segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

ROQUE SANTEIRO & TRÊS MOMENTOS DE UMA RELIGIOSIDADE BRASILEIRA. UMA NOTA MIÚDA



Estávamos em 1985 e bem incorporada ao clima da década, surgia a novela "Roque Santeiro". Sátira à exploração política e comercial da fé popular, a novela marcou época apresentando uma cidade fictícia como um microcosmo do Brasil. 

A cidade é Asa Branca, onde os moradores vivem em função dos supostos milagres de Roque Santeiro (José Wilker), um coroinha e artesão de santos de barro que teria morrido como mártir ao defender a cidade do bandido Navalhada (Oswaldo Loureiro). O falso santo, porém, reaparece em carne e osso 17 anos depois, ameaçando o poder e a riqueza das autoridades locais. 

Entre os que se sentem ameaçados com a volta de Roque estão o conservador padre Hipólito (Paulo Gracindo), o prefeito Florindo Abelha (Ary Fontoura), o comerciante Zé das Medalhas (Armando Bógus) – principal explorador da imagem do santo – e o temido fazendeiro Sinhozinho Malta (Lima Duarte), amante da pretensa viúva do santo, a fogosa Porcina (Regina Duarte). E um outro Padre ao gosto da ainda viva "Teologia da Libertação" de nome Albano (Cláudio Cavalcanti).

Destaco na novela três momentos de vivência religiosa que ainda hoje nos fazem pensar (e bem adaptada a situação de 2020 com a volta de um tal de "centrão" nos rincões desse Brasil). Dois momentos de "fundamentalismo cristão" e um sinal de "Teologia da Libertação":

Primeiro. O beato Salu e um catolicismo popular devoto e marcado pela farsa do falso santo. O Brasil desde o século XIX desenvolveu um tipo de catolicismo popular muito raro na América Latina. Beatos, Conselheiros, milagreiros populares muito bem descrito no livro de pesquisa de Paulo Suss em seu: "Catolicismo popular no Brasil" (editora Loyola, 1979). Uma tipologia de catolicismo que nunca sumiu do horizonte espiritual brasileiro e que se ressignifica a cada década.

Segundo. O catolicismo moralista de Pombinha abelha e sua legião farisaica. Um tipo de classe média que orbita na exploração da fé popular e na manipulação para fins políticos. Uma forma de sustentáculo de um moralismo hipócrita bem ao modo de um catolicismo que cada vez mais ganha força em dias atuais através das redes sociais e dos grupos carismáticos em atuação cotidiana. Defender a família heteronormativa, combater prostitutas, a postura anti-moderna e o sonho delirante de um "país católico". Hoje, essa legião que vem dos anos 80, tem na pauta do "escola sem partido" e na "ideologia de gênero" sua razão de ser. Na ultima década, essa forma de catolicismo tornou-se hegemônica entre bispos, padres e leigos engajados na pauta.

Terceiro. Um tipo de padre e prática católica ausente na primeira versão da novela de 1975 e que foi proibida pela ditadura: a teologia da libertação. Aparece na novela o Pe. Albano e sua capela na "rua da lama". Um padre preocupado com os pobres, trabalhadores e oprimidos de toda sorte. O Padre luta para se organizar com o povo e numa frente anti-farisaica. Acolhe as prostitutas e é querido por elas (em cenas antológicas na televisão brasileira até os dias atuais). 

A novela procurava contemplar um tipo de espiritualidade em que vivia o Brasil nos anos 80. Até os protestantes pentecostais estão lá em breves cenas de conversão pública e em que envolve um bandido e sua mudança cristã de vida. Impressionante a atualidade da reflexão que Roque Santeiro nos faz ver ainda hoje. Uma coisa é certa: a direita religiosa que se levantou com força nos 80 e que se preparou durante duas ou três décadas, tornou-se hegemônica em nossos dias. Para nos mostrar que política não é reta euclidiana num país constantemente em transe.

Romero Venâncio (UFS)

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