comportamento
O ativismo político faz bem ao mundo e a quem se mexe
Não é só consciência, é
alto-astral. Uma pesquisa mostra que a participação política e social
está entre os fatores que trazem felicidade
às pessoas
por Adriana Cardoso
publicado
23/09/2013 11:56
maurício morais/RBA
“É importante que as pessoas comecem a se interessar por política”
A gente não sabemos escolher presidente/ A gente
não sabemos tomar conta da gente/ A gente não sabemos nem escovar os
dentes/ Tem gringo pensando que nóis é indigente/ Inútil/ A gente somos
inútil. O rock irreverente da banda Ultraje a Rigor fez tanto sucesso,
há quase três décadas, que acabou animando uma geração de adolescentes
que mal sabia o que era canção de protesto – dada a ausência de então – a
ir às ruas com a mesma irreverência. Uma camiseta com os dizeres “Já
sei escovar os dentes, quero votar pra presidente” foi vista pela
primeira vez num comício das Diretas em Belo Horizonte e tornou-se hit
nas manifestações que tomaram o país. Na ocasião, não era incomum os
jovens fazerem a própria arte das camisetas com silkscreen ou pintá-las a
mão para dar seu recado.
Também não é incomum, nas imagens de pessoas em movimento,
identificar uma aura de energia e de alto-astral. Como que dizendo: “Se
mexer para mudar o estado das coisas faz bem”. O engajamento político
não é somente um vetor importante na promoção de mudanças sociais, mas
também um dos fatores que podem fazer as pessoas mais felizes. É o que
mostram os dados do World Happiness Database, em Roterdã, na Holanda,
que coletou informações de estudos de diversos países para mensurar o
que traz felicidade às pessoas ou, melhor ainda, quais mudanças podemos
fazer em nossa vida para nos tornarmos mais felizes.
O estudo, divulgado em julho passado pela BBC Magazine, coloca o
engajamento social numa posição tão importante para a satisfação pessoal
como ter uma relação amorosa longa e estável, ser ativo nas horas
vagas, sair para jantar de vez em quando e tomar um chopinho com os
amigos. Ah, aos machistas de plantão, o levantamento também revela que
os homens tendem a ser mais felizes em um ambiente no qual as mulheres
estão em pé de igualdade.
O diretor do Database e professor da Erasmus University de Roterdã
Ruut Veenhoven diz à BBC Magazine que os dados coletados ao redor do
mundo mostram que ter uma vida socialmente ativa e participativa é mais
eficiente para trazer felicidade do que traçar metas. Segundo o
professor, estabelecer objetivos e segui-los de maneira obsessiva pode
levar o indivíduo a ser mais angustiado.
Três países latino-americanos estão na lista dos dez mais felizes, em
termos de satisfação geral com a vida: Costa Rica (o primeiro), México
(o sétimo) e Panamá (o último). As demais posições são distribuídas
entre países europeus (todos os nórdicos, onde as pessoas são muito
ativas socialmente) e o Canadá.
A pesquisa ajuda a explicar o que move diferentes gerações de
ativistas. Como a recepcionista Bruna de Souza Lopes, de 27 anos, que
tinha acabado de voltar para São Paulo, após quatro anos morando em
Minas Gerais, quando os protestos começavam a pipocar. Frequentadora das
redes sociais, juntou um grupo de amigos e foi. A mãe de Bruna, a
esteticista Liliane Aparecida de Souza Lopes, de 46 anos, foi da geração
cara-pintada. Levada pela sogra, Margarida, participara dos protestos
pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
À época, Liliane tinha quase a idade da filha hoje. Ela, a filha, a
sogra e o marido Clodoaldo moram no Jardim Fraternidade, entre o Capão
Redondo e o Jardim Ângela, no extremo sul da capital paulista. E, a
despeito da vida difícil na periferia, consideram-se felizes, o que dá
para notar na empolgação com que falam de política – assunto, aliás,
sempre discutido em casa. Era a primeira vez que Bruna participava de
uma manifestação. Nem foi a redução da passagem de ônibus que a motivou.
