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terça-feira, 4 de março de 2025
Sobre os críticos de “Ainda estou aqui”
03/03/2025
Por LÚCIO VERÇOZA*
A capacidade do cinema de Walter Salles de adentrar os raquíticos fios do debate público no Brasil – ou da opinião publicada
O filme Ainda estou aqui circula. Prossegue circulando. E sua circulação não é como a de um ventilador de padaria: que gira, gira e permanece no mesmo lugar – soprando pouco vento. O começo da circulação da película se deu, sobretudo, na pele e nos pelos das pessoas que saíram de casa para ir ao cinema.
O segundo circuito de circulação, que é um desdobramento do primeiro, está na capacidade do cinema de Walter Salles de adentrar os raquíticos fios do debate público no Brasil – ou da opinião publicada. Logo, nessa segunda esfera da circulação, não tardou para que os autores de resenhas alimentassem os blogs, YouTube, Instagram, TikTok e páginas da grande mídia – tanto com análises elogiosas, quanto implacáveis.
Dentre as críticas mais duras, gostaria de sublinhar o texto de Raul Arthuso, divulgado recentemente no jornal Folha de S. Paulo. O escrito tem sua relevância, pois desloca a discussão para o campo da estética. Porém, no afã de sustentar a tese na qual o filme de Walter Salles seria um passo atrás no contexto do cinema nacional contemporâneo, o autor contorce o argumento, rebaixando o peso político de Ainda Estou Aqui.
Numa rápida análise, é possível destacar trechos nos quais Raul Arthuso carrega excessivamente nas tintas – fazendo com que o filme analisado pareça outro: “sua ênfase está na narrativa íntima, na memória, nas relações pessoais em detrimento da história e da realidade social, mesmo que isso esteja presente como pano de fundo difuso.” “[…] a realidade política é só um detalhe na trama.” “[…] não consegue construir um mundo ficcional que diga algo para a nossa realidade.” “[…] produzir efeitos de emoções, sem agredir ou tensionar questões locais”.
Toda essa linha argumentativa leva à construção de um retrato de filme que seria politicamente minúsculo e quase irrelevante: “que pouco tem a dizer sobre a nossa realidade”; no entanto, se trata do inverso: pela via da estética do detalhe íntimo, Walter Salles conseguiu atar um nó que liga o passado ao presente – fazendo o espectador sentir o passado como algo que diz respeito ao que está em nossa frente. E esse traço, de conseguir reavivar a memória por meio da arte, tem uma enorme potência política.
Tanto os críticos que gostariam que o filme fosse algo próximo de um panfleto (a exemplo das análises de viés excessivamente programático de Jones Manoel, ou do Chavoso da USP), quanto os que exigem uma estética de vanguarda, desconsideram que o forte impacto político do longa decorre de uma abordagem que toca na grande política pela chave da sutileza do detalhe e da micro-história.
A obra forma uma espécie de nó artístico – sem adotar uma linguagem explicitamente herdeira do Cinema Novo dos anos 1960, nem das vanguardas recentes do mangue ou dos sertões nordestinos –; um nó que não escreve um tratado da política econômica dos governos da ditadura militar, nem da luta sindical (como reivindicaram os críticos programáticos).
Todavia, é um nó ainda mais arguto, pois liga a ponta do passado à do presente em frente aos olhos e ouvidos do grande público: dando um tapa simbólico no rosto e na máscara do bolsonarismo. E, faz isso, sem dizer explicitamente o que faz. E faz isso construindo uma estética que sintoniza muito bem a forma ao conteúdo – sem pertencer às vanguardas da forma, e sem conceder a patrulha estreita dos que exigiram um filme-panfleto.
Talvez o grande acerto do filme esteja justamente nisso: em captar uma forma de pertencer a um tempo pelo 3×4 de uma família. E o faz sem a pretensão de lançar um tratado. E o faz demonstrando que uma linguagem aparentemente simples (em termos de inovação) pode ser sutil e profunda. A plateia, por diferentes caminhos, sacou o que estava na tela e sentiu, por alguns minutos, o sentimento do mundo. E o sentimento do mundo é ambíguo: carregado de choro, fúria, esperança, aplauso e memória.
*Lúcio Verçoza é professor de sociologia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Referência
Ainda estou aqui
Brasil, 2024, 135 minutos.
Direção: Walter Salles.
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega.
Direção de Fotografia: Adrian Teijido.
Montagem: Affonso Gonçalves.
Direção de Arte: Carlos Conti
Música: Warren Ellis
Elenco: Fernanda Torres; Fernanda Montenegro; Selton Mello; Valentina Herszage, Luiza Kosovski, Bárbara Luz, Guilherme Silveira e Cora Ramalho, Olivia Torres, Antonio Saboia, Marjorie Estiano, Maria Manoella e Gabriela Carneiro da Cunha.
É por aí que caminha um texto, que viralizou, apresentando o cineasta Walter Salles – do filme “Ainda estamos aqui” – como um beneficiário da ditadura que matou o deputado Rubens Paiva.
Walter Salles é herdeiro do banqueiro Walther Moreira Salles. No texto, o pai é apresentado como financiador do IPES, o Instituto de Pesquisas Econômico Sociais que teve papel fundamental no financiamento midiático em favor do golpe de 1964. Falso!
