fé e ao amor a Cristo.
Não falta, entretanto, em sua Mensagem o vocabulário da fé. Leio aí: “Deus”, “Cristo”, “evangelização”, “ressurreição”, “Reino”, “missão”, “esperança”. São, contudo, palavras postas aí de modo genérico. Não se vê nelas nada de um claro conteúdo espiritual. Fazem, antes, pensar no costumeiro refrão “social, social e social”. Peguem, por favor, as duas primeiras palavras, palavras chave, e mais que elementares, de nossa fé: “Deus” e “Cristo”.
Quanto a “Deus”, os Srs. não o citam por si mesmo nenhuma vez. Só o referem nas expressões estereotipadas “Filho de Deus” e “Povo de Deus”. Irmãos, não é de pasmar? E quanto a “Cristo”, só aparece duas vezes, e ambas apenas de passagem.
Uma delas é quando, recordando os 1.700 anos de Nicéia, falam da “nossa fé em Cristo Salvador, etc.”, declaração enorme, mas que não tem, na Mensagem dos Srs., qualquer incidência. Eu, daqui do meu canto, me pergunto por que não aproveitar dessa imensa verdade dogmática para renovar, com todo o fervor, o primado do Cristo-Deus, confessado tão fracamente hoje na pregação e na vida de nossa Igreja.
Declaram V. Ex.as, e com razão, que querem uma Igreja que seja “casa e escola de comunhão”, e, além disso, “misericordiosa, sinodal e em saída”. E quem não quer? Mas cadê Cristo nessa imagem ideal de igreja? Uma Igreja que não tem Cristo como sua razão de ser e falar, não passa, na expressão do Papa Francisco, de uma “Ong piedosa”. Mas não é por aí que vai a nossa Igreja? Menos mal é quando, em vez de irem para os sem-religião, os católicos se fazem evangélicos.
Em todos os casos, nossa Igreja perde sangue. O que mais se vê por aí são igrejas vazias, seminários vazios, conventos vazios. Em nossa América, já 7 ou 8 países não contam mais com a maioria católica. O próprio Brasil se encaminha para ser “o maior país ex-católico do mundo”, no dizer de um conhecido escritor patrício.
Não parece, no entanto, que essa queda contínua preocupe tanto os Venerandos irmãos. Vem à mente a denúncia de Amós contra os dirigentes do povo: “Vós não vos afligis com a ruína de José” (Am 6,6).
É estranho que, sobre um declínio tão vistoso, os Srs. em sua Mensagem não exalem um pio. Mais espantoso ainda é que o mundo secular fale mais desse fenômeno do que os bispos, que preferem se calar. Como não lembrar aqui a acusação de “cães mudos” feita por São Gregório Magno e repetida há poucos dias por São Bonifácio?
Por certo, não há na Igreja de nossa América apenas um processo de queda, mas também um de ascensão. Os Srs. mesmos dizem, em sua Mensagem, que nossa Igreja “continua pulsando com força” e que disso existem “sementes de ressurreição e esperança”. Mas, onde estão, queridos bispos, essas “sementes”? Não parecem que estão no social, como os Srs. poderiam imaginar, mas no religioso. Estão especialmente nas paróquias renovadas, assim como nos novos Movimentos e Comunidades, fecundados pelo que o Papa Francisco chamou de “corrente de graça carismática”, de que a RCC é a forma mais conhecida.
E conquanto todas essas expressões de espiritualidade e evangelização constituam a parcela eclesial que mais enche nossas igrejas (e o coração dos fieis), elas não mereceram da Mensagem episcopal um mísero “oi”. Entretanto, é lá, nessa sementeira espiritual, que está o futuro de nossa Igreja. Sinal eloquente desse futuro é que, enquanto no social, atualmente, quase só se veem “cabeças brancas”, no espiritual se constata a corrida em massa para lá dos jovens de hoje.