Foi “pelas outras coisas” e, especialmente, porque aquele momento lhe
dava uma sensação de pertencimento. “Gostei de participar, me senti
importante. Vivemos numa democracia e devemos lutar por nossos ideais”,
assinala. Faz tempo que Liliane marchou pela saída de Collor, e ainda
lembra muito bem. “Estava um dia muito chuvoso, mas havia um mar de
gente nas ruas. Ficou marcado.”
Embora nunca tivesse ido às ruas, o ativismo de Bruna começou quando
ela trabalhou como recepcionista num hospital em Minas. “Comprei muita
briga com médico que fazia corpo mole para atender pacientes.”
A psicóloga Ana Lúcia da Silva pondera que a ida às ruas é importante
por ser impulsionada “por um desejo de mudança”, mas a sensação de
felicidade vai depender das respostas. “A experiência de se sentir
fazendo parte de algo maior pode trazer uma satisfação duradoura ou não,
dependendo da resposta efetiva às necessidades individuais e
coletivas”, diz a terapeuta do Hospital Israelita Albert Einstein, de
São Paulo.
Sensação de presença
Wesley Mendes Souza, de 17 anos, foi a dois protestos – um no Capão
Redondo, próximo de onde mora, e outro na Avenida Paulista, na companhia
da prima Bruna. Embora consuma quatro horas do seu dia dentro de
ônibus, trem e metrô, ele viu uma ocasião de expressar insatisfação.
“Além do transporte público, precisamos de melhorias na saúde, mais
vagas em creches e mais oportunidades para os jovens.”
Estudante do 1º ano do ensino médio numa escola pública, Wesley sente
na pele os efeitos do abismo de oportunidades. Ele mora com a mãe e a
irmã numa casa de quatro cômodos na região do Jardim Ângela, onde pagam
R$ 750 de aluguel. Filho de pais separados, passou muito de sua
adolescência em casa e sozinho. Há pouco mais de três meses, por meio do
programa Jovem Aprendiz, conseguiu uma vaga na área de contabilidade de
um hospital no bairro da Barra Funda, na zona oeste. Ganha menos de um
salário mínimo por mês e ajuda em casa. A rotina começa às 6h e termina
por volta da meia-noite. Mas não reclama – abraça a oportunidade. Não
foi à toa que os protestos trouxeram a Wesley, como ele afirma, “maior
consciência política” e o fizeram sentir-se parte mais ativa da
sociedade.
O advogado Aylton dos Santos Lira, de 36 anos, conta que nunca viu
algo parecido durante quatro anos em que morou na Alemanha. “Há anos eu
sonhava com isso”, diz ele, que não participou das manifestações de 20
anos atrás por achar que havia uma manipulação de parte da mídia. Na
ocasião, em vez do verde-amarelo, adotou o preto para protestar.
Lira esteve na manifestação de 13 de junho, quando a polícia militar
do estado de São Paulo “desceu o sarrafo” em quem era manifestante e em
quem não era. Morador das imediações da Rua Maria Antônia, na região
central, ele foi um dos que ajudaram a socorrer a repórter do jornal
Folha de S.Paulo Giuliana Vallone, ferida num olho com um tiro de bala
de borracha disparado por um dos policiais da Tropa de Choque. “Eu
sonhava com isso, sem partido, sem sindicato (liderando as marchas).
Quando vi a multidão, fiquei tão emocionado que comecei a chorar.” Desde
que retornou, observa o brasileiro mais engajado, participativo e
consciente.
O professor Edson Passetti, do Departamento de Política e do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, coordena o
Núcleo de Sociabilidade Libertária (NU-Sol) na universidade. Para ele,
quem acredita que essa é a geração do tédio terá de rever seus
conceitos. “O brasileiro não é tonto, não é só cordial e, como qualquer
pessoa, pode se manifestar de maneiras surpreendentes”, avalia,
enfatizando que o que vem ocorrendo está tirando muita gente de sua zona
de conforto.
Que tal um rumo?
