quinta-feira, 26 de junho de 2025

Frei Clodovis Boff. Quem te viu, quem te vê "Quem não o conhece não pode mais ver pra crer. Quem jamais o esquece não pode reconhecer."

 Quem Te Viu, Quem Te Vê - Chico Buarque ‧ 1967

Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala

Você era a favorita onde eu era mestre-sala

Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua

Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua

Hoje o samba saiu procurando você

Quem te viu, quem te vê

Quem não a conhece não pode mais ver pra crer

Quem jamais a esquece não pode reconhecer

Quando o samba começava, você era a mais brilhante

E se a gente se cansava, você só seguia adiante

Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado

Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado

Hoje o samba saiu procurando você

Quem te viu, quem te vê

Quem não a conhece não pode mais ver pra crer

Quem jamais a esquece não pode reconhecer

Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe

De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse

Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia

Quem brincava de princesa acostumou na fantasia

Hoje o samba saiu procurando você

Quem te viu, quem te vê

Quem não a conhece não pode mais ver pra crer

Quem jamais a esquece não pode reconhecer

Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria

Quero que você assista na mais fina companhia

Se você sentir saudade, por favor não dê na vista

Bate palmas com vontade, faz de conta que é turista

Hoje o samba saiu procurando você

Quem te viu, quem te vê

Quem não a conhece não pode mais ver pra crer

Quem jamais a esquece não pode reconhecer


O PEQUENO MUNDO DE CLODOVIS BOFF E O CLAMOR DO MUNDO
Romero Venâncio (UFS)

Nosso breve texto nasce do impacto provocado pela leitura de uma carta do teólogo Clodovis Boff dirigida aos bispos do CELAM reunidos no Rio de Janeiro. Desde as primeiras linhas, torna-se evidente o propósito do autor: criticar o documento final do CELAM e, ao mesmo tempo, estender essa crítica à Igreja Católica no Brasil e na América Latina como um todo.
Desde 2014, com a publicação da obra de fôlego “O Livro do Sentido. Crise e busca de sentido hoje” (Editora Paulus), já se percebia o ponto culminante de uma inflexão significativa na trajetória teológica e pessoal de Clodovis Boff. 
Na verdade, sinais dessa guinada são perceptíveis desde os anos 1990, quando o teólogo passou a expressar uma inquietação crítica em relação à Teologia da Libertação. Textos publicados na revista REB já denunciavam uma mudança radical de perspectiva. Clodovis começou questionando o uso da categoria “pobre” na teologia latino-americana, que, em sua leitura, implicava um “equívoco epistemológico” de toda a Teologia da Libertação. Chegou a afirmar que essa corrente teológica teria substituído Jesus pela figura do pobre, modificando assim toda uma cristologia. 
Essa interpretação foi rebatida com clareza pelo Pe. José Comblin. Não retornaremos diretamente a essa controvérsia aqui, mas é importante reconhecer que, naquele momento histórico, Clodovis já alterava profundamente seu modo de pensar e fazer teologia como membro da congregação dos Servos de Maria.
“O Livro do Sentido” representa uma guinada metafísica na produção intelectual do teólogo. Ao longo de seus nove capítulos, Clodovis estrutura sua reflexão em torno do conceito de “sentido”, que se torna o eixo central de sua argumentação. A obra se aproxima muito mais do pensamento de teólogos franceses ou alemães dos anos 1950 diante do existencialismo de Sartre, do que da tradição latino-americana. 
Nota-se também sua afinidade com Nietzsche e com temas da chamada pós-modernidade. A vida “ordinária”, “ética” e “religiosa” são, segundo ele, ameaçadas por uma onda niilista que aflige a “humanidade” — expressão emblemática da generalização metafísica que atravessa o livro. Marx e a crítica social estão ausentes dessa empreitada intelectual. 
Essa ausência talvez resuma bem a virada teológica de Clodovis em direção a um lugar hermenêutico e metafísico. Paciência. A vida segue.
O Clodovis Boff que lemos hoje é esse. Sua postura crítica aparece de forma contundente já na pergunta dirigida aos bispos do CELAM: “Que boa nova li ali?” — à qual responde, laconicamente: “Nenhuma”. 
Para ele, o documento dos bispos apenas “repete a mesma cantilena: social, social e social”. A crítica do teólogo se estrutura, portanto, numa visão que vai do particular ao universal, da constatação pessoal à generalização institucional. 
Segundo Clodovis, falta à Igreja atual uma cultura que reforce a “identidade católica”, o uso de “símbolos religiosos” e de “gestos piedosos”. Chega a afirmar que bispos, padres e freiras perderam essa dimensão devocional. Em tom mordaz, resume a Igreja Católica a uma ONG ou a uma instituição contaminada por uma “sociologia ordinária”.
Tal postura impressiona, especialmente para quem leu “Opção pelos pobres”, escrito por Jorge Pixley e Clodovis Boff nos anos 1980. Qualquer leitor atento daquela obra refutaria, sem muito esforço, o Clodovis Boff de 2025.
O texto recente do teólogo, embora dirigido formalmente aos bispos católicos, parece endereçado a um “novo rebanho”: grupos e youtubers das redes digitais filiados a direita católica. Clodovis tornou-se, cada vez mais, um interlocutor e orientador de segmentos conservadores do catolicismo. 
O abandono e a crítica à Teologia da Libertação tornaram-se seu bilhete de entrada no seleto grupo de extremistas de direita que atuam nas redes sociais e em dioceses, vociferando contra o comunismo, o Concílio Vaticano II, o Papa Francisco e qualquer projeto de sinodalidade.
Exemplo recente desse movimento é a “guerra de catecismos” promovida pelo Centro Dom Bosco e seus apoiadores nas redes digitais — um debate estéril e desconectado da complexidade do momento histórico atual.
Clodovis está, assim, construindo uma teologia a partir de um mundo estreito, centrado em devocionalismos e tradicionalismos, alheio aos clamores do mundo fora da sua Igreja. Nada mais desastroso para um teólogo contemporâneo do que tornar-se um pensador provinciano e autorreferenciado. E Clodovis chegou a esse ponto.
Vejamos: num momento em que assistimos ao genocídio inclemente do povo palestino, aos ataques ao Irã pelo Estado sionista de Israel e pelo governo dos EUA — com o mundo à beira de uma nova guerra —, a Igreja de Clodovis e seus seguidores dedica-se, simplesmente, à “catequese”.