Queridos bispos, já escuto sua reação reprimida, e talvez indignada: “Mas, então, com teu discurso pretensamente ‘espiritual’, a Igreja deve agora deixar de lado os pobres, a violência social, a destruição ecológica e tantos outros dramas sociais? Fazer isso não é sinal de cegueira e mesmo de cinismo?” De acordo, irmãos. Que a Igreja deva se envolver com dramas como os referidos, isso está fora de discussão. A verdadeira questão não está aí, mas nisto: É “em nome de Cristo” que a Igreja se envolve nesses dramas? Sua intervenção social e a de seus militantes é realmente “qualificada” pela fé, repito e especifico, pela fé cristã? Com efeito, se a Igreja entra na luta social sem estar informada e animada por sua fé, a fé cristológica, nada mais fará do que faz qualquer Ong. Fará, pois, “mais do mesmo” e, caminho andando, fará pior: fará um social inconsistente, porquanto, sem o fermento de uma fé viva, a própria luta social acaba se pervertendo: de libertadora torna-se ideológica e finalmente opressora. É a lúcida e grave advertência que fez São Paulo VI (na Evang. nunt. 35,2) a propósito da “teologia da libertação” então nascente (advertência da qual essa teologia, pelo que parece, não tirou proveito algum).
Queridos irmãos maiores, permitam que lhes pergunte: Para onde é que os Srs. querem levar a nossa Igreja? O Srs. falam muito em “Reino”. Mas qual é o conteúdo concreto do seu “Reino”? Já que falam tanto em construir a “sociedade justa e fraterna” (outro dos seus ritornelos), pode-se pensar que seja tal sociedade o conteúdo central do “Reino” evocado. Não ignoro o grão de verdade que existe aí.
No entanto, do conteúdo principal de “Reino”, isto é, do Reino presente, tanto nos corações hoje, como na consumação amanhã, os Rev.mos nada dizem. Em seu discurso, não se vê qualquer escatologia.
É verdade: os Srs. falam por duas vezes de “esperança”, mas de um modo tão indefinido, que, dado o viés social de sua Mensagem, não há quem, ouvindo tal palavra de suas bocas, levante os olhos para o céu. Não nego, irmãos caríssimos, que seja também o céu sua “grande esperança”. Mas então, por que esse pudor de falar, alto e bom som, como fizeram tantos bispos do passado, em “Reino dos céus” (e também em “inferno”), em “ressurreição dos mortos”, em “vida eterna” e em outras verdades escatológicas, que oferecem tão grandes luzes e forças para as lutas do presente, além do sentido último de tudo? Não que o ideal terreno de uma “sociedade justa e fraterna” não seja belo e grande. Mas nada se compara com a Cidade do céu (Fl 3,20; Hb 11,10.16), da qual felizmente somos, por nossa fé, cidadãos e operários, e os Srs., por seu ministério episcopal, seus grandes engenheiros. Sim, darão também sua contribuição à Cidade secular, mas não é essa sua especialidade, mas a dos políticos e militantes sociais.
Quero crer que a experiência pastoral de muitos dos Srs. bispos seja mais rica e mesmo diversa da que emerge de sua Mensagem. Até porque os bispos, não estando sujeitos ao CELAM (que é apenas um órgão a seu serviço), mas somente à Santa Sé (e, naturalmente, a Deus), têm a liberdade de imprimir em suas respectivas igrejas a linha pastoral que julgarem melhor.
Disso resulta às vezes uma legítima dissonância com a linha proposta pelo CELAM. Acresce uma outra dissonância: a que se constata entre os ricos documentos das CELAM’s (Conferências) e a linha mais restrita do CELAM (Conselho). Acrescentaria, com sua permissão, uma terceira dissonância, mais próxima dos Srs: aquela que pode ocorrer, e frequentemente ocorre, entre Magistério episcopal e Assessoria teológica, ou seja, entre os bispos e os redatores de seus documentos. Sem embargo, mesmo com todas essas dissonâncias, que nos dão uma visão deveras diferenciada da situação de nossa Igreja, sua Mensagem pelos 70 anos do CELAM parece bem ser um espelho fidedigno da situação geral da nossa Igreja: uma Igreja que prioriza o social em vez do religioso. E os Srs., bispos do CELAM, quiseram aproveitar de sua 40ª Assembleia Geral para “renovar o compromisso” de continuar nessa linha, ou seja, priorizando o social. E entenderam retomar essa opção com toda determinação e de modo explícito, como se vê pelo uso tríplice que fizeram das palavras “renovar” e “compromisso”.
