terça-feira, 31 de dezembro de 2019

O ANO ÀS VEZES NÃO ACABA, ELE SE SUICIDA, ASSIM COMO TORQUATO NETO

Abílio Neto

Ontem, 29/12/2019, como se não me bastante este governo farsante e esquizofrênico de Bolsonaro, tive uma péssima notícia: o falecimento do músico, compositor, agente cultural e educador CARLOS PINTO em setembro deste ano. Mas quem o conheceu? Poucas pessoas. Foi um artista que não teve o sucesso que merecia. Carlos me ligou direto a Torquato e, triste, voltei no tempo para me lembrar um pouco de 1972, a época do ‘Brasil, ame-o ou deixe-o'! 

Torquato Neto foi jornalista diplomado, poeta, cronista, letrista de música, agente cultural e polemista. Um ser humano muito inteligente. Também foi defensor das vanguardas brasileiras, ativo na cena cultural, tropicalista e parceiro de Gil, Caetano, Edu Lobo e Glauber Rocha. Matou-se com 28 anos e 1 dia (em 10/11/1972), trancando-se no banheiro e abrindo o gás. Deixou mulher e 1 filho. Seus amigos não perceberam sua reclusão, mas suas poesias recolhidas após sua morte demonstravam que o suicídio para ele seria algo mais do que inevitável. Curto e objetivo no bilhete de despedida: ‘pra mim chega’. 

Um desses poemas encontrados em seus pertences é GO BACK, brilhantemente musicado por Sérgio Brito, de OS TITÃS, em 1984. Interessante que todo suicida, ansioso por natureza, tem pressa que tudo dê certo logo. Se um jovem de 28 anos dizia que não tinha tempo a perder, imagine um velho na casa dos 70 ou mais insistindo no incerto, duvidoso e problemático? Pois é, a lentidão dos normais ao decidir sobre coisas simples, mas potencialmente prazerosas, os faz perder, quem sabe, momentos de grande felicidade na vida. Então, os loucos são os suicidas ou somos nós? Há muito tempo que insisto na tese de que a normalidade das pessoas, no mais das vezes, é o que o faz a loucura delas. É o caso daquela senhora normalíssima, minha conhecida, que largou o marido após quase 30 anos de casamento dizendo que ele era sujo e ela limpíssima. Puxa, levou todo esse tempo para descobrir isso? 

Foi para o pai de Torquato, Hely, que Caetano Veloso, colega do filho num colégio de Salvador, compôs CAJUÍNA, ao visitá-lo em Teresina. Chorando muito ao ver fotografias dele penduradas na parede da casa, aquele incrível senhor o confortava, deu-lhe cajuína para beber e ainda foi ao jardim e colheu um botão de rosa que ofereceu ao cantor e compositor baiano. 

Torquato era filho único e saiu de casa aos 17 anos para estudar em Salvador. Depois foi morar no Rio de Janeiro onde viveu intensamente seus 28 anos e foi um dos nomes mais importantes da Tropicália. O promotor aposentado Hely disse que só veio a conhecer melhor o filho depois que ele se foi deste mundo quando pôde ler seus poemas. Como espírita que era, declarou antes de falecer que se sentia confortado ao saber que Torquato reencarnou como filho de uma prostituta em Picos. Não me perguntem como ele teve essa certeza. 

Para mim Torquato Neto era um poeta único: simples e direto. Alguns dos seus poemas nos atingem como se fossem lâminas de barbear, mas ser poeta é mais do que colocar açúcar na água ou fazer versos vazios. Fechado em si mesmo, ele decidiu morrer quando se sentiu abandonado pelos amigos e percebeu que Médici mandava torturar e matar aqueles que considerava inimigos da ‘Revolução’. Pois é, a amizade que lhe faltou quando estava em crise existencial foi a chave de toda a tragédia. Ah se déssemos o devido valor às verdadeiras amizades como tudo seria tão diferente na vida.  

Mas houve outro fato que ele, como compositor inteligente, absorveu: em 1972, os Novos Baianos lançaram o disco ACABOU CHORARE, um divisor de águas na música brasileira, trazendo melodias alegres e letras vadias ou descompromissadas que contrastavam com a poesia belíssima, porém, às vezes muito triste, de Torquato. Talvez tenha sentido aí que seu momento passou e decidiu partir 

TRÊS DA MADRUGADA, poema de Torquato, foi musicado de forma lindíssima por Carlos Pinto (e lançado em compacto em 1973), um violonista, compositor e cantor de raro talento, natural de Belém do São Francisco/PE, falecido em 04/09/2019, às vésperas de completar 71 anos. A música, no entanto, é mais conhecida na voz de Gal Costa que fez uma de suas interpretações mais belas e sensíveis da sua carreira, acompanhada somente do sentimental violão de Gilberto Gil, em gravação também de 1973, que é um dos grandes destaques da música brasileira em qualquer época que uma pessoa se sinta sozinha e abandonada. 

