sexta-feira, 22 de julho de 2011

ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA: TESTEMUNHAS DO REINO!


Zé Vicente

O sol do dia 16 de julho lançou seus últimos raios sobre a grande fogueira erguida no pátio da matriz da pequena cidade de Ribeirão Cascalheira - MT, entregando para a lua cheia, esplêndida no céu, o brilho a ser derramado sobre a 5ª Romaria dos Mártires da Caminhada Latino Americana, que reuniu cerca de sete a dez mil pessoas, sem contar os que olhavam das calçadas, admirados e atentos e muitos que, mesmo distantes, se uniram em espírito.

Todos vestidos com vestes de festa, vindos dos quatro cantos do Brasil e de vários outros países, estamos postos num grande círculo, movidos pela energia vibrante dos abraços, beijos e sorrisos, trocados na emoção de reencontrarmos velhas amizades e sentirmos o calor de novos aconchegos.

Entre nós e em nós, se manifesta a presença deles e delas, os mártires, testemunhas fiéis do Reino da Vida, cujo sangue foi derramado no colo da mãe terra, por mãos assassinas, quase sempre a mando de quem, na cegueira da ambição desenfreada, pela posse do dinheiro, dos bens de toda a terra e do poder, pagam pistoleiros violentos, para executarem quem atravessa seu caminho, denunciando seus intentos criminosos e anunciando com a verdade da própria vida, a solidariedade irrestrita com os injustiçados e oprimidos.

Nas camisetas e faixas, nos estandartes e cantos, nos corpos de seus parentes que estão conosco e nas palavras testemunhais dos pastores, especialmente do Poeta e Profeta, Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, com seus mais de 80 anos, 40 dos quais vividos nessa região, uma das mais violentas do Brasil. Marcado, há vários anos pelo Parkinson, Pedro, fez ecoar ainda com vigor que a fé lhe confere, sua mensagem de teimosa e resistente esperança pascal.

Ao som dos tambores e mantras de diversas tradições místicas, entra no grande espaço, o cortejo de mulheres, portando vasilhas pintadas com motivos indígenas, levando águas e flores. Circulam e dançam em volta da fogueira. Em seguida chegam crianças, meninos e meninas do povo dali, trazendo belos estandartes, com fotos e nomes dos (as) mártires, para o centro da grande roda. A equipe de coordenação vai orientando. A saudação de acolhida, com um toque orante, veio do atual bispo da Prelazia, Dom Leonardo. Finalmente, entra a Cruz do P.e João, conduzida por jovens mulheres. Do Círio Pascal, sai o fogo, posto na fogueira e nas velas das pequenas lanternas, recebidas por cada pessoa presente. A praça, rapidamente, se transforma numa constelação de luz. Um casal de Araras passa sobre nós, num belo e sereno vôo, costurando uma linha livre e sutil, ligando a lua, a fogueira e o ultimo vestígio do sol, exatamente na direção por onde seguimos em Caminhada, entoando os cânticos conhecidos: “Sou, sou teu, Senhor, sou povo novo, retirante, lutador!”, “Vidas pela vida, vidas pelo Reino”, “Ribeirão Bonito, cruz do P.e João!”...

Foram mais de três quilômetros até o pequeno Santuário dos Mártires, construído na margem esquerda da rodovia de quem sai de Cascalheira, logo após o pequeno rio, chamado Ribeirão Bonito. No trajeto alguns testemunhos, gritos de denuncia, das vitimas indígenas, jovens, mulheres, trabalhadores (as), cujos direitos sagrados estão sendo desrespeitados pelos atuais senhores do latifúndio, do agro-negócio, da droga, do sistema bancário. Passamos bem ao lado, da capelinha, onde o Padre João Bosco Penido Burnier, Missionário Jesuíta, viveu a sua última agonia, depois de ser alvejado à queima roupa, por um policial, no dia 12 de outubro de 1976. P.e João, acompanhava D. Pedro e foram pedir em favor de duas mulheres que estavam presas e eram torturadas injustamente. Ali, foi celebrada uma emocionante Vigília no dia anterior.

Ao chegarmos ao Santuário, mais alguns testemunhos. Um momento para a leitura Bíblica, a prece do Pai Nosso, a benção e partilha de um tipo de bolinho popular na região. Para encerrar a noitada festiva, nós, artistas presentes animamos o povo, com cantos e poesias. Pelas onze horas da noite, retornamos para as casas e escolas, onde fomos acolhidos, com carinho pelas famílias da cidade.

NA EUCARISTIA, O BRILHO DA GLÓRIA PASCAL!

A manhã do domingo, 17 de julho, estava luminosa pelo sol e a beleza de cores, no espaço, atrás do Santuário dos Mártires, preparado para a Missa de despedida da Romaria, concelebrada pelos bispos D. Leonardo, D. Eugênio, bispo da cidade de Goiás e pelo próprio D. Pedro e mais de 30 padres.

