Relatos de uma “edicta”: A “escola dos editais” e contexto contemporâneo da produção cultural brasileira
Para falar do contexto atual de atuação do produtor cultural de artes cênicas, usarei como principal referência a minha própria experiência enquanto produtora baseada no Rio de Janeiro, atuante na área há mais de 15 anos.
Sempre que estou em uma roda de conversa e me perguntam qual é a minha profissão, respondo que sou relações públicas e trabalho com produção cultural. A próxima pergunta então é: qual área da cultura? Eu respondo teatro, dança e música. Instantaneamente, a pessoa sente um comichão nos lábios e então emenda: dá dinheiro?
Até poucos anos atrás a resposta era certeira: “Sou da escola dos projetos patrocinados via lei de incentivo e editais para cultura. Aprendi a embrulhar o peixe no papel de presente que o patrocinador quer receber.”
Isso significa que, ao longo da minha carreira, aprendi a trabalhar eficientemente com os editais e com a captação via este mecanismo. Outro dia, ouvi o neologismo “edicto”, que altera a palavra inglesa addicted (que significa viciado), batizando o viciado em editais: me identifiquei.
A lógica era a seguinte: enquanto produtora, eu articulava os parceiros artísticos, criando com eles os projetos que nos interessavam trabalhar. Como trabalhar com arte é pura emoção, confesso que o palpitar do coração sempre esteve ali na hora de abrir o link com o resultado do edital. Portanto, não se tratava de uma relação fria entre criador (eu e meus parceiros) e criatura (os projetos), mas sim algo que criávamos apostando que seria possível contribuir para o conforto na alma dos espectadores e com o debate sobre os rumos, as vicissitudes e as idiossincrasias da arte contemporânea. Com este trabalho muito prazeroso – é preciso reforçar – conseguíamos pagar as contas do mês.
Aos poucos, as negociações de valores com os patrocinadores começaram a ficar mais duras e os recursos cada vez mais escassos. Eu, zelando pela perenidade da relação com os patrocinadores e já entendendo o anúncio de tempos diferentes, reunia os artistas, prestadores de serviço e fornecedores, neste e em outros projetos anteriores, e negociava valores, renegociava materiais e quantidades sempre na tentativa de fazer caber nos orçamentos menores o mesmo peixe que eu havia embrulhado especialmente para um determinado patrocinador.
Posso dizer, sem medo, que esta fonte de recurso foi secando aos poucos.
Aos poucos também fui sacando que a lógica por trás do binômio “patrocínio via lei de incentivo x projetos culturais realizados” estava falindo… De fato, havia muitos sinais da bancarrota: Meus colegas começavam a produzir sem dinheiro; CPI da Rouanet; Compliance; Produtores e atores mais antigos lamentando o tempo que teatro se pagava com bilheteria e praguejando a lei federal de incentivo à cultura por terem mal acostumado os produtores e artistas que não precisavam mais correr atrás de público (essa última constatação é assunto de outro artigo).
A história não para aí: Editais federais e municipais foram cancelados sem maiores explicações; Artistas consagrados da musica – que ainda viviam de bilheteria – passaram então a concorrer aos editais de patrocínio. Obviamente, ganharam. Afinal, quem dá mais visibilidade: um grande cantor da MPB ou meu projeto de sambas, maxixes e modinhas? Essa está fácil de responder… Não vou entrar aqui em detalhes, mas com tudo isso ruindo, também vi – e ainda vejo – alguns teatros fecharem e muitos colegas técnicos e administradores serem demitidos.
Enfim, o meu modelo de negócio que ia muito bem, obrigada… faliu!
Eu sei que a saída é se reinventar (ou mudar pra um sítio na serra… alguns colegas fizeram isso também). Pensar fora da caixa tem sido um grande desafio para mim. Minha meta todas as manhãs é pensar em estratégias de sustentabilidade de uma produção cultural brasileira dentro desta nova perspectiva.
Publicado originalmente em Cultura e Mercado. AQUI
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