quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

O que foi feito da igreja sonhada e realizada a partir do Concilio Vaticano II e das Conferências Episcopais de Medellin e Puebla?

O Que Foi Feito Devera (de Vera) 

O que foi feito, amigo

De tudo que a gente sonhou

O que foi feito da vida

O que foi feito do amor

Dá para ter futuro sem profetismo?

Vejo nos olhos de alguns dos meus colegas o que sinto no meu coração. Uma angústia, em momentos de ordenação e reuniões do clero, em que constatamos que os mais jovens não possuem o viés profético que nos acompanha a nós, desde o período da formação. 

Outrossim, em paralelo, abusam das roupagens clericais e fazem da liturgia o ponto mais alto de sua vida sacerdotal. Isso implica em exagero de modos, roupas e utensílios ditos canônicos! Sei o quanto isso nos preocupa quando olhamos para o futuro desta Igreja e nos dilacera, por sentirmo-nos a cada dia, mais aves raras deste passaredo! Apelamos para a esperança que nos mantém vivos, mesmo sabendo-nos uma já minoria bem saliente. 

Em muitas Igrejas Particulares, estamos longe dos mecanismos de decisão e remetidos a uma periferia inexpressiva onde podemos viver um ostracismo, que embora nos proporcione certa qualidade de vida em termos de reflexão, (que chega com a idade rsrs), nos impede de colaborar mais com os avanços propostos por Francisco...

Mas ontem eu me vi refletindo.

Este viés profético que parece hoje se esvair entre os nossos dedos, surgiu na Igreja cerca de trinta anos antes do Concílio sob diversas roupagens e foi tomando corpo na década de quarenta e cinquenta. O Concílio Vaticano I teve pouco impacto ou nenhum em termos pastorais e o de Trento, se impôs até ao século XX. Lubac e Congar são, cada um a seu modo, a expressão do que eu falo. Mas existem vários como Marie-Joseph Lagrange ou Pierre Teilhard de Chardin. Não por acaso, que Roma os tenha perseguido e Congar se tenha referido ao Santo Ofício como “Gestapo”! Emile Poulat e Henri Desroche, acabaram deixando as suas Ordens por não se sentirem “acolhidos” pelo Vaticano. 

Há nesse “movimento” um epicentro: o questionamento de uma eclesiologia que insistia em apresentar a Igreja católica desligada do mundo em turbulência, entre as duas Guerras Mundiais. Isso, embora, por iniciativa papal, tivessem sido fundados Movimentos ditos “sociais”. Não sendo talvez explícito, havia uma refutação da Ação Católica, um desses movimentos de extrema direita nascido para envolver os leigos “no mundo” e que concretamente no Brasil e em Portugal legitimou governos fascistas e integralistas. 

Era uma “novidade” em termos de laicato! Não nos esqueçamos que D. Hélder, no início um homem de direita, foi assistente deste Movimento! Desta agremiação surgiram a Juventude Estudantil Católica, a Juventude Universitária Católica e a Juventude Operária Católica. Estas duas últimas a partir dos anos sessenta, tomaram rumo próprio. O profetismo nessa época, ensaiava seus passos “modernos” num questionamento aos rumos da Instituição romana. Padres e leigos, como os citados anteriormente, conheceram a oposição severa do Santo Ofício à sua eclesiologia e mesmo teologia!

Congar, resgatado um pouco antes do Concílio Vaticano II foi de fundamental importância na redação da Lumen Gentium e da Dei Verbum. Como bem nos lembra o historiador Étienne Fouilloux. Dois documentos de suma importância para uma Igreja que nascia desse Concílio e que refletiam uma ala de “padres conciliares” entre os quais os quarenta - alguns brasileiros - manifestada no Pacto das Catacumbas no dia 16 de Novembro de 1965. 

Nunca será demais lembrar que por esse documento de 13 itens, os signatários comprometeram-se a levar uma vida de pobreza, rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral. Comprometeram-se também com a colegialidade e com a corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus, e com a abertura ao mundo e a acolhida fraterna. Um dos proponentes do pacto foi Dom Hélder Câmara. Este pacto influenciou a nascente teologia da libertação e os rumos da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellín. Isso é história.

Estavam reforçadas as bases para o exercício do profetismo. A Teologia da Libertação se consolidava em Medelllin e em Puebla e em geral, os bispos sul americanos, ou apoiavam ou toleravam essa caminhada eclesial de fidelidade ao Evangelho e opção preferencial pelos pobres. Nos seminários fervia o entusiasmo em trabalhar pelo Reino e os recém ordenados tinham preferência por trabalhos em periferias degradadas ou acompanhando o proletariado em sindicatos, fábricas e cortiços. 

https://www.youtube.com/watch?v=0qnRNOVVpm0&t=1s

Na França concretamente, surgiu a experiência dos padres operários que brotam da Juventude Operária Católica fundada naquele país em 1927. A JOC foi o primeiro movimento católico na França a perceber que a maioria da classe trabalhadora estava longe da Igreja e que precisava de novas formas de evangelização. Em 1941, o dominicano Jacques Loew foi enviado para trabalhar nas docas de Marselha para estudar a condição das classes trabalhadoras. Em 12 de setembro de 1943, foi publicado o livro: "France, pays de mission?", no qual os abades Henri Godin e Yves Daniel, que quando jovens foram lideranças da JOC, abordaram o problema do afastamento dos trabalhadores franceses do cristianismo. Naquele ano, o arcebispo de Paris, criou a "Mission de Paris", que tinha como meta a formação de sacerdotes para evangelizar a classe operária parisiense. Estávamos ainda longe do Vaticano II, mas podemos afirmar com propriedade que experiências como esta, corresponderam a uma gravidez que desembocou em João XXIII! E cujo parto foi o grande Concílio! 

Embora os métodos sejam muito diversos, há neste tipo, tanto a nível de opção pelos pobres, quanto no resgate de textos Sagrados, algo que se soma à própria Teologia da Libertação e à afirmação da dimensão profética da segunda metade do século passado. Em 1952, foi publicado o romance "Les saints vont en enfer”, que enaltecia a experiência dos padres operários. 

Esses padres contavam com o apoio de leigos de ambos os sexos, participaram das lutas dos trabalhadores e se aproximaram do Partido Comunista Francês. Quando o papa Pio XII encerrou esta experiência, ele já encontrou a oposição de três dos cinco cardeais franceses! Mais tarde, influenciado pelo Pacto das Catacumbas (talvez o seu primeiro fruto direto) o Papa Paulo VI reabilitou em 1965 os “Padres Operários”!

Eu menciono aqui esta experiência francesa, pois também ela conheceu praticamente um epílogo na virada dos anos 2000! Em 2005 apenas 80 ainda viviam entre os operários! Falta de vocações em geral? Ou falta de vocação para a vivência do ministério deste modo?!

Já que estamos na França, é impossível avançar sem mencionar os protestos de maio de 1968 que foram iniciados por movimentos estudantis insatisfeitos com o sistema educacional francês e espalharam-se pelo país, mobilizando milhões de pessoas. Na história do século passado, este acontecimento não é um detalhe e nem deve ser visto de forma isolada. 

As imagens dos combates e das violências cometidas pelas tropas americanas no Vietnam espalharam-se pelo mundo e motivaram protestos tanto nos EUA quanto na Europa. Além disso, em abril de 1968, Martin Luther King foi assassinado. Sua morte provocou inúmeras revoltas nos EUA e, claro, também se refletiu nos grupos estudantis da França. 

Na extinta Checoslováquia acontecia uma tentativa do governo de realizar reformas no país no sentido de romper com o autoritarismo imposto pelos soviéticos. Os acontecimentos em Praga eram acompanhados de grande mobilização estudantil.

Tudo isso invadiu os corredores da Igreja.

Ela, sob Paulo VI, avançava nas mudanças preconizadas pelo Vaticano II numa espécie de revolução lenta, mas demolidora, dos pilares tridentinos. Os padres despiam-se dos símbolos que os separavam do Povo de Deus e faziam questão de mostrar em suas mangas de camisa, a proximidade preconizada na Lumen Gentium!

https://www.youtube.com/watch?v=1i8NBiUN_u8&t=6591s


Esta engrenagem, porém, mudou. Ou pior! Iniciou um processo de reversão.  Não teríamos como atribuir um ano certo para este fenómeno, mas diria, sem medo de errar, que foi nos anos oitenta! O Vaticano II perdeu força e a Teologia da Libertação ficou sob fogo cerrado. 