@victorfesioli

Romero, concordo com suas considerações sobre o Clodovis, já conversamos sobre ele e o que tem feito... Devido à grandeza intelectual fruto de uma formação rigorosa e de uma inserção nas comunidades até os anos de 1980 em perspectiva de práxis, é lamentável ver um intelectual como ele abrir mão dessa trajetória e do panorama teológico da libertação que ele mesmo ajudou a ampliar e qualificar as raízes. Tão triste quanto é perceber que ele, além de se emaranhar na "teia" do sentido metafísico, retrocedendo como se tivesse entrado numa máquina do tempo que o transportou para a Antiguidade e que o leva, no máximo, ao Medievo, está sendo capturado pelas malhas da extrema-direita católica. Triste fim! Ainda bem que temos o irmão dele, como sempre, ativo, produtivo, perseverante e, sobretudo, coerente com a libertação da Teologia e a Teologia da Libertação.

AO MEU PROFESSOR CLODOVIS BOFF

Celso Pinto Carias, “mendigo de Deus”.

Caro professor.

Suas aulas e textos eram para mim a reflexão de um dos mais profundos teólogos que tive a honra de conhecer pessoalmente. Além da grande admiração por alguém que unia teoria e prática, que dava testemunho do que falava e escrevia. 

Porém, agora fico me perguntado para onde foi este teólogo? Não escrevo para fazer contestação, mas para tentar encontrar este Clodovis que conheci. 

Minha impressão, usando um ditado popular, é que você “está jogando a água é bebê fora”. 

Não há dúvida que um intelectual profundo como você pode ir reformulando a própria reflexão ao longo tempo. Não me surpreende a revisão que você tem feito. Em certa medida, você sabe, até concordo que a TdL não aprofundou a relação da teologia com vida existencial do povo, não aprofundou, suficientemente, a dimensão subjetiva e simbólica.

Hoje mesmo (22/06), na pequena comunidade que participo, uma senhora que nunca  tínhamos visto participou da Celebração da Palavra conosco. Na partilha ela disse que passou em frente e procurou saber o horário da celebração. Cremos que, como foi bem acolhida, abriu o coração. Disse que estava ali, na igreja, depois de três anos. Perdeu um filho assassinado, envolvido com drogas. Sentia-se culpada. Ora, o que poderíamos oferecer a ela? Falar da injustiça que o sistema impõe aos pobres? Dizer que  há um processo de exclusão que estimula a aparofobia e segrega, sobretudo os negros? A comunidade simplesmente a acolheu e buscou afirmar que a vida dela tem valor e que vale a pena ela continuar. Parece que ela gostou. 

Porém, sabemos bem, que isso não significa que possamos afirmar que o compromisso com os pobres seja um mero detalhe da Boa Nova de Jesus Cristo. Que o Reino de Deus não seja o centro da missão de Jesus de Nazar Também não dá para ficar no dualismo platônico entre alma e corpo, não reconhecendo  a salvação como um processo integral até a plenitude. 

Mas não tenho condições de fazer esta reflexão neste texto. O que me surpreende é a situação na qual você envolveu a sua crítica. Meu irmão, muitos dos que estão em sua volta hoje, utilizando-se do seu posicionamento, tem promovido mentiras e discurso de ódio. Alguns até suspeitos de estarem promovendo golpe de estado. Promovendo a divisão na Igreja de forma desonesta. Nosso Papa Francisco sofreu muito com eles. 

Seria tão bom se pudéssemos bater um longo papo ao redor de uma mesa, com fraternidade, serenidade e acolhimento, para compreender tudo isso melhor. Fico imaginando uma conversa entre você e seu irmão Leonardo, que tanto te ama, e eu assistindo e dando um “pitaco” ou outro para provocar o aprofundamento. 

Não sei se chegará a ler este pequeno texto, mas seria tão bom, sem querer ultrapassar o mestre, se a conversa não fosse pelo caminho escolhido por você, isto é, a aliança com setores eclesiais que nos odeiam, que rejeitam o Concílio Vaticano II. Não seria melhor uma conversa, pelo menos inicial, com pessoas que eram muito próximas a você?

Meu professor, se esta carta chegar a você, receba o meu abraço fraterno. 

Um Cristo sem Jesus e sem os apelos do Reino: análise de um livro. Artigo de Faustino Teixeira

O objetivo desta minha reflexão é delinear alguns tópicos que estão presentes no recente livro de Clodovis Boff: A crise da Igreja católica e a teologia da libertação [1]. O livro recolhe dois textos anteriores de Clodovis Boff, publicados na Revista Eclesiástica Brasileira (REB) nos anos de 2007 e 2008. O primeiro texto foi publicado depois da Conferência de Aparecida (2007), com grande repercussão na ocasião, com reações publicadas também na REB, com artigos de teólogos como Leonardo BoffLuis Carlos SusinFrancisco de Aquino JuniorJosé Comblín e João Batista Libânio [2]. A controvérsia já tinha de certa forma se iniciado por ocasião de uma conferência de Clodovis no encontro da SOTER, no ano 2000, onde abordou o tema: “Retorno à arché da teologia”. O texto veio publicado no livro organizado por Luiz Carlos SusinA sarça ardente [3]. Além dos dois textos citados, o livro vem acrescido de um artigo inédito de Clodovis Boff e duas entrevistas concedidas por ele na Folha de São Paulo e na Adital [4]. A apresentação do livro foi feita por Leonardo Razera, também organizador da obra.

O incentivo à minha reação ocorreu também em razão de uma live com participação de Clodovis Boff, onde ele pôde apresentar o conteúdo essencial de seu novo livro. Isso ocorreu no dia 14 de junho de 2023, promovido pela diocese de Barra do Piraí e Volta Redonda, com o título: Diálogos fraternos sobre a unidade cristã. Educação e a Casa Comum [5].

Eu tive o privilégio de ter sido aluno de Clodovis Boff durante o meu mestrado no Rio de Janeiro, entre 1978 e 1982. Pude acompanhar várias disciplinas ministradas por Clodovis, entre elas uma que abordou o tema de sua tese doutoral, recém defendida na Universidade de Lovaina na Bélgica. A tese veio publicada em livro no ano de 1978 [6]. Na ocasião, pudemos trabalhar cuidadosamente com ele todas as argumentações a respeito do método da Teologia da Libertação (TdL). Além das aulas, lembro-me que fizemos também um grupo de estudos sobre o livro, com participação de Inácio Neutzling, que era igualmente aluno do mestrado em teologia.

Leia o artigo completo AQUI

Clodovis Boff é um teólogo, filósofo e escritor brasileiro, nascido em 1944 em Concórdia, Santa Catarina. Ele é membro da Ordem dos Servos de Maria (OSM) e irmão do também teólogo Leonardo Boff. Sua trajetória intelectual e pastoral é marcada por uma evolução significativa, especialmente em relação à Teologia da Libertação, da qual foi um dos expoentes iniciais, mas que posteriormente criticou de forma contundente .

Sobre Frei Clodovis Boff. De Expoente importante a critico  da Teologia da Libertação ?

Estudou filosofia em Mogi das Cruzes e doutorou-se em Teologia na Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), com uma tese sobre a metodologia da Teologia da Libertação .

Foi professor em instituições como a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), além de lecionar em Roma .

Contribuição à Teologia da Libertação:

Defendeu a integração das ciências sociais (influenciado pelo marxismo de Louis Althusser) na reflexão teológica, mas sempre com a ressalva de que a fé em Deus deveria ser o fundamento, não substituído pela luta social .

Sua obra Teoria do Método Teológico (1998) é considerada fundamental para entender a estrutura epistemológica da Teologia da Libertação .

Envolvimento Pastoral:

Trabalhou com comunidades eclesiais de base (CEBs) e atuou na pastoral de favelas do Rio de Janeiro, sempre enfatizando a dimensão espiritual da libertação .

Quem é Clodovis Boff nos dias atuais?

A partir dos anos 2000, Clodovis Boff passou por uma mudança significativa em seu pensamento, criticando a Teologia da Libertação "realmente existente" e aproximando-se de posições mais alinhadas com o Vaticano.

Críticas à Teologia da Libertação:

Em 2007, publicou o artigo "Teologia da Libertação e Volta ao Fundamento", onde acusou a corrente de inverter prioridades, colocando "os pobres no lugar de Cristo" e reduzindo a fé a um instrumento político .

Recentemente, em 2023, lançou o livro A Crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação, no qual atribui o declínio do catolicismo no Brasil ao esvaziamento espiritual causado por uma ênfase excessiva em questões sociais .

Posicionamento Atual:

Defende uma Igreja centrada em Cristo, criticando o que chama de "ONGização" da Igreja, que prioriza causas como justiça social e ecologia em detrimento da pregação da salvação .

Em 2025, enviou uma carta aberta ao Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), reprovando a ênfase repetitiva em temas sociais e cobrando maior foco em espiritualidade, oração e transcendência .

Polêmicas e Polarizações:

Suas críticas recentes têm sido instrumentalizadas por grupos conservadores dentro da Igreja, embora ele mesmo afirme não se alinhar a polarizações políticas .

Alguns críticos, como o teólogo Romero Venâncio, acusam-no de ter abandonado o legado do Concílio Vaticano II e adotado um discurso próximo ao tradicionalismo .

Conclusão

Clodovis Boff é uma figura complexa: de pioneiro da Teologia da Libertação a crítico ferrenho de seus desvios. Hoje, aos 81 anos, ele insiste na necessidade de reafirmar a centralidade de Cristo na Igreja, embora mantendo uma preocupação com os pobres — agora subordinada à fé. Sua trajetória reflete as tensões entre espiritualidade e engajamento social que marcam o catolicismo contemporâneo

Mensagem do Celam: impulsionados a “renovar nosso compromisso com uma Igreja misericordiosa, sinodal e em saída”



CARTA ABERTA AOS BISPOS DO CELAM

Caríssimos irmãos da CNBB 

Li a Mensagem que mandaram no final da 40ª Assembleia que tiveram no Rio no fim do mês de maio. Que boa-nova li aí? Perdoem-me a franqueza: Nenhuma. Os Srs., bispos do CELAM, repetem sempre a mesma cantilena: social, social e social. E isso há mais de cinquenta anos. 

Caros irmãos maiores, não veem que essa música já cansou? Quando é que nos darão boas-novas de Deus, de Cristo e do seu Espírito? Da Graça e da Salvação? Da Conversão do coração e da Meditação da Palavra? Da Oração e da Adoração, da Piedade para com a Mãe do Senhor e de outros temas semelhantes? Enfim, quando é que vão nos mandar uma mensagem verdadeiramente religiosa, espiritual? É precisamente disso que mais necessitamos hoje e que estamos esperando há tempos. 

