Entrevista com Michel Maffesoli: "a crise é um assunto chato"
de Bolívar Torres, Jornal do Brasil
RIO
DE JANEIRO - Você sabe, fui obrigado a me caricaturar”, diz um
sorridente Michel Maffesoli, circulando pelo amplo salão do Copacabana
Palace, onde encontrou o Jornal do Brasil na última sexta, logo antes de
sua palestra na Casa do Saber, para o seminário Panorama do Pensamento
Francês Contemporâneo. Provocador, o sociólogo e professor francês
admite que precisa forçar o traço, exagerar seus argumentos, quando quer
agitar o comodismo intelectual que toma conta das academias. Expoente
do pensamento pós-moderno, Maffesoli acredita que a elite intelectual –
universidades, imprensa, classe política – continuam presos aos velhos
pilares da modernidade. Não conseguem acompanhar as mudanças de
paradigmas do mundo emergente, dominado por outros valores: hedonismo,
energia voltada ao presente, esgotamento das instituições...
Na entrevista, o sociólogo desmonta as certezas do pensamento oficial e fala do lugar do Brasil na nova configuração mundial.
Estamos
em plena crise. A mídia não para de falar de uma crise financeira,
política, de valores... Em seu último livro 'Apocalypse', porém, o
senhor prefere a palavra “apocalipse” ao termo “crise”, mas usando-a em
seu sentido etimológico, ou seja: a revelação de algo novo. A mídia e as
instituições ainda não entenderam que este momento pode ser, na
verdade, a gestação de novos paradigmas?
A
crise é um assunto chato. Sou daquelas pessoas que, para provocar, já
vai logo dizendo que não existe crise (risos). Se fomos reduzir a crise a
uma dimensão econômica e financeira, é claro que ela existe, e que tem
consequências. Mas para mim o que interessa de fato é a emergência de
novos paradigmas. Quando há uma passagem de um momento a outro, como
acontece agora, surgem crateras em todos os lugares. É um pouco como um
garoto quando chega a adolescência. Ele está bem consigo mesmo, em
harmonia com seu ambiente, e de repente começa a ficar com espinhas, vê
mudanças em seu corpo, começa a repensar sua relação com si próprio e
com os outros, sem que haja razão precisa para isso, a não ser uma
passagem a outro estágio. Michel Foucault e outros pensadores mostraram
que a cada quatro séculos, mais ou menos, acontece um cansaço, uma
saturação, uma usura das maneiras de viver e pensar. Estamos vivendo uma
destas usuras. Algo como “a maquinaria funcionou, agora vamos passar a
outra coisa”.
Que novos paradigmas são esses?
Ao
olharmos as práticas da juventude, percebemos que há vitalidade, um
prazer de ser, um prazer do corpo, uma dimensão criativa da existência. O
valor do trabalho já não é mais um fim em si, mas algo ligado à
criação. Antes, o trabalho era o percurso para realizar-se. Hoje esta
realização passa por uma dimensão mais lúdica. A modernidade era o
positivismo, o mito do progresso: casa, futuro, desenvolvimento. Na
pós-modernidade, essa projeção dá lugar ao presente. Não é a primeira
vez que estas mudanças acontecem. O fim de UM mundo não é o fim DO
mundo.
Ligados ao presente, os jovens de hoje já não estão mais presos à ideia de 'projeto'?
Eu
não sei quais são seus debates no Brasil, mas na França a palavra
“projeto” é empregada sem parar, em todos os níveis. Tudo é projeto! Já
escrevi que quando não estamos convencidos de alguma coisa, empregamos
uma palavra repetidamente. Trata-se de uma espécie de encantamento:
cantamos alguma coisa até convencermos os outros e a nós mesmos. As
relações amorosas, por exemplo. Ninguém fala mais de amor do que um
casal que vai se separar. Falam de amor para salvá-lo. O mesmo acontece
com os “projetos”. Mais se fala, menos há.
Mas a falta de projeto não significa, necessariamente, falta de ação e criação, certo?
Existem
grandes sociedades que se concentraram no presente, no hedonismo, no
prazer do momento... O engano sociológico é que havíamos pensado a
modernidade como uma energia que se projetava. A partir do momento que
se vê que não há mais projeto, logo se pensa que não há mais energia.
Mas só porque não se projeta para o futuro não significa que não se
tenha energia. Mobilizando uma energia para o presente, podemos fazer
uma pessoa trabalhar 18 horas por dia! (risos) É uma energia que não
está mais distante, no progresso. Ela está dentro – no ingresso, na
alegria do mundo.
Existe um abismo entre a realidade pós-moderna e as nossas instituições?
Quando
há grandes mudanças, é preciso um tempo para tomar consciência. Nesse
caso, há ainda uma complicação adicional, porque aqueles que têm o poder
de falar sobre as mudanças (jornalistas, intelectuais, políticos)
continuam com os valores antigos da modernidade. Neste sentido, a
imprensa, a universidade e a vida política não acompanharam a vida real.
Toda sociedade precisa de uma elite intelectual. Mas esta elite deve
estar em sintonia com os valores de seu tempo. A nossa, infelizmente,
ficou nos mesmos sistemas modernos do século 20.
Em
seu livro 'A parte do diabo', o senhor fala em relativismo e politeísmo
de valores, e afirma que a vida social não pode mais ser compreendida
como a expressão de um bem único. Mas a disputa entre o Ocidente e o
Islã não seria uma guerra entre dois valores absolutos?
Já
escrevi em algum lugar que a querela entre Bush e Bin Laden é uma briga
conjugal. Ambos têm os mesmos valores, são monoteístas, acreditam em
algo universal e querem impô-lo ao mundo. Mas o que muita gente esquece é
que o Islã hoje faz o que os cristãos fizeram há cinco séculos. O Bin
Laden do momento teve predecessores cristãos, alguns piores. Mas, apesar
disso, vivemos o fim da universalização. A disputa entre os EUA e Bin
Laden é o que em francês chamamos de “combat
d'arrière
garde”. É quando um exército percebe que a guerra está perdida e fica
na retaguarda lutando, sem mais nada a perder, partindo para uma última
tentativa. Normalmente são as brigas mais sangrentas. Tenho um
sentimento de que se trata de um pega-pra-capar do velho universalismo.
Por sua origem multicultural, Obama não poderia ser uma ruptura definitiva com esta universalização de valores?
Obama
é simpático justamente por vir desta mistura. Sua eleição pode abrir os
espíritos em relação aos “pequenos brancos” como Bush ou Clinton,
fundamentalmente mais arrogantes. Obama, ao contrário, tem um lado mais
humano. