selo ocupa política
Depois de passar por Belo Horizonte e São Paulo, o encontro Ocupa Política chega ao Recife entre os dias 29 de agosto e 1 de setembro. O Ocupa Política é uma articulação nacional que parte de uma ideia de democracia radical: que as forças sociais, já mobilizadas, sejam seus próprios representantes na política institucional. A ideia do evento no Recife é inspirar novas candidaturas e trocar experiências entre os 16 mandatos já existentes que fazem parte da articulação.

Mas não só. Nesta edição, o Ocupa Política se expande com a participação de ativistas e políticos de vários países da América Latina e também dos Estados Unidos. Entre os mais de 20 nomes estrangeiros, o encontro recebe Ilona Duverge, representante da Movement School, a escola de formação de candidatos que apoiou a campanha da deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez nos EUA, e a jornalista Beatriz Sánchez, candidata à presidência do Chile pela Frente Amplio em 2017. Há representantes de movimentos como Estamos Listas, da Colômbia, e Pro Derechos, do Uruguai, entre muitos outros.
Inscrições
Quem quiser participar ainda pode se inscrever, gratuitamente, pelo site do Ocupa Política. Também estão abertas as sugestões de oficinas para serem realizadas durante o evento. As sugestões podem ser enviadas até o dia 13 de agosto.
Em tempos de obscurantismo na política nacional, o tema desta edição é um sopro de otimismo: Pra todo mundo viver bem. “É uma política do afeto, do amor, do respeito. Que integre e consiga construir esse espaço e potencializar a voz de todas. São vozes que já existem e precisam se conectar para se fortalecer”, comenta a ativista Danúbia Gardênia, que integra a experiência de mandato compartilhado da Gabinetona, em Minas Gerais, e faz parte da organização do encontro.
O Ocupa Política surgiu como uma ideia em 2016. Naquele ano, mandatos coletivos e/ou de formação popular foram eleitos, como As Muitas, em Belo Horizonte, Marielle Franco e Talíria Petrone, no Rio de Janeiro, Marquito, em Florianópolis, Ivan Moraes, aqui no Recife. “Esses mandatos já tinham algumas construções e no ano seguinte se reuniram em Belo Horizonte para trocar experiências. Foi o primeiro Ocupa Política. Vários movimentos se juntaram aos mandatos eleitos, como ativistas e entidades da agroecologia, do feminismo, LGBT e da negritude. Eram grupos que já estavam buscando uma ocupação institucional”, lembra Danúbia.
No ano passado, o Ocupa aconteceu em São Paulo. Foi um momento de solidificação das candidaturas para o legislativo estadual e federal. Lá, setenta candidaturas foram propostas. Doze foram eleitas, entre elas os mandatos coletivos da Bancada Ativista (SP) e das Juntas (PE).
Foto: Ocupa Política
Foto: Ocupa Política
Para esta terceira edição, a ideia é ampliar o Ocupa para além dos mandatos, junto com a organização civil. Há também uma preocupação em diferenciar os mandatos e candidaturas que fazem parte do Ocupa Política de outros projetos recentes voltados para a prospecção de candidaturas (os princípios da articulação podem ser lidos no site). “Hoje há muitos movimentos que se dizem próximos ao Ocupa, a partir desta ideia de ‘nova política’, mas a gente tem tentado cada vez mais dizer qual é a diferença. No Recife, vamos debater como a gente se vê: movimentos e mandatos que constroem dentro dos territórios, de uma forma democrática, não-hierarquizada, com mandatos coletivos, com desconstrução de personalização – o que muitas vezes a gente não percebe nesses movimentos ditos novos, muitas vezes bancados por empresários. O que nós entendemos é que são as pessoas que fazem pelo território que têm que ocupar os espaços de poder. E que esses mandatos de hoje são transitórios, são para abrir trincheiras, mas que não é uma pessoa que vai se manter no poder, mas um movimento, um conjunto de construção política que pode a cada eleição ter uma representação diferente”, explica Danúbia.
Apesar de ampla maioria dos mandatos fomentados pelo Ocupa Política ser do Psol, o encontro é suprapartidário, no campo da esquerda. Há conexão com setores do PT e com a Rede Sustentabilidade, que já elegeu representantes do Ocupa. Esta edição no Recife conta com recursos de um financiamento coletivo e das fundações Open Society e Oak.