Vem-me aqui à mente a palavra de Cristo: “Os filhos pedem pão e vós lhes dais uma pedra” (Mt 7,9). O próprio mundo secular está farto de secularidade e parte em busca de espiritualidade. Mas não; os Srs. continuam a oferecer-lhes o social e ainda o social; do espiritual, quase só migalhas. 

E pensar que os Srs. são depositários da riqueza maior, aquela de que o mundo mais precisa e que, no entanto, de certa forma, lhe sonegam. As almas pedem o sobrenatural, e os Srs. insistem em lhes dar o natural. Esse paradoxo se nota até nas paróquias: enquanto os leigos se comprazem em mostrar sinais da sua identidade católica (cruzes, medalhas, véus, blusas com estampas religiosas), padres e freiras vão na contramão e aparecem sem qualquer sinal distintivo. 

E, no entanto, os Srs. dizem, sem qualquer hesitação, que ouvem os “clamores” do povo e que estão “conscientes dos desafios” de hoje. Mas sua escuta vai até o fundo? Não fica na superfície? Leio sua lista de “clamores” e “desafios” de hoje e vejo que não passa daquilo que observam os jornalistas e os sociólogos mais ordinários. 

Não ouvem os Rev.mos que, do “mundo profundo”, levanta-se hoje um formidável grito por Deus? Um grito que até muitos analistas seculares ouvem? E não é porventura para escutar esse grito e dar-lhe uma resposta, a resposta verdadeira e plena, que a Igreja e seus ministros existem? Para os “clamores sociais”, estão aí os Governos e as Ongs. A Igreja, sem dúvida, não pode ficar fora desse jogo. Mas não é ela, nesse campo, a protagonista. Seu campo próprio de ação é outro e mais alto: responder precisamente ao “clamor por Deus”.

Sei que os Srs. bispos são dia e noite acossados pela opinião pública para se definirem como “progressistas” ou como “tradicionalistas”, como “da direita” ou “da esquerda”. São, porém, essas, categorias para bispos? Não são, antes, as de “homens de Deus” e “ministros de Cristo”? Nisso São Paulo é categórico: “Quero que todos nos reconheçam como ministros de Cristo e como administradores dos Mistérios de Deus” (1Cor 4,1). Não é ocioso lembrar aqui que a Igreja é, antes e acima de tudo, “Sacramento de salvação” e não uma simples instituição social, progressista ou não.

Ela existe para anunciar Cristo e sua graça. Aí está seu foco central, seu compromisso maior e perene. Tudo o mais vem depois. Desculpem, caríssimos, se estou aqui lembrando o que já sabem. Mas, por que então tudo isso não aparece em sua Mensagem e nos escritos do CELAM em geral? De sua leitura, tira-se quase inevitavelmente a conclusão de que a grande preocupação da Igreja hoje, em nosso continente, não é a causa de Cristo e de sua salvação, mas, antes, as causas sociais, como a justiça, a paz e a ecologia, que os Srs. em sua Mensagem citam, tal um outro refrão.

A própria carta que o Papa Leão mandou para o CELAM, na pessoa do Seu Presidente, fala com todas as letras da “necessidade urgente de recordar que é o Ressuscitado que protege e guia a Igreja, reavivando-a na esperança, etc.” Recorda-lhes ainda o Santo Padre que a missão própria da Igreja é, nas palavras dele mesmo, “ir ao encontro de tantos irmãos e irmãs, para anunciar-lhes a  mensagem da salvação de Cristo Jesus”. Entretanto, qual foi a resposta que os Venerandos irmãos deram ao Papa? Na carta que lhe escreveram, não há qualquer eco dessas advertências papais. Antes, os Srs. lhe pedem que os ajude, não a manter viva na Igreja a memória do Ressuscitado; não a anunciar aos irmãos a salvação em Cristo, mas, sim, a apoiá-los em sua luta para “incentivar a justiça e a paz” e para “sustentá-los na denúncia de toda forma de injustiça”. Em suma, o que os Srs. fizeram sentir ao Papa foi a velha cantilena: “social, social...”, como se ele, que trabalhou entre nós por décadas, nunca a tivesse ouvido. Dirão os Srs.: “Mas essas são verdades pressupostas, que não precisa repetir o tempo todo.” Não, caríssimos; precisamos, sim, repeti-las, com renovado fervor, todo o santo dia, se não, se perdem. Se não fosse preciso sempre redizê-las, por que então o Papa Leão lhas recordou? Sabemos o que acontece quando um homem dá por descontado o amor de sua esposa e não cuida em alimentá-lo. Isso vale infinitamente mais em relação à fé e ao amor a Cristo.

Não falta, entretanto, em sua Mensagem o vocabulário da fé. Leio aí: “Deus”, “Cristo”, “evangelização”, “ressurreição”, “Reino”, “missão”, “esperança”. São, contudo, palavras postas aí de modo genérico. Não se vê nelas nada de um claro conteúdo espiritual. Fazem, antes, pensar no costumeiro refrão “social, social e social”. Peguem, por favor, as duas primeiras palavras, palavras chave, e mais que elementares, de nossa fé: “Deus” e “Cristo”. 

Quanto a “Deus”, os Srs. não o citam por si mesmo nenhuma vez. Só o referem nas expressões estereotipadas “Filho de Deus” e “Povo de Deus”. Irmãos, não é de pasmar? E quanto a “Cristo”, só aparece duas vezes, e ambas apenas de passagem. 

Uma delas é quando, recordando os 1.700 anos de Nicéia, falam da “nossa fé em Cristo Salvador, etc.”, declaração enorme, mas que não tem, na Mensagem dos Srs., qualquer incidência. Eu, daqui do meu canto, me pergunto por que não aproveitar dessa imensa verdade dogmática para renovar, com todo o fervor, o primado do Cristo-Deus, confessado tão fracamente hoje na pregação e na vida de nossa Igreja.