Compreendo, queridos bispos, sem pretender justificar nada, que, à força de insistir, não sem razão, no social e em seus dramas dolorosos, os Srs. tenham acabado deixando o religioso na sombra, sem, por certo, negar sua primazia.
Esse, na verdade, foi um processo que, quase sem perceber e não sem grande perigo, começou em Medellín e chegou até nós hoje. Os Srs., contudo, sabem por experiência que, sem tirar quanto antes o religioso da sombra e expô-lo à luz nas falas e nos fatos, sua prioridade termina por se perder. É o que ocorreu com a figura central de Cristo: acabou relegada ao segundo plano. E se Ele continua ainda confessado como Senhor e Cabeça da Igreja e do Mundo, é de modo perfunctório, ou quase.
E a prova dessa lenta deterioração está sob nossos olhos: a decadência de nossa Igreja. A seguir na mesma linha, decairemos cada vez mais. Tudo porque, antes de decair nos números, decaímos infelizmente quanto ao fervor da fé, da fé em Cristo, centro dinâmico da Igreja.
Como veem, irmãos, são os próprios números que nos provocam a todos, mas principalmente aos Srs. do CELAM, no sentido de retificar a linha geral da nossa Igreja, para que, retomando com ardor nossa opção por Cristo, ela volte a crescer em qualidade e quantidade.
É, portanto, hora, e mais que hora, de retirar Cristo da sombra e remetê-lo em plena luz. É hora de restituir-lhe a primazia absoluta, quer na Igreja ad intra (na consciência individual, na espiritualidade e na teologia), quer na Igreja ad extra (na evangelização, na ética e na política).
A Igreja de nosso continente precisa urgentemente voltar ao seu verdadeiro centro, retornar ao seu “primeiro amor”. A isso exortava um antecessor dos Srs., o bispo São Cipriano, nestes termos lapidares: “Nada em absoluto preferir a Cristo” (Christo nihil omnino praeponere). Com isso, caríssimos, estaria eu lhes pedindo algo de novo? Absolutamente. Estou apenas lhes recordando a exigência mais evidente da fé, da fé “antiga e sempre nova”: a opção absoluta por Cristo Senhor, o amor incondicional por Ele, requerido particularmente dos Srs., como Ele o fez com Pedro (Jo 21,15-17).
Urge, pois, adotar e praticar clara e decididamente um cristocentrismo forte e sistemático; um cristocentrismo verdadeiramente “avassalador”, como se exprimia São João Paulo II. Não se trata aqui, em absoluto,de cair num cristomonismo alienante (notem, por favor, a palavra “cristo-monismo”). Trata-se, sim, de viver um cristocentrismo aberto, que fermente e transforme tudo: pessoas, Igreja e sociedade.
Se ousei, queridos bispos, dirigir-me diretamente aos Srs., foi porque há muito tempo vejo, consternado, repetidos sinais de que nossa amada Igreja está correndo um perigo realmente grave: o de alienar-se de sua essência espiritual, para dano de si mesma e do mundo. Quando a casa está pegando fogo, qualquer um pode gritar. E já que estamos entre irmãos, vai aqui, por fim, uma confidência.
Depois de ter lido sua Mensagem, sucedeu-me algo que senti quase 20 anos atrás, quando, não podendo mais suportar os repetidos equívocos da teologia da libertação, subiu-me do fundo da alma tal ímpeto que bati na mesa e disse: “Chega! Tenho que falar”. Foi sob o impacto de uma moção interior análoga que redigi a presente carta, esperando que nela o Espírito Santo tenha tido alguma parte.
Pedindo à Mãe de Deus que invoque as luzes do mesmo Espírito sobre os Srs., bispos caríssimos, aqui me subscrevo como irmão e servo:
Fr. Clodovis M. Boff, OSM
Rio Branco (AC – Brasil), 13 de junho de 2025: festa de Sto. Antônio, doutor da Igreja
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