quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Afinal, o que querem os partidos-movimento?

Eles prometem uma nova esquerda, indispensável. Mas, como mostra Alexandria Ocasio, talvez seja a hora de construir programas claros, e uma estrutura orgânica que vá além da eterna “consulta às bases”
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O núcleo de qualquer projeto hegemônico efetivo tem que ser uma nova economia política que ancore a revolução nos valores que os populistas de esquerda estão, corretamente, interessados em atingir. Nesse sentido, Margaret Thatcher foi uma gramsciana muito melhor do que muitos de seus epígonos quando explicou as premissas básicas de seu projeto político: “economia é o método; o objeto é mudar o coração e a alma”.
The Digital Party, de Paolo Gerbaudo
Foi o trecho acima — de um artigo de Chris Maisano publicado em 11 de fevereiro passado pela revista Jacobin — que me levou a aceitar de vez o desafio do editor do Outras Palavras, Antonio Martins: escrever uma coisa meio inusitada, a resenha de uma resenha de um livro que não li. Ambos havíamos gostado muito do texto de Maisano, mesmo sem poder confrontá-lo com a obra resenhada – The Digital Party: Political Organization and Online Democracy, de Paolo Gerbaudo. Antônio me convenceu que valia a pena tentar. Que os leitores julguem o resultado da invenção.
O título da resenha já provoca: The Party Has Logged On (O Partido Se Conectou, em tradução muito livre). E Maisano se dedica, muito bem, a desenvolver ideias próprias, a partir de pontos de relevância que identifica no trabalho de Gerbaudo. A análise se concentra no surgimento – e, principalmente, nas contradições e problemas – de formações políticas com concepções e estruturas radicalmente diversas dos clássicos partidos de massas e quadros da esquerda. O foco está nos Partidos Piratas (Escandinávia, Alemanha, Holanda, Leste europeu); no Movimento Cinco Estrelas (Itália); no Podemos (Espanha); no França Insubmissa; no Momentum, do Partido Trabalhista britânico; nos Socialistas Democráticos da América (EUA).
A premissa de que parte Gerbaudo, segundo Maisano, é que, independentemente de seu posicionamento ideológico, esses novos partidos (que denominam “digitais”) compartilham um compromisso com a “democracia real”, expressa na transparência, na participação direta e na “proximidade” viabilizada pelas plataformas digitais. No entanto, mesmo buscando responder aos desafios contemporâneos e à insatisfação generalizada com os partidos tradicionais, os “digitais” compartilham também sérias fragilidades.
Há uma consequência não pretendida no uso reiterado de mecanismos de consulta direta a filiados e simpatizantes por parte dos partidos “digitais”: a extinção dos quadros intermediários que, nos partidos tradicionais, sempre fizeram a mediação entre direção central e bases e, muitas vezes, atuaram como elemento de redução de tentações “caudilhescas” das principais lideranças partidárias.
“A análise de Gerbaudo indica que esses processos, ostensivamente mais horizontais, participativos e democráticos, frequentemente fortalecem a posição dos líderes partidários em relação aos demais membros do partido. (…) [Sem uma estrutura intermediária], como Gerbaudo aponta, [os partidos] se arriscam a criar uma ‘aristocracia da participação’, na qual membros com mais tempo ou outros recursos disponíveis desfrutam de influência desproporcional na vida organizativa”, afirma Maisano.
Os partidos “digitais” se apoiam em uma base social bem diferente dos partidos tradicionais. “Enquanto os clássicos partidos de massas estavam umbilicalmente ligados a classes sociais bem definidas, os partidos digitais buscam uma base de suporte muita mais amorfa e instável. Gerbaudo os chama de ‘Povo da Rede’, uma massa de “outsiders conectados’, cujo níveis de educação relativamente altos são confrontados com uma precariedade econômica persistente e com uma sensação generalizada de alienação em relação à política tradicional e às instituições. Eles tendem a ser jovens, não organizados em sindicatos, partidos ou outras organizações sociais e extremamente confiantes nas tecnologias de comunicação digital e nas plataformas de mídia social.”