Declaram V. Ex.as, e com razão, que querem uma Igreja que seja “casa e escola de comunhão”, e, além disso, “misericordiosa, sinodal e em saída”. E quem não quer? Mas cadê Cristo nessa imagem ideal de igreja? Uma Igreja que não tem Cristo como sua razão de ser e falar, não passa, na expressão do Papa Francisco, de uma “Ong piedosa”. Mas não é por aí que vai a nossa Igreja? Menos mal é quando, em vez de irem para os sem-religião, os católicos se fazem evangélicos. 

Em todos os casos, nossa Igreja perde sangue. O que mais se vê por aí são igrejas vazias, seminários vazios, conventos vazios. Em nossa América, já 7 ou 8 países não contam mais com a maioria católica. O próprio Brasil se encaminha para ser “o maior país ex-católico do mundo”, no dizer de um conhecido escritor patrício. 

Não parece, no entanto, que essa queda contínua preocupe tanto os Venerandos irmãos. Vem à mente a denúncia de Amós contra os dirigentes do povo: “Vós não vos afligis com a ruína de José” (Am 6,6).

É estranho que, sobre um declínio tão vistoso, os Srs. em sua Mensagem não exalem um pio. Mais espantoso ainda é que o mundo secular fale mais desse fenômeno do que os bispos, que preferem se calar. Como não lembrar aqui a acusação de “cães mudos” feita por São Gregório Magno e repetida há poucos dias por São Bonifácio?

Por certo, não há na Igreja de nossa América apenas um processo de queda, mas também um de ascensão. Os Srs. mesmos dizem, em sua Mensagem, que nossa Igreja “continua pulsando com força” e que disso existem “sementes de ressurreição e esperança”. Mas, onde estão, queridos bispos, essas “sementes”? Não parecem que estão no social, como os Srs. poderiam imaginar, mas no religioso. Estão especialmente nas paróquias renovadas, assim como nos novos Movimentos e Comunidades, fecundados pelo que o Papa Francisco chamou de “corrente de graça carismática”, de que a RCC é a forma mais conhecida. 

E conquanto todas essas expressões de espiritualidade e evangelização constituam a parcela eclesial que mais enche nossas igrejas (e o coração dos fieis), elas não mereceram da Mensagem episcopal um mísero “oi”. Entretanto, é lá, nessa sementeira espiritual, que está o futuro de nossa Igreja. Sinal eloquente desse futuro é que, enquanto no social, atualmente, quase só se veem “cabeças brancas”, no espiritual se constata a corrida em massa para lá dos jovens de hoje.

Queridos bispos, já escuto sua reação reprimida, e talvez indignada: “Mas, então, com teu discurso pretensamente ‘espiritual’, a Igreja deve agora deixar de lado os pobres, a violência social, a destruição ecológica e tantos outros dramas sociais? Fazer isso não é sinal de cegueira e mesmo de cinismo?” De acordo, irmãos. Que a Igreja deva se envolver com dramas como os referidos, isso está fora de discussão. A verdadeira questão não está aí, mas nisto: É “em nome de Cristo” que a Igreja se envolve nesses dramas? Sua intervenção social e a de seus militantes é realmente “qualificada” pela fé, repito e especifico, pela fé cristã? Com efeito, se a Igreja entra na luta social sem estar informada e animada por sua fé, a fé cristológica, nada mais fará do que faz qualquer Ong. Fará, pois, “mais do mesmo” e, caminho andando, fará pior: fará um social inconsistente, porquanto, sem o fermento de uma fé viva, a própria luta social acaba se pervertendo: de libertadora torna-se ideológica e finalmente opressora. É a lúcida e grave advertência que fez São Paulo VI (na Evang. nunt. 35,2) a propósito da “teologia da libertação” então nascente (advertência da qual essa teologia, pelo que parece, não tirou proveito algum).

Queridos irmãos maiores, permitam que lhes pergunte: Para onde é que os Srs. querem levar a nossa Igreja? O Srs. falam muito em “Reino”. Mas qual é o conteúdo concreto do seu “Reino”? Já que falam tanto em construir a “sociedade justa e fraterna” (outro dos seus ritornelos), pode-se pensar que seja tal sociedade o conteúdo central do “Reino” evocado. Não ignoro o grão de verdade que existe aí.

No entanto, do conteúdo principal de “Reino”, isto é, do Reino presente, tanto nos corações hoje, como na consumação amanhã, os Rev.mos nada dizem. Em seu discurso, não se vê qualquer escatologia. 

É verdade: os Srs. falam por duas vezes de “esperança”, mas de um modo tão indefinido, que, dado o viés social de sua Mensagem, não há quem, ouvindo tal palavra de suas bocas, levante os olhos para o céu. Não nego, irmãos caríssimos, que seja também o céu sua “grande esperança”. Mas então, por que esse pudor de falar, alto e bom som, como fizeram tantos bispos do passado, em “Reino dos céus” (e também em “inferno”), em “ressurreição dos mortos”, em “vida eterna” e em outras verdades escatológicas, que oferecem tão grandes luzes e forças para as lutas do presente, além do sentido último de tudo? Não que o ideal terreno de uma “sociedade justa e fraterna” não seja belo e grande. Mas nada se compara com a Cidade do céu (Fl 3,20; Hb 11,10.16), da qual felizmente somos, por nossa fé, cidadãos e operários, e os Srs., por seu ministério episcopal, seus grandes engenheiros. Sim, darão também sua contribuição à Cidade secular, mas não é essa sua especialidade, mas a dos políticos e militantes sociais.

Quero crer que a experiência pastoral de muitos dos Srs. bispos seja mais rica e mesmo diversa da que emerge de sua Mensagem. Até porque os bispos, não estando sujeitos ao CELAM (que é apenas um órgão a seu serviço), mas somente à Santa Sé (e, naturalmente, a Deus), têm a liberdade de imprimir em suas respectivas igrejas a linha pastoral que julgarem melhor. 