Como bem disse o sociólogo Pedro A. Ribeiro de Oliveira, na análise de conjuntura eclesial “A Igreja do Brasil: entre o fundamentalismo e a profecia”, realizada pelo Cepat, houve uma intervenção clara de João Paulo II e do cardeal Ratzinger, no sentido de interpretar o Concílio de forma a evitar, o que na sua ótica se apresentava como desvios do mesmo. 

Podemos chamamos a isso de “restauração identitária”, que será a plataforma, de onde se orquestrarão todos os projetos de boicote a uma Igreja popular já florescente. Sob a desculpa esfarrapada de se evitar uma “relativização das teses conciliares”! O dedo de João Paulo II em riste, ao padre poeta, místico e ministro Cardenal no primeiro governo de Ortega, estava longe de ser um gesto indelicado de um chefe de Estado estrangeiro! A Igreja de Roma alcançou nos anos oitenta no contexto do final da Guerra Fria, um poder moral que aparentemente tinha perdido. Voltou-se sobre si mesma e se empoderou junto às Igrejas Particulares e movimentos populares e sociais que tinham conquistado o seu espaço à luz do Concílio. Não foram poucos os que escreveram na época, sobre o caráter ambíguo das viagens papais! Confirmar as Igrejas ou interferir nelas?!

Vinte anos depois de terminado o Concílio, João Paulo II lançou a ideia da necessidade de reformular a evangelização, a partir “da Palavra, no Espírito”. Dando continuidade a essa percepção, o Papa Bento XVI, esforçou-se por levar adiante esse projeto. 

De fato, no fim dos anos setenta, em Roma sentia-se fortemente a necessidade de encontrar novos rumos, que unificassem em profundidade a ação de toda a Igreja. Havia sérias desconfianças ao que estava surgindo principalmente na América Latina.  Foi claro em João Paulo um evidente mal-estar em relação às novidades teológicas e pastorais surgidas no pós-concílio; pode estar aqui a génesis do que foi apelidado mais tarde, de “volta à antiga disciplina”.

Embora Paulo VI já o tenha usado em sua exortação apostólica de 1975, Evangelii nuntiandi, o papa polonês menciona o termo Nova Evangelização a primeira vez, na visita inicial à sua terra natal, em 1979 e o universaliza, por assim dizer, no discurso pronunciado na assembleia do CELAM, em Porto-Príncipe, em 1983. Não que tivesse uma ideia exata do que significava essa “nova evangelização”.  Era uma direção a ser seguida pela Igreja.   Um rumo, para dar “novo impulso à missão evangelizadora”, segundo os critérios exclusivos de Roma! “Um novo ardor, novos métodos e novas experiências”! Esta Nova Evangelização mereceu em 2012 um Sínodo dos Bispos para explicar seu verdadeiro conteúdo e finalidade. Bem na linha do Catecismo da Igreja Católica, determinado pela Assembleia Extraordinária do Sínodo de 1985. É difícil não pensarmos que por trás da fundamentação teológica da Nova Evangelização não houvessem resquícios de proselitismo e de apologética. 

A Evangelização 2000 projeto idealizado pelo Padre Tom Forrest em 1984, e plenamente endossado por João Paulo II, foi “unificando” os métodos e as formas de ser Igreja em torno de “uma enorme pescaria”, denotando claramente preocupação com o número de católicos afastados. 

No entanto, entre os anos 2000 e 2010 o IBGE apontou um crescimento de 61,45% dos evangélicos no Brasil! Noves fora nada, foram projetos como este, que ajudaram a proliferar Meios de Comunicação Católicos voltados para a comunicação em massa, sem nenhuma preocupação de formar cristãos maduros na fé, interativos com a sociedade com base na Doutrina Social da Igreja.  Praticamente todos, sem exceção, procuram-se equilibrar entre o poder central da Igreja e os patrocinadores (muitas vezes os governos de plantão). Nestas condições, o profetismo de inspiração vetero-testamentário e do próprio Jesus saiu de cena.