Comparar a letra de TRÊS DA MADRUGADA, que veio de um poeta que deu um mergulho profundo na solidão humana, com qualquer letra porra-louca de OS NOVOS BAIANOS, não dá, e besta és tu se insistires nisso. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. O som dos baianos era excepcional, mas suas letras eram alucinógenas e típicas de quem ‘viajava’ muito pelo sítio de Jacarepaguá, onde eles moravam em grupo no início da década de 70. 

Descanse em paz, Carlos Pinto. Sua melodia mais famosa nos versos de Torquato ainda embalará a arte de muito artista suicida, como o poeta, cantor e violonista Zeto, que se deixou abater pela bebida, ele que cantava muito sua música. Como 2019 é um ano que se suicidou sem esperar pela morte em 31 de dezembro, é até normal sentir um pouco de tristeza. 

Então, caros amigos, feliz 2020 com todas as surpresas que ele nos reserva e, sobretudo, com mais amor, essa coisa que mexe, remexe, vai, volta, sobe, desce e às vezes acaba matando a gente (não estou falando de sexo!). Mas saibam que um cantor de louvor chamado Tony Allyson gravou uma canção que contém, ao meu ver, esse disparate: ‘É o amor de Deus que mexe e remexe/ E faz meu coração bater.’ Como é que a gente pode levar esse tipo de evangélico a sério com esse suposto remexido divino? Caymmi, sim, dizia com acerto: ‘procure uma nega baiana que saiba mexer’ (o vatapá!). 

Abaixo, duas letras de Torquato e um pitaco meu. A letra de TRÊS DA MADRUGADA, de tão triste, me recuso a transcrevê-la, porém vocês a captarão de forma cristalina da belíssima voz de Gal. Pra mim chega de 2019. Dane-se! 

COISA MAIS LINDA QUE EXISTE 

Coisa linda nesse mundo
É sair por um segundo
E te encontrar por aí
E ficar sem compromisso
Pra fazer festa ou comício
Com você perto de mim
Coisa linda nesse mundo
É sair por um segundo
E te encontrar por aí
E ficar sem compromisso
Pra fazer festa ou comício
Com você perto de mim
Na cidade em que me perco
Na praça em que me resolvo
Na noite da noite escura
É lindo ter junto ao corpo
Ternura de um corpo manso
Na noite da noite escura
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim
O apartamento, o jornal
O pensamento, a navalha
A sorte que o vento espalha
Essa alegria, o perigo
Eu quero tudo contigo
Com você perto de mim
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim de mim
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim de mim

GO BACK 
Você me chama
Eu quero ir pro cinema
Você reclama
Meu coração não contenta
Você me ama
Mas de repente
A madrugada mudou
E certamente
Aquele trem já passou
Se passou, passou
Daqui pra melhor
Foi!

Só quero saber
Do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder
Só quero saber
Do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder...(2x)

Você me chama
Eu quero ir pro cinema
Você reclama
Meu coração não contenta
Você me ama
Mas de repente
A madrugada mudou
E certamente
Aquele trem já passou
Se passou, passou
Daqui pra melhor
Foi!

Só quero saber
Do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder
Só quero saber
Do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder...(2x)

-"Não é o meu país
É uma sombra que pende
Concreta
Do meu nariz em linha reta
Não é minha cidade
É um sistema que invento
Me transforma
E que acrescento
À minha idade
Nem é o nosso amor
É a memória que suja
A história que enferruja
O que passou
Não é você
Nem sou mais eu
Adeus meu bem
Adeus! Adeus!
Você mudou, mudei também
Adeus amor! Adeus!
E vem!"

Só quero saber
Do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder
Só quero saber
Do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder...(2x)






Abílio Neto, pernambucano, 70 anos, é memorialista e pesquisador musical, além de  pequeno colecionador de discos. Seu arquivo contém algumas obras que se tornaram preciosas na música brasileira diante do mau gosto popular nessas duas primeiras décadas do século XXI. São frevos, sambas, maracatus, forrós, xotes, polcas, toadas, marchinhas, merengues e choros. Tem mais de 400 artigos escritos sobre música que foram publicados em sites da internet, ‘terreno’ que se notabiliza pela impermanência. Seus artigos provam que a História também se conta através da música.

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Música e sociedade, música e política, música e afeto, amizade, alegria e prazer. Uma delícia quando lemos o texto de uma pessoa que sabe fazer essa combinação. É o que faz Abilio Neto, o qual conhecemos nos anos do Overmundo, entre 2006 e 2011, primeiro portal nacional de internet dedicado a difusão  da  cultura independente, das periferias, dos sertões,   dos que mesmo produzindo com qualidade e compromisso, não conseguiam espaços para fazer divulgação nos cadernos culturais dos grandes jornais.
Ler o texto do Abilio Neto é como conversar ao cair da tarde em um alpendre de varanda das casas coloniais, cercados pela brisa suave que sopra das árvores, grandes e pequenas que cercam o redor da casa. Ou então,  é como conversar em uma barraca de praia, sentindo o vento que vem do mar soprando em nossas caras, bebendo uma boa caipirinha, intercalando com água de coco.

Abilio Neto passa a ser colaborador eventual do blog da Ação Cultural a partir desse mês de dezembro de 2019. Vida longa parceiro! 

Zezito de Oliveira



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