quarta-feira, 25 de outubro de 2023

"Gritos do Sul" - O necessário cinema antifascista

 

Fahya Kury Cassins

"Gritos do Sul" é um filme de suspense que tem como contexto a pandemia e a ascensão do fascismo na região Sul do Brasil. A história acompanha um casal e seu bebê, que decidem passar alguns dias em um chalé na serra. Ao chegar lá, notam que o casal proprietário e seu filho tem um "ar" questionável.

Pré-estreia “Gritos do Sul”: porque fazer cinema

Eu raramente falo sobre o que faço, e isso pode ser um erro. Mas, é uma característica minha e se é considerado um erro pelos outros, não penso que devo mudar somente por isso.

Porém, hoje vim falar sobre o curta-metragem “Gritos do Sul”, e não digo “meu” porque cinema é arte coletiva e, apesar de assinar roteiro, direção e produção executiva, a obra não é só minha. Porém, eu que dei à luz a esta história que é tão importante pra mim e acredito que para mais pessoas (talvez até para esta cidade).

De cada história que eu crio, posso passar horas falando de cada detalhe, de onde veio cada personagem, cada fala, da narrativa, dos cenários. Seria entediante, imagino, por isso normalmente não falo. A obra nunca é “minha”, ela é de quem a consome.

“Gritos do Sul” é um curta-metragem que escrevi o roteiro ano passado, há pouco menos de um ano, durante a pandemia já naquele período que o pessoal tinha ligado o dane-se – alguns, né, porque muitos nunca deram a devida atenção a ela. Ele surgiu de uma imagem, a fotografia de um chalé que meu professor de Francês mostrou em uma aula, para onde ele iria com a família num fim de semana depois de meses isolados no apartamento onde moravam. Aquela fotografia povoou meu imaginário e não conseguia tirá-la da cabeça porque o local me pareceu assustador, uma decoração hiponga no meio do mato, que não me passou nenhuma confiança. Daria uma boa história de terror? Certeza.

Depois me veio um personagem, masculino, que encarnaria o pior que há nos homens, que ainda tentam (ou fingem que tentam) ser homens do mundo contemporâneo, como pais e maridos, que dividem o trabalho da casa (pero no mucho), que amam, mas vivem da grosseria sua de cada dia. Eu amo meus personagens masculinos porque acho que tenho um bom conhecimento sobre eles e consigo transmitir isso. Era algo que naquele momento também consumia meus pensamentos, como os homens tentam, mas não vão muito além dos homens do século passado – e como nós mulheres temos que, enfim, aceitar isso se quisermos nos relacionar com eles. (Ou não, meninas, exijam mais.)

Esse personagem masculino teria uma característica clássica dos homens: a agressividade que pode ser despertada por alguns fatores como a bebida alcoólica, a competição entre homens, etc., aquele homem que mede na força a sua vontade. Ainda não conheci um que não fosse assim, mesmo que em graus diferentes.

Mas, o que me interessava era a mulher que estaria ao lado desse homem, uma mulher como todas nós: forte de verdade, sem precisar testar nem provar nada pra ninguém, destemida, mãe e esposa, que trabalha, cuida da casa, da família, dirige, assume o controle de tudo a sua volta e ainda suporta relacionamentos ruins porque quer se realizar enquanto mulher na vida. Esse era um ponto importante para a história, quem prestar atenção ao filme, vai entender.

E eis que um dia, ainda às voltas com esses personagens, fui podar as árvores do jardim e decidi que queria uma motosserra na história. Quando escrevemos roteiros a qualidade mais importante é essa: ser decidida. Dúvida nenhuma escreve bons roteiros. Bem, a história estava pronta, o chalé, o casal e a motosserra. Gênero: suspense (ou o novo terror, porque hoje tudo é terror; sou filha dos anos 1990 e seu bom e velho suspense). Faltava um contexto e o conflito. Aí foi fácil.

O contexto seria o mundo pandêmico do Brasil que nunca saberemos o que deveríamos temer mais: o vírus da COVID ou o vírus da ignorância alimentado pelo governo. A escolha foi rápida. O conflito? A realidade ao meu redor. Dificilmente conseguiria imaginar algo  mais aterrorizante do que o que eu via todo dia nas notícias, na fala e atitude das pessoas. E aí se justifica o título (sou péssima com títulos, mas nesse acertei em cheio): os gritos que estão aqui no sul, nesse sul que se diz tão europeu, tão elitizado, tão melhor que o “resto” do país. 

Assim nasceu o “Gritos do Sul”, uma história que não fala sobre a pandemia de COVID, pois ela é o contexto que serve de estopim para o drama, mas que fala das profundezas da nossa realidade aqui onde as ideologias ganharam proporções de uma violência destemida e doentia. “Gritos do Sul” é um filme político que se posiciona de acordo com o que convencionou-se chamar, nos dias de hoje, de antifacista. Ele não trata de nenhuma ficção fantástica para falar da realidade, ele tem personagens desenhados pelo que vemos no dia a dia. 

Sobre posicionar-se, nunca abri nem abrirei mão. Toda arte é política, blá-blá-blá, é sim. Tem um gosto especial produzir cinema no Brasil, com posicionamento político não alinhado ao governo atual, que combate certas características culturais que corrompem quem poderíamos ser. “Gritos do Sul” foi um projeto aprovado no SIMDEC Apoio 2021 em primeiro lugar, com uma pontuação muito boa, foi produzido com equipe majoritariamente composta por mulheres e homens não heteros e todos profissionais de Santa Catarina, a maioria graduados e graduandos do curso de Cinema. É uma prática de fomentar, formar, qualificar e profissionalizar cada vez mais a nossa área, em Joinville, principalmente, que não se exime de mostrar a real importância das políticas públicas para a Cultura. Tudo isso é o discurso político do Gritos do Sul – é o nosso grito coletivo.

Não é só um curta antifacista, é um espaço de mudança e resistência. E resistimos inclusive à falta de interesse da imprensa e outros órgãos em divulgar o trabalho dos artistas de Joinville, pois não temos um centavo investido em divulgação e vamos trabalhar no “boca a boca”, no compartilhamento nas redes sociais, no contato direto com as pessoas que apreciam arte e cinema, que se interessam por valorizar quem resiste a esses tempos sombrios. Uma ópera de fora de Joinville, por exemplo, com ingressos a cem reais, a ser apresentada no local cultural mais elitizado da cidade tem espaço nas rádios e nos meios de comunicação, apoio de pessoas dos órgãos culturais, nós não. O grito do “Gritos do Sul” se fará ouvir, a contrapelo de alguns, quiçá da história, como diria aquele filósofo. 

Nosso curta está forte, agoniante, eu diria. Está na última etapa da pós-produção e já tem data de pré-estreia, que será no SESC de Joinville, espaço parceiro do cinema local, pois a cidade não possui sequer uma sala pública de cinema. Teremos ingressos para o público em geral e para quem quiser acompanhar recomendo o Instagram da produtora @oficina_producoes. 

Não consigo imaginar nada melhor do que fazer cinema e sou feliz por esta ser minha vida. Trabalhar com cinema em Joinville é uma realização pessoal que, felizmente, eu compartilho com bastante gente, inclusive com o público. Quem sabe em breve eu fale mais sobre o “Gritos do Sul”, mas só vai entender quem assistir.

https://fahya.com/2022/08/25/pre-estreia-gritos-do-sul-porque-fazer-cinema/

https://www.youtube.com/watch?v=L6SUrKFWR7A





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