A obsessão pela participação direta, no entanto, tem levado a uma preponderância de forma sobre conteúdo e mascarado o surgimento de novas hierarquias internas, ainda mais verticalizadas. “Todos os novos partidos digitais são intimamente associados a uma liderança carismática, cujo nome é virtualmente sinônimo da própria organização. Como Gerbaudo argumenta, esses partidos são definidos por uma dinâmica organizacional bem distinta, que ele denomina ‘centralização distribuída’: um ‘hiperlíder’ cercado por uma pequena coterie no topo e, embaixo, uma ‘superbase’, engajada mas principalmente reativa. (…) Na visão de Gerbaudo, a mediação, longe de ter sido eliminada, tornou-se mais disfarçada e mais centralizada.”
Gerbaudo argumenta que o carisma pessoal do “hiperlíder’, a despeito de seus óbvios riscos, pode oferecer uma solução temporária para a fraqueza – ou mesmo desmonte – das organizações coletivas dos trabalhadores, provocada pela onda liberal, Diz Maisano: “Atualmente, figuras de liderança continuarão a jogar um papel decisivo, dando voz ao descontentamento generalizado e arregimentando pessoas de posições sociais disparatadas em torno de um projeto político mais coerente.”
As novas formações partidárias têm tentado uma “engenharia reversa”, oposta à tradição de longa construção dos antigos partidos de massas da esquerda: chegar ao poder de Estado o mais rapidamente possível para, a partir dele, consolidar sua base de apoio na sociedade.
Como escreve Maisano, há lógica nessa estratégia, mas também há um risco considerável de “deixar suspenso no ar” um governo de esquerda, sem força social real, como tristemente exemplificado pelo Syriza na Grécia. As experiências de Jermy Corbyn (Reino Unido) e Bernie Sanders (EUA) seriam movimentos no sentido contrário, buscando ter uma base social mais orgânica e com um núcleo de classe mais definido.
A “transversalidade” social dos partidos “digitais” busca ganhar apoio em todo o espectro da sociedade. Tem sido bem sucedida como tática eleitoral mas, ao dar pouca importância aos interesses materiais e ao buscar representar “todos que concordam”, torna-se politicamente incoerente e tem grande dificuldade em explicitar o que exatamente o partido fará se e quando chegar ao poder de Estado.
Para Maisano, apesar dos partidos associados a um “populismo de esquerda” reivindicarem seguidamente a herança de Gramsci, é difícil conciliar tais afirmações com a recusa a uma política de classe. Afinal, foi o sardo quem escreveu, nos Cadernos do Cárcere: “a reforma intelectual e moral tem que estar ligada a um programa de reforma econômica – de fato, o programa de reforma econômica é precisamente a forma concreta pela qual toda reforma intelectual e moral se apresenta.”
Como aspecto positivo, Maisano identifica movimentos no rumo de uma política de classe mais explícita tanto no Podemos espanhol como, principalmente, no “New Deal Verde”, proposto pela deputada estadunidense Alexandria Ocasio-Cortez, que articula a luta contra o aquecimento global a um programa econômico centrado nos interesses materiais dos trabalhadores.
Que Maisano também feche esta resenha da resenha do livro que não li.
“Os velhos partidos de massas da Esquerda se enfraqueceram não somente por terem estruturas organizacionais antiquadas, mas porque implementaram políticas que atacaram e desorganizaram sua base tradicional. Atualizar a forma partido, para que se adeque ao momento presente, é um aspecto indispensável de reconstrução de uma alternativa política ao capitalismo. Porém, se os novos partidos digitais da Esquerda não se comprometerem com um projeto de reorganização da classe trabalhadora que vá ao encontro dos interesses dela, eles poderão se apagar tão rapidamente quanto surgiram.”
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