Eu escrevi a biografia de Moreira Salles. Não foi uma biografia autorizada, apesar do acesso que tive ao próprio embaixador, em dezenas de entrevistas, à parte do seu acervo e aos seus primeiros sócios. O livro descontentou os filhos por mencionar episódios delicados, como seus embates com Roberto Marinho, de quem foi sócio no Parque Lage, ou seus negócios com dívida externa brasileira. Foi um livro que homenageou a grande estatura pública dele, mas sem ocultar as fraquezas.
Walther Moreira Salles fazia parte de um grupo de empresários que apoiou Getúlio Vargas e seu sucessor João Goulart. Foi sua indicação para Ministro da Fazenda de Jango que viabilizou o parlamentarismo contra o golpismo das Forças Armadas, que queriam impedir Jango de assumir a presidência, com a renúncia de Jânio.
Aliás, pouco antes de renunciar, Jânio foi procurado pelos três comandantes militares oferecendo seu apoio para o caso de pretender dar um golpe. Jânio recusou apostando em outra saída: ele renunciando, saindo do país em um cruzeiro marítimo e, na volta, sendo consagrado pelo povo que exigiria sua volta. Na volta do cruzeiro, o povo não compareceu.
Há um conjunto de informações inéditas no livro. A história dos militares me foi relatada por Rafael de Almeida Magalhães. A do cruzeiro, pelo próprio Walther, que contou que foi planejado meses antes da renúncia.
Para viabilizar a posse de Jango, foi armada uma operação sigilosa para levar Walther até Porto Alegre, onde ele testemunhou a enorme coragem de Leonel Brizola, comandando a resistência – conforme me relatou. Walther foi o avalista do parlamentarismo justamente por suas relações estreitas com o sistema financeiro norte-americano – era amigo íntimo de Nelson Rockefeller – e com os grandes grupos de comunicação dos EUA.
Acertado o parlamentarismo, teve que voltar escondido, indo a Buenos Aires e voltando para São Paulo com carteira de identidade falsa.
O texto diz que sua ligação com Rockefeller foi fundamental para evitar sua cassação. Tem razão, mas não significa, em nenhum momento, adesão ao golpe.
Não se deve esquecer que a primeira grande denúncia contra as torturas praticadas pelo regime foi feita a Nelson Rockefeller em um evento no Museu de Arte Moderna que, possivelmente, foi a causa do assassinato de Zuzu Angel.
Para se contrapor à enorme frente midiática contra Vargas, Moreira Salles chegou a negociar uma grande editora, fundindo a Érica (que publicava a revista Sombra) com a Última Hora, de Samuel Wainer. Por conta disso, foi alvo da CPI da Última Hora. Como afirmar que ele financiava o IPES?
Walther foi salvo da cassação por duas circunstâncias. A primeira, no governo Castello Branco, por uma circunstância familiar: dona Argentina, esposa de Castello, tinha relações de parentesco com a família de Elisinha, esposa de Walther.
A segunda tentativa foi com Costa e Silva. José Carlos Marcondes Ferraz, conhecido playboy do Rio de Janeiro dos anos 60, me contou que passou uma noite na casa de Walther, com a ameaça de, a qualquer momento, a casa ser invadida por militares. Telefonemas de autoridades norte-americanas influentes – cuja amizade Walther cultivara como embaixador de Vargas e de JK – seguraram a cassação. E Delfim Neto foi essencial, a partir de uma conversa que teve com Costa e Silva – que me foi relatada pelo próprio Delfim.
Costa e Silva o procurou e perguntou o que aconteceria se cassasse Moreira Salles. E Delfim:
Pouca coisa, general. Nos indisporíamos com os banqueiros norte-americanos e europeus, e também com as grandes redes de comunicação dos Estados Unidos. Mas apenas isso.
Mesmo assim, a família Moreira Salles saiu do país e mudou-se para a França, por receio de ter o mesmo fim de Rubens Paiva.
O texto não informa que Waltinho, o filho, frequentava a casa de Rubens Paiva, era amigo de suas filhas. Fugia do ambiente pesado da sua própria casa – devido aos embates constantes do casal Moreira Salles – e ia buscar a leveza da família Paiva.
O Unibanco, de fato, foi beneficiado pela política econômica de Castello Branco, como outros bancos nacionais, a partir das reformas conduzidas por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões. O texto não consegue entender que, por baixo da política, havia uma estrutura empresarial e uma elite econômica carioca que orientava o país desde Vargas.
Roberto Campos foi assessor de Café Filho, de JK, participou da fundação do BNDES e, assim como Gouvea de Bulhões, transitava pelo alto mundo financeiro e empresarial do Rio de Janeiro.
É essa elite carioca – que se frequentava desde os anos 40, quando o Rio era apenas uma cidade que ainda não se internacionalizara -. além das ligações ultramarinas, que impediu Moreira Salles de ter o mesmo destino de grupos paulistas destruídos pela ditadura pelo apoio a Jango – como os Wallace Simonsen.
Mesmo no ambiente opressivo da ditadura, Moreira Salles ajudou JK e o próprio Jango, em seu exílio no Uruguai. Na ocasião, entrou em contato com banqueiros uruguaios, garantindo operações de financiamento das atividades de Jango.
A treta entre Sandra Annenberg e a Folha por causa de Ainda Estou Aqui
Âncora da TV Globo fez questionamento direto ao jornal paulista após a publicação de uma matéria descabida que tentou colocar o longa de Walter Salles numa posição delicada
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