O Pentecostalismo modelo americano penetrou com toda a força na sociedade brasileira. E isso ocorreu concomitantemente com o encolhimento das CEBS levado a cabo, por um desinteresse efetivo das elites católicas e surgimento de movimentos de massa com metodologia e mística, escancaradamente opostos! Como nos diz o sociólogo Ricardo Mariano, “com exceção das denominações que priorizam o evangelismo de massas e realizam cultos em grandes catedrais (...), as igrejas pentecostais tendem a formar comunidades religiosas relativamente estáveis e pequenas. Isto é, elas são compostas por congregações e pequenos templos em que todos se conhecem, residem no mesmo bairro e compartilham coletivamente crenças, saberes, práticas, emoções, valores, os mesmos modos e estilos de vida, moralidade e posição de classe. (...) São laços gerados por meio do contato pessoal, de relações face a face, estabelecidas em frequentes e sistemáticas reuniões coletivas realizadas semanalmente, ano após ano. Eles tendem, assim, a formar relações fraternais de amizade, de confiança mútua e também de solidariedade com os ‘irmãos necessitados’! IHU online).  Ora, isso já conhecíamos nós em nossas opções dos anos 60! A nossa Igreja se afastava, para abrir alas aos “concorrentes”!

Volta a nos lembrar o Ricardo Mariano: “O avanço pentecostal no Brasil contribuiu para intensificar o declínio numérico da Igreja Católica e da Umbanda e para "pentecostalizar" parte do protestantismo histórico e do próprio catolicismo. O chamado "avanço das seitas" pentecostais, nos termos do papa João Paulo II, e a formação do pluralismo religioso levaram a religião hegemônica a rever sua prédica e suas estratégias institucionais e a reavaliar sua relação com as demais religiões presentes em solo nacional, em detrimento do ecumenismo”! A Igreja Católica mudou. E se mudou, mudaram também os métodos de ação e a preparação de novos agentes para esse “novo modelo”! Contudo, por incrível que pareça e é um fenómeno que revela uma certa esquizofrenia, a nível de documentos da CNBB; até aos dias de hoje, as linhas de ação evangelizadora correspondem ao Vaticano II, a Medellin, a Puebla e nomeadamente a Aparecida!

Poderá estar a Igreja Católica vivendo uma situação semelhante à que vitimou um avião da TAM em 2007? Com uma turbina girando para frente e outra para trás, o JJ 3054 se desgovernou: guinou à esquerda no último terço da pista, deslizou sobre o gramado, avançou contra um muro, cruzou a avenida Washington Luís e se chocou a uma velocidade de 178 quilômetros por hora contra um posto de gasolina e o prédio da TAM Express.

Todos as 187 pessoas a bordo morreram, além de 12 outras em solo. Uma turbina freava e a outra acelerava!

Exagerei, claro. Mas os nossos Seminários, praticamente sem exceção, estão formando jovens para uma Igreja que não existe mais. Então nos perguntamos: é esquizofrenia, ou projeto de recriar com eles, a Igreja que ficou pelo retrovisor?! Temos motivos para vivermos preocupados sim!  Mas existem outras perguntas. Como será uma Igreja em pleno século XXI sem a dimensão profética e se ausentando dos grandes debates, seja pela má formação dos seus quadros, ou quiçá por um alheamento voluntário dos mesmos! Francisco tem cumprido o seu papel como ninguém esperava, após João Paulo e Bento. Mas ele tem recebido o que vem sendo chamado de “oposição híbrida”! Os aplausos pela frente dão lugar a críticas amargas pelas costas! O esvaziamento do profetismo aliado ao negacinismo e tendências de engrossar grupos de extrema direita, é fatal para a Igreja de Jesus Cristo. Óbvio que o Espírito Santo dará um jeito... Mas esse é outro assunto!

Por enquanto fico com as palavras de Halik: Uma das manifestações do triunfalismo é o clericalismo: aqueles que estavam destinados ao humilde serviço da comunidade tornam-se uma "classe dominante", um governo sagrado (hierarquia) que reivindica o monopólio da verdade”! O profetismo que embalou os nossos sonhos e que me tirou de meu país aos 25 anos, pode estar dando lugar a um triunfalismo modelo dom Quixote! Sem inimigos reais, sem dinheiro, sem poder! E se observarmos a origem dos nossos vocacionados, veremos um círculo vicioso e pernicioso: Comunidades “especiais” que geram padres para reforçar esse modelo! A estes, a nossa visão de Igreja e Ministério diz cada vez menos e nos associam a uma esquerda que deve ser extirpada da “Igreja de Cristo”!

Manuel Joaquim R. dos Santos

Londrina

Fev 22


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