Toda celebração teve como foco principal a vitória pascal de Jesus e de todas as testemunhas da Ressurreição, desde os discípulos de Emaús (Lc 24,13), lembrando a multidão dos que lavaram suas vestes existenciais no sangue do Cordeiro (AP 7,9) e de quem, neste tempo presente, mantém a fidelidade a causa maior da vida!

Após a comunhão, ainda alguns testemunhos e denuncias, pela boca dos representantes indígenas; Cacique Marcos e sua mãe, do povo Xucuru, de Pernambuco, que fez uma bela prece aos Encantados, pela proteção da terra e dos seres vivos. Os Xavante, na sua dura luta pela retomada de sua terra tradicional Marãiwatsédé, no Mato Grosso, de onde foram deportados na década de 1960 e que retornaram em 2004 decididos a não abrir mão da terra sagrada, onde está sua memória e foram plantados os corpos de seus ancestrais.

Antes da benção e envio final, a mensagem emocionada de Pedro, temperada de carinho, profecia e convocação para a fidelidade no testemunho pascal: “multipliquem as romarias dos mártires da caminhada!... Esta, possivelmente será minha ultima Romaria com os pés nesta terra...!”

Com esta imagem inesquecível e ao som do hino: “Ribeirão Bonito, Cruz do Padre João, Alta Cascalheira, gente do sertão, o suor e o sangue, fecundando o chão!”, romeiros e romeiras da Caminhada, nos despedimos, para as longas viagens de volta, com os corações unidos e aquecidos na fogueira da esperança para a missão urgente, assumida, sem reserva, até o fim, por tantas testemunhas do reinado pleno e eterno da Vida para todas as vidas: João, Chicão, Marçal, Zumbi, Conselheiro, Margarida, Zé Claudio, Maria, Dorothy, Nativo...

Fortaleza, 19 de julho de 2011

Em memória da experiência da Revolução Sandinista de Nicarágua, cujos 32 anos se comemora neste dia.

Zé Vicente - poeta-cantor

Email: zvi@uol.com.br

Romaria dos Mártires em defesa da vida

Fonte: Jornal Brasil de Fato

O fotógrafo Douglas Mansur registra a Romaria dos Mártires da Caminhada, celebração de diferentes lutas dos povos

26/07/2011

João Peres

Fotos: Douglas Mansur

de Ribeirão Cascalheira (MT)

Há uma certa proeza em reunir milhares de pessoas no Araguaia em torno de uma causa. Mais ainda se for em torno de denúncias às violações de direitos humanos e à reafirmação da trajetória de quem caiu lutando por uma causa. E essa gente, de várias partes do Brasil e do mundo, viajaram muitas horas para acompanhar a Romaria dos Mártires da Caminhada, que ocorreu nos dias 16 e 17 de julho.

A romaria acontece a cada cinco anos, desde 1986, para homenagear gente como a Irmã Dorothy Stang, Chico Mendes, Zumbi, o pataxó Galdino Jesus dos Santos, Vladimir Herzog e Franz de Castro. Há sempre uma lembrança especial aos irmãos da América Latina, fundamentais para Dom Pedro Casaldáliga, que defende a ideia de que se deixem de lado as fronteiras regionais ao se falar na opressão dos povos.

"Não é uma festividade, não é um show. É uma memória martirial”, avisa Dom Pedro, que comandou a Prelazia de São Félix do Araguaia durante a maior parte de seus 40 anos de existência.

O mártir local, motivo da celebração, é o padre João Bosco Burnier, morto por policiaismilitares em 1976 ao tentar evitar que duas mulheres fossem torturadas. Ele e Dom Pedro acabavam de chegar à cidade quando receberam a notícia. Uma era irmã e, a outra, a nora de um sitiante que atirou contra um soldado que viera assassinar seu filho. Presas, foram forçadas a ajoelhar no milho e em tampas de garrafa para que confessassem o paradeiro do sitiante. Quando Burnier foi à delegacia cobrar a liberdade das mulheres, foi chamado de “comunista” e “subversivo”. Confundido com Pedro, sofreu um disparo, não resistiu aos ferimentos e morreu. Uma história que teve início na luta pela terra em meio a uma ditadura militar que incentivava a ocupação do interior brasileiro mediante desmatamento e violência.

Fé e política

O início oficial da romaria se dá com a memória dos mártires. Da praça central, em plena noite de lua cheia, os fiéis seguem uma caminhada de quatro quilômetros. Milhares de velas iluminam o trajeto,

guiado por cantos que pedem uma igreja consciente das necessidades dos pobres. É um momento de beleza e de celebração das diferentes lutas, culminando em denúncias das violações de direitos humanos e de terras indígenas, do machismo, do racismo e dos deslocamentos forçados.

O fim da procissão e a celebração da manhã de domingo, sob forte calor, são realizadas ao lado do Santuário dos Mártires da Caminhada. É uma construção simples, que tem em seu interior um altar de madeira local e fotos dos mártires. “Devemos renovar nosso compromisso de seguir em caminhada rejeitando tudo quanto seja mentira, corrupção, morte”, aconselha Dom Pedro. O povo volta para casa, e dentro de cinco anos come estrada novamente até o Araguaia.




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