Mas um pouco de “rumo” para sair da acomodação não faz mal a ninguém,
na opinião da argentina Sofia Rosseaux, de 25 anos. Tinha 13 no começo
dos anos 2000, quando sua família veio para o Brasil para fugir do
“coice” do então ministro da Economia do governo de Carlos Menem,
Domingo Felipe Cavallo, que afundou o país numa crise brutal. Filha de
mãe brasileira e pai argentino, a arte-educadora já participou de várias
manifestações na vida, mas afirma que só quando há organização e
propostas claras pelos movimentos. Tomou parte das jornadas de junho por
concordar com o mote do Movimento Passe Livre e avaliar como “ruim e
absurdamente caro” o transporte público.
“Fiquei preocupada com a proporção que tomou, porque havia ali
pessoas que, claramente, estavam entendendo aquela situação de maneira
equivocada”, comenta. Mas não acha que seja de todo ruim, “pois é
importante que as pessoas comecem a se interessar por política”. E,
nesse aspecto, ela observa que na Argentina discute-se política o tempo
inteiro, que as pessoas acompanham o que acontece.
O recente fenômeno agitante não foi exclusividade paulistana.
Surpreendeu dezenas de cidades em todo o país, com momentos de ebulição
em grandes regiões metropolitanas, como Brasília, Rio de Janeiro, Porto
Alegre e Belo Horizonte. Aos 34 anos, a médica Luciana Villela nunca
havia participado de protestos quando decidiu engrossar o coro dos
descontentes na Praça Sete de Setembro, na capital mineira. Achou
“legal”, mas ficou preocupada, pois acredita que a ignorância de alguns
pode transformá-los em “massa de manobra”.
Na opinião do professor Edson Passetti, os protestos evidenciaram
quem é quem dentro das expressões políticas brasileiras. Para ele há
fascistas, sim, como sempre houve em atividades desse tipo. Mas há de se
ter cuidado ao classificar determinados atos como vandalismo puro e
solto. “Aquela farra do ‘casamento da dona Baratinha’ foi
surpreendente!”, diz, lembrando um protesto do dia 13 de julho em frente
ao Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. A festa de casamento de
Francisco Feitosa e Beatriz Barata, para mil convidados e a um custo
estimado em R$ 3 milhões, ficou conhecida nas redes como o “Casamento de
dona Baratinha”. O avô da noiva, Jacob Barata, é conhecido como “rei do
ônibus”.
Lembrada pela beleza, pela alegria e também pela violência, agora a
capital fluminense ficará marcada pelas jornadas que continuam a todo o
vapor. É o que acredita o estudante Raphael Godói, de 16 anos. Ele é um
dos fundadores do Fórum de Lutas contra o Aumento da Passagem dos
transportes públicos e ativista social há muito tempo. Participou do Dia
do Basta à Corrupção e do Ocupa Cabral, entre outras ações, e lembra
que, no começo, enfrentou dificuldades para atrair colegas às suas
causas. Por isso, acreditava ter nascido em época errada.
Morador da Barra da Tijuca, área nobre na zona sul carioca, estuda em
escola particular onde a mãe trabalha e anda menos de ônibus porque dá
pra ir a pé. Mesmo assim, o fórum não esfria os protestos. “Não tinham
esperança de que poderiam provocar mudanças. Hoje, essa esperança
reapareceu”, avalia. Talvez por acreditar que essa geração fosse marcada
por “desesperança” e apatia, muita gente foi pega de calças curtas.
Até o papa Francisco, durante a visita ao Brasil, disse que jovem que
não protesta não lhe agrada. Sua patrícia Sofia, portanto, está
aprovada. Para ela, manifestações desse tipo ajudam “a reconstruir um
sentimento coletivo”, e a sensação de felicidade, como apontada na
pesquisa da universidade holandesa, está no potencial de mudança não só,
ou não exatamente, no país, mas em cada indivíduo. Pelo menos Raphael
Godói, que quis tanto ter nascido em outra época, já se sente bem melhor
exatamente onde está. “Está tudo lindo!”, suspira.
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