Programação do Ocupa Política no Recife

O evento tem boa parte das atividades abertas ao público que não está inscrito. A Marco Zero, parceira nesta edição, irá fazer a cobertura nas redes sociais e com reportagens e entrevistas. Na quinta-feira, dia 29, a abertura acontece em algum espaço público no centro do Recife, ainda não definido. Será um momento de apresentação dos mandatos e coletivos que compõem o encontro.
Na sexta-feira pela manhã, haverá três mesas de análise da conjuntura política. À tarde, a programação deverá ser descentralizada, com oficinas. No sábado, haverá 14 rodas de diálogos com os convidados nacionais, internacionais e locais no Ginásio Pernambucano. À tarde, a Rua da Aurora, na altura do monumento Tortura Nunca Mais, sedia uma conversa sobre os desafios dos mandatos do Ocupa. Ao final, haverá a elaboração da Carta do Recife, com os compromissos assumidos nesta edição do encontro. O evento se encerra com festa do Som na Rural, na Rua da Aurora.
“Todas as rodas, conversas e oficinas vão permear o tema Pra todo mundo viver bem. E em dois eixos. Vamos pensar o bem viver na política com quem já está nos mandatos, mas também inspirar movimentos sociais para chegar junto no desafio que é a ocupação da política institucional”, conta Daiane Dultra, integrante da organização do Ocupa e do coletivo Agora é com a gente.
A montagem da programação com 20 nomes internacionais foi uma parceria com o Instituto Update, que tem um projeto com nomes da América Latina. “O projeto da Update Emergência política faz um mapeamento de iniciativas e viu no Ocupa uma oportunidade de colocar todo mundo junto para compartilhar suas experiências com o Brasil”, explicou Daiane.

Boaventura: a política em tempos de cólera

Em crise civilizatória aguda, velhas estratégias e táticas não servem. Surgiram dois horizontes. Num, é preciso proteger a democracia. Noutro, acolher novos projetos de política, afeto, produção e consumo, que emergem em especial entre os jovens