Disso resulta às vezes uma legítima dissonância com a linha proposta pelo CELAM. Acresce uma outra dissonância: a que se constata entre os ricos documentos das CELAM’s (Conferências) e a linha mais restrita do CELAM (Conselho). Acrescentaria, com sua permissão, uma terceira dissonância, mais próxima dos Srs: aquela que pode ocorrer, e frequentemente ocorre, entre Magistério episcopal e Assessoria teológica, ou seja, entre os bispos e os redatores de seus documentos. Sem embargo, mesmo com todas essas dissonâncias, que nos dão uma visão deveras diferenciada da situação de nossa Igreja, sua Mensagem pelos 70 anos do CELAM parece bem ser um espelho fidedigno da situação geral da nossa Igreja: uma Igreja que prioriza o social em vez do religioso. E os Srs., bispos do CELAM, quiseram aproveitar de sua 40ª Assembleia Geral para “renovar o compromisso” de continuar nessa linha, ou seja, priorizando o  social. E entenderam retomar essa opção com toda determinação e de modo explícito, como se vê pelo uso tríplice que fizeram das palavras “renovar” e “compromisso”.

Compreendo, queridos bispos, sem pretender justificar nada, que, à força de insistir, não sem razão, no social e em seus dramas dolorosos, os Srs. tenham acabado deixando o religioso na sombra, sem, por certo, negar sua primazia. 

Esse, na verdade, foi um processo que, quase sem perceber e não sem grande perigo, começou em Medellín e chegou até nós hoje. Os Srs., contudo, sabem por experiência que, sem tirar quanto antes o religioso da sombra e expô-lo à luz nas falas e nos fatos, sua prioridade termina por se perder. É o que ocorreu com a figura central de Cristo: acabou relegada ao segundo plano. E se Ele continua ainda confessado como Senhor e Cabeça da Igreja e do Mundo, é de modo perfunctório, ou quase. 

E a prova dessa lenta deterioração está sob nossos olhos: a decadência de nossa Igreja. A seguir na mesma linha, decairemos cada vez mais. Tudo porque, antes de decair nos números, decaímos infelizmente quanto ao fervor da fé, da fé em Cristo, centro dinâmico da Igreja.

Como veem, irmãos, são os próprios números que nos provocam a todos, mas principalmente aos Srs. do CELAM, no sentido de retificar a linha geral da nossa Igreja, para que, retomando com ardor nossa opção por Cristo, ela volte a crescer em qualidade e quantidade.

É, portanto, hora, e mais que hora, de retirar Cristo da sombra e remetê-lo em plena luz. É hora de restituir-lhe a primazia absoluta, quer na Igreja ad intra (na consciência individual, na espiritualidade e na teologia), quer na Igreja ad extra (na evangelização, na ética e na política). 

A Igreja de nosso continente precisa urgentemente voltar ao seu verdadeiro centro, retornar ao seu “primeiro amor”. A isso exortava um antecessor dos Srs., o bispo São Cipriano, nestes termos lapidares: “Nada em absoluto preferir a Cristo” (Christo nihil omnino praeponere). Com isso, caríssimos, estaria eu lhes pedindo algo de novo? Absolutamente. Estou apenas lhes recordando a exigência mais evidente da fé, da fé “antiga e sempre nova”: a opção absoluta por Cristo Senhor, o amor incondicional por Ele, requerido particularmente dos Srs., como Ele o fez com Pedro (Jo 21,15-17).

 Urge, pois, adotar e praticar clara e decididamente um cristocentrismo forte e sistemático; um cristocentrismo verdadeiramente “avassalador”, como se exprimia São João Paulo II. Não se trata aqui, em absoluto,de cair num cristomonismo alienante (notem, por favor, a palavra “cristo-monismo”). Trata-se, sim, de viver um cristocentrismo aberto, que fermente e transforme tudo: pessoas, Igreja e sociedade.

Se ousei, queridos bispos, dirigir-me diretamente aos Srs., foi porque há muito tempo vejo, consternado, repetidos sinais de que nossa amada Igreja está correndo um perigo realmente grave: o de alienar-se de sua essência espiritual, para dano de si mesma e do mundo. Quando a casa está pegando fogo, qualquer um pode gritar. E já que estamos entre irmãos, vai aqui, por fim, uma confidência.

Depois de ter lido sua Mensagem, sucedeu-me algo que senti quase 20 anos atrás, quando, não podendo mais suportar os repetidos equívocos da teologia da libertação, subiu-me do fundo da alma tal ímpeto que bati na mesa e disse: “Chega! Tenho que falar”. Foi sob o impacto de uma moção interior análoga que redigi a presente carta, esperando que nela o Espírito Santo tenha tido alguma parte.

Pedindo à Mãe de Deus que invoque as luzes do mesmo Espírito sobre os Srs., bispos caríssimos, aqui me subscrevo como irmão e servo:

Fr. Clodovis M. Boff, OSM

Rio Branco (AC – Brasil), 13 de junho de 2025: festa de Sto. Antônio, doutor da Igreja


Essa celeuma envolvendo a mudança de rota do Frei Clodovis Boff, de expoente da teologia da libertação a crítico contundente da mesma, me lembrou o texto abaixo escrito por mim em 2008, sob  influência de escritos dos irmãos Boff., Marcelo Barros e outros, a ressaltar o Clodovis, um dos irmãos Boff da primeira fase, ou do primeiro testamento do seu percurso de vida. 
É  com esse que eu vou, mesmo que concorde com a critica a  alguns excessos de dessacralização como  o seu contrário,  o excesso de sacralização deslocado  do real, do vivido. Mas longe de mim querer corrigir um excesso com outro. 
E sobre o "sagrado" talvez se mergulharmos mais a fundo na experiência de humanidade , inclusive do próprio Jesus, entenderemos o seu significado transcendente. Aqui vale a pena recordar o que disse Frei Beto a respeito da celeuma:  "Repetiria ao querido Clodovis: “tive fome e vocês me deram de comer” (Mt 25, 35-45). Jesus não disse: “Estive no sacrário e vocês vieram me adorar”. De que vale o espiritual de costas para o social?"
E para concluir, uma forma de mostrar fé com humanidade e que me comoveu , como a milhões mundo a fora, foi o gesto de Agam Rinjani que desceu ao abismo com a alma acesa para resgatar o corpo de Juliana Marins.
O alpinista voluntário que participou do resgate da brasileira revelou detalhes emocionantes da missão: “Se chovesse um pouco mais, m0rreríamos juntos. Não sabemos como conseguimos resistir, estava muito, muito frio."
Aqui sim, é sacralidade elevado a décima potência, oferecer a vida pelo irmão, como fez Jesus Cristo , mesmo um irmão ou irmã como neste caso, que não tinha mais vida. Uma irmã que ele nem conheceu quando vida teve.
Que triste o mundo que temos, com muita gente com fé e devoção, mas sem manifestar a potência do amor de Cristo em suas vidas e na vida dos outros.
Assim, de que vale um certo tipo de fé desencarnada e tanta devoção? As crianças em Gaza e em tantos lugares do Brasil e do mundo nos interpelam, também ao Papa, aos Bispos, a Clodovis e a você que nos lê.

Tudo o que move é sagrado

Zezito de Oliveira - 2008 - No  Overmundo
"Toda arte que nos move a buscar a vida em plenitude é sagrada".
"Mesmo que o poeta seja ateu, um bom poema sempre nos aproxima de Deus".

Uma das coisas mais interessantes que confirmei no estudo sobre o Salmos — um livro poético/espiritual do primeiro testamento, — realizado com o monge beneditino Marcelo Barros(1), no ano de 2003, é que todos os escritos da Bíblia sobre o Deus-Amor são verdadeiramente palavra/vontade de Deus.

Aqueles que apresentam um Deus machista, preconceituoso, autoritário, ciumento e violento expressam o sentimento humano. Como exemplo podemos lembrar do mandamento “amar a Deus sobre todas as coisas”, complementado por Jesus Cristo, “e ao próximo como a si mesmo”.

Portanto, o que está escrito na Bíblia, que nega ou contradiz isso, deve ser compreendido, buscando entender suas limitações no tempo (história), a injunção da política (relações de poder) e o contexto cultural.

O escritor russo Tolstoi também afirmou a mesma coisa quando disse que “onde existir o amor, Deus aí está”.

Buscando apresentar de que forma este amor de Deus pode se tornar exemplo vivo a partir da prática do cotidiano, em Mateus vemos escrito: “Tive fome e me deste de comer, estive nu e me vestiste, estive preso e me visitaste”.

Neste sentido, um povo que se diz cristão e não consegue resolver o problema da fome, da injustiça e da violência, especialmente contra os mais indefesos e vulneráveis, não pode ser reconhecido por Jesus Cristo como irmãos e filhos do mesmo Pai. “Não é aquele que diz Senhor, Senhor que entrará no Reino dos Céus”.

Não é à toa que ouvimos algumas vezes a expressão: “De bem intencionados (ou de ‘cristãos’) o inferno está cheio”.
Quem leu o texto, ou assistiu à peça ou ao filme “O Auto da Compadecida” pode entender muito bem o que isso significa.

No caso do Brasil, o combate à fome tornou-se prioridade por parte da sociedade civil, a partir das iniciativas de Betinho, que liderou um movimento social de grande envergadura nos idos da década de 90, em consonância com o mandamento evangélico “Dá-lhes vós mesmos de comer”, e da parte, do governo, a partir de 2002, com a eleição do Presidente Lula, que criou o Programa Fome Zero, atualmente bastante limitado à distribuição do Bolsa Família, embora concebido para ir muito além.

Quando Frei Betto(2) apresentou o programa Fome Zero para a sociedade civil em Sergipe, no ano de 2003, eu disse naquela ocasião — reforçando o pensamento dele, — que embora seja um imperativo moral e ético combater a fome orgânica, a fome do corpo, o Evangelho nos lembra que “nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”.

Essa palavra que não se expressa somente através do signo verbal, pode se revelar também através da música, da dança, da pintura, do cinema e de várias outras manifestações artísticas, mesmo quando músicos, poetas, dançarinos, pintores, cineastas e escritores não falam ou não acreditam em Deus.

Porque nosso Deus é o Deus da Vida: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”, e toda obra de arte que denuncia a injustiça e/ou promove a vida é sagrada.

Um exemplo dentre tantos é a obra de Chico Buarque(3). Quando ele canta “Mulheres de Atenas”, recorda-me o Jesus que entendia e sabia dialogar tão bem com a alma feminina, como no exemplo de Madalena. “João e Maria” me recordam o Jesus menino ouvindo as histórias e as cantigas de ninar que certamente Maria contou e cantou para seu filho. “Cálice” me lembra o Jesus torturado que sofreu tanto que até suspirou “pai, afasta de mim...”. “Assentamento” me recorda o Jesus sem-terra e sem-teto, que antes de nascer do ventre de Maria, já fugia do poder cruel e opressor que ainda hoje persegue milhares de famílias cujos filhos nascem embaixo das lonas dos acampamentos dos sem-terra ou debaixo das marquises e dos viadutos.(4)

Daí as possibilidades da criação artística como fonte para buscarmos saciar a fome de justiça e de beleza(5), e na perspectiva de neutralizarmos a força das idéias ou expressões estéticas que além de nos empobrecer culturalmente, insistem em querer nos afastar permanentemente do contato com a realidade, reforçando o individualismo, desvalorizando tudo aquilo que se refere aos cuidados com a coisa pública, a preservação dos bens naturais e o legado cultural que herdamos dos nossos ancestrais. (6)

Tudo isso lamentavelmente disseminado também através de linguagens artísticas, principalmente da música e de pregações (discursos) que abusam de elementos cênicos/teatrais.

Artigo originalmente publicado no jornal Cinform em fevereiro de 2005 com o titulo: Arte na cesta básica de todos.

NOTAS:
(1) Marcelo Barros é monge beneditino e um dos mais fecundos intelectuais gerados no seio da igreja católica, numa época (anos 70) em que a instituição buscava se abrir e dialogar com o mundo, ao contrário dos tempos atuais em que os conflitos com os setores progressistas da política, da ciência e do mundo das artes tem sido a tônica. A despeito disso, Marcelo Barros tem buscado abrir pontes e até “viadutos” para o diálogo com outras crenças, como as de matriz africana, orientais e com os grupos religiosos contemporâneos, além de cientistas e setores políticos vinculados ao altermundismo. É também um brilhante escritor e em muitos de seus artigos e das suas obras literárias, o tema do diálogo inter-religioso e intercultural é tratado com muito esmero, carinho e profundidade. O monge Marcelo Barros é herdeiro espiritual de um grande poeta, místico e amante das artes e da luta pela justiça, Dom Hélder Câmara, bispo nordestino cujo exemplo de cristão e de pastor inspira os ideais e comportamento de milhares de pessoas no mundo inteiro, dentre as quais me incluo.

(2) Frei Betto é frade dominicano e muitas das palavras aplicadas a Marcelo Barros se aplicam a ele também, evidentemente salvas algumas distinções próprias, porém, como este é mais conhecido, recomendo o seguinte link, para a busca de mais informações sobre ele. Logo após Lula assumir o governo, Frei Betto foi convidado para coordenar o setor de mobilização social do Fome Zero, e foi nesta condição que ele esteve em Sergipe, sendo que quase dois anos depois solicitava afastamento do governo em função de não se avançar no combate às causas estruturais da fome. Recentemente, em artigo na revista Caros Amigos, para a qual escreve mensalmente, Frei Betto afirma: “Concebeu-se o Fome Zero como um leque de políticas capaz de alterar a arcaica estrutura social brasileira e permitir aos beneficiários vir a produzir a própria renda. Assim, a reforma agrária se impunha como prioridade. Não se pretendia saciar apenas a fome de pão, mas também a de beleza, ou seja, aprimorar culturalmente os beneficiários e torná-los protagonistas do aperfeiçoamento de nossa democracia. O controle do programa cabia à sociedade civil através dos Comitês Gestores.(...) Em 2005, os Comitês Gestores foram cancelados e o governo federal repassou às prefeituras a responsabilidade de controle dos recursos destinados aos beneficiários. Decisão que, segundo o Tribunal de Contas da União, fez aumentar os indícios de corrupção nas administrações municipais.”

(3) Lembro no início dos anos 80, ainda morando no Rio de Janeiro e em uma reunião do grupos de jovens, ter utilizado uma música de Chico Buarque: “O casamento dos pequenos burgueses” como mote para levantar a discussão sobre o tema do casamento.
Também no final dessa década, a Pastoral de Jovens do Meio Popular, ligada a Arquidiocese de Olinda e Recife, na época sob os cuidados de Dom Hélder, publicou um pequeno livro com letras de músicas da "MPB" e com roteiro de perguntas apropriado para fomentar o debate sobre temas sociais nos grupos de jovens e comunidades de base.

(4) - O argumento defendido aqui, não se restringe somente as músicas que contém letras, sejam elas "engajadas ou não" mas incorpora a obra de Bach, Beethovem, Mozart, Villa-Lobos, Egberto Gismonti, Pink Floyd, Genesis, Enya e etc.

(5) Um artista que consegue realizar o Ideal da síntese que defendemos aqui, em termos estéticos e éticos, é o poeta, cantor, compositor, arte-educador popular e missionário Zé Vicente, que foi gestado no ventre das comunidades eclesiais de base, na década de 70, no Ceará, e que já gravou mais de uma dezena de CD’s e que será motivo de uma apresentação para os leitores do Overmundo dentro de alguns dias. Na opinião do bispo católico, Dom Dulcênio, atualmente responsável pela Diocese de Palmeira dos Indios (AL) a qualidade da produção artística do Zé Vicente para a música cristã pode ser equiparada a de Luiz Gonzaga para a música popular brasileira.
Neste post trazemos para o deleite de vocês a composição Utopia e quem quiser ouvir mais composições de autoria do Zé Vicente pode clicar aqui.


(6) Como aspecto positivo, atualmente temos a incorporação de músicas do cancioneiro popular por parte do Padre Fábio de Melo, que tem se utilizado de obras de artistas como Fábio Junior, Lulu Santos, Renato Russo, dentre outros, em seus programas transmitidos pela TV Canção Nova e em shows por esse Brasil afora, tendo inclusive gravado um CD somente de músicas de compositores “laicos” brasileiros. Importante ressaltar que a pregação do Fábio de Melo difere em alguns aspectos do discurso da maioria dos padres recém ordenados, embasados por uma teologia que reforça o individualismo quando apresenta a solução dos problemas humanos, tão somente pela via do recurso à oração individual, deixando de considerar também a interdependência que muitos desses problemas mantêm com as questões sócio-políticas estruturais. Quanto a Fábio de Melo, nas oportunidades em que o vi falar, percebi que tem um olhar menos restrito e um pouco mais amplo, chegando próximo do chamado modelo do pensamento “sistêmico”, quando comenta os dramas pessoais que se constituem na matéria prima de seu programa de televisão.


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