Apesar de haver máquinas de secar roupa, a maioria das pessoas do mundo (quase sempre mulheres) secam a roupa em varais de metal, de corda de cânhamo ou de madeira. Ramos de árvore também podem servir de varal. A técnica de estender a roupa varia de país para país, mas há certas regras de observância geral. Assim, a roupa tem de ser bem estendida para garantir a maior exposição ao sol e ao vento, o peso da roupa tem de ser calibrado com a resistência do varal, no caso de a roupa poder cair com alguma turbulência é conveniente segurá-la com um prendedor ou algo semelhante. Estender a roupa no varal é um trabalho minucioso que obriga a ter bem presente a roupa e o varal para a operação ter sucesso. Mas quem se habituou a estender a roupa no varal sabe que, ao mesmo tempo que se olha com atenção para o que está na frente dos olhos, é preciso ter presente a época do ano, a meteorologia, a incidência do sol, a força e a direção do vento, a poluição atmosférica e até a segurança do varal, se há a possibilidade de ladrões roubarem a roupa.
Todos os democratas do mundo, sobretudo os que têm o coração duplamente do lado esquerdo (físico e político), os que se sentem insultados com o enriquecimento exorbitante de uns e o empobrecimento injusto de outros, os que ficam revoltados com o crescimento desordenado do armamentismo e todas as outras faces da guerra, sejam elas os embargos, as sanções econômicas, o tráfico de drogas, de humanos e de órgãos, o assassinato de líderes sociais e políticos, o feminicídio, os que ficam assustados com o possível colapso ecológico, dado o ritmo do aquecimento global, do desmatamento das florestas, da contaminação das águas e da cegueira dos políticos a este respeito, os que ficam alarmados com o recrudescimento da extrema direita e das ideologias reacionárias, nacionalistas, hiperconservadoras, enfim todos os que não estão dispostos a desistir de lutar por uma sociedade mais justa, mais decente e mais digna, todos eles deviam aprender com as mulheres do mundo e a sua arte de estender a roupa nos varais.
Estamos num tempo em que o pequeno e detalhado horizonte da roupa a ser estendida tem de ser articulado com o horizonte mais amplo da meteorologia social, econômica, política e cultural da época em que vivemos. Para as forças políticas de esquerda este esforço de articulação de horizontes é mais difícil do que para as forças de direita.  Porque vivemos há séculos em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais e porque as injustiças e discriminações que elas produzem, apesar de terem mudado de forma, não têm mudado de intensidade e de letalidade, as forças políticas de esquerda têm-se treinado para existir e resistir contra a corrente e para centrar as suas energias na preparação da sociedade do futuro. Em outras palavras, têm-se preocupado menos com o estender da roupa do que com a meteorologia que a envolve. Sempre que procuraram articular as duas preocupações, fizeram-no seio do mesmo horizonte político e procuraram vê-lo, ora com os óculos para ver de perto (a tática), ora com óculos para ver ao longe (estratégia). Durante muito tempo esta articulação funcionou, ainda que, na maioria dos casos, uma parte das esquerdas se tenha habituado a ver só com os óculos de ver de perto e a outra se tenha habituado a ver só com os óculos de ver ao longe. Se isto tivesse acontecido às mulheres e ao seu varal, talvez hoje andássemos nus.
Acontece que quarenta anos de neoliberalismo tornaram este hábito político inviável. O horizonte político tornou-se tão asfixiantemente pequeno que levou o mercado ótico-político a especializar-se em óculos de ver de perto. Quem quer teimar em ver com óculos de ver ao longe usa lentes velhas e corre o risco de ser considerado míope ou lunático. Os democratas com coração político à esquerda têm demorado a dar-se conta desta mudança de época e de meteorologia e, enquanto não se derem conta, põem em sério risco, não só a roupa deles como a roupa de todos nós. Mas o esforço é urgente e ouso sugerir algumas das vias que ele deve tomar.
O que antes eram duas escalas do mesmo horizonte político são agora dois mundos distintos e é por isso que para os ver adequadamente no plano político é agora preciso muito mais que dois pares de óculos. É preciso toda uma nova visão de cultura política. Simbolicamente, a queda do Muro de Berlim, combinada com o disparo da concentração da riqueza e o aprofundamento da crise ecológica, fez com que a aspiração e a luta por uma sociedade melhor passassem a ter de ser pensada e realizada em dois horizontes muito distintos: o horizonte político e o horizonte civilizatório. O primeiro é o horizonte convencional da luta política. Continua ser dividido entre táticas e estratégias mas a sua escala diminuiu desde o momento em que o horizonte civilizatório começou a ser discutido na sociedade. Com isso, a própria diferença entre tática e estratégia foi miniaturizada. O horizonte político passou a ser o horizonte próprio do estender a roupa no varal. Chamamos ao conjunto do varal de agenda política. 
O horizonte civilizatório é conjunto dos temas que estão para além do horizonte político, mas que no entender de um número crescente de pessoas, sobretudo de jovens, é decisivo para o futuro da humanidade: outros modelos de consumo, de convivência democrática, de relacionamento cordial entre humanos e entre estes a natureza. Essa será a única maneira de evitar o colapso ecológico e a superveniência de novas ditaduras e a multiplicação de guerras irregulares e suas vítimas privilegiadas, civis inocentes. O horizonte civilizatório é constituído por duas inquietações políticas, uma negativa, outra positiva. A inquietação negativa é a sensação de que a roupa no varal pertence toda a um corpo, um estilo, uma história do passado.  A inquietação positiva é que, apesar de os temas civilizatórios não poderem, pelo menos por agora, ser processados pelo sistema político, são cada vez mais discutidos pelos cidadãos e presentes na sua vida: no modo como mudam os hábitos de consumo, na revolta ante políticas públicas que negam ou minimizam a importância dos temas civilizatórios, no desconforto ante a magnitude do que está em causa no horizonte civilizatório e a pequenez dos debates que ocupam o varal da roupa política. Perante isso, muitos e muitas afastam-se da política convencional, o que os políticos ocupados no varal confundem com despolitização, mas que no fundo é apenas o desejo acrisolado de outras políticas.
Esta disjuntiva entre horizonte político e horizonte civilizatório é nova e o drama do nosso tempo é que ela exige uma nova e fundamental distinção entre esquerda e direita e a classe política não está preparada para ela. As forças políticas de direita, por mais que digam o contrário, não se interessam pelo horizonte civilizatório e desprezam quem o quer discutir. Afinal, o mundo tal como está foi em grande medida obra delas e são elas as que mais beneficiam com o status quo. Não pensam no horizonte civilizatório porque, segundo dizem, isso é longo prazo e a longo prazo estamos todos mortos. Ao contrário, as forças de esquerda só terão viabilidade no futuro se souberam articular os dois horizontes. Se não o fizerem, são elas que a longo prazo estarão mortas. Têm, pois, um interesse vital em introduzir na discussão o horizonte civilizatório. Só que isso não é possível a curto prazo nem sequer nos termos da temporalidade dos processos eleitorais. Perante isto, a solução só pode ser a seguinte. As forças de esquerda têm de aprender a exercer a sua atividade dentro e fora do horizonte político. Dentro dele, o seu objetivo deve ser o de o reconverter para que ele amplie o seu carácter democrático (haja roupa mais colorida e diversa no estendal). Ela sabe que o horizonte político vai ser cada vez mais pressionado a partir de fora pelos cidadãos sobretudo interessados no horizonte civilizatório e que, perante isso, as forças de direita vão responder repressivamente e tudo fazer, inclusive sacrificar a democracia para salvaguardar o status quo. Por isso, para as forças de esquerda a defesa da democracia deve ser o novo centro do horizonte político e a única razão porque participam nele.
Mas têm igualmente de trabalhar fora dele, ao nível do horizonte civilizatório. A esse nível, os instrumentos políticos são: a educação popular para a democracia intercultural ecossocialista, o exemplo pessoal e coletivo como testemunho de vida, e formas novas de organização. Quanto à educação: a democratização global da vida, a diversidade intercultural das possibilidades pós-capitalistas, pós-colonialistas e pós-patriarcais e os direitos da natureza. Isto implica virar do avesso as universidades de verão e as escolas de formação organizadas pelos partidos: serão os cidadãos a ensinar aos políticos o horizonte civilizatório. Quanto ao testemunho de vida: os políticos de esquerda têm de dar testemunho pessoal das preocupações civilizatórias e têm de conviver mais com as periferias pobres e discriminadas das cidades, aprender de novo a falar com as classes que lhes deram historicamente a razão de ser e, sempre que possível, ir viver com elas. Quanto à forma de organização: a esquerda tem de ser partido e movimento porque nem um nem outro isoladamente sobreviverão à degradação da democracia causada pelas forças de direita. Articulando-se poderão começar a pensar conjuntamente o horizonte político e o horizonte civilizatório e a transformar o primeiro em função do segundo. Estarão aí para garantir o seu futuro, um futuro promissor e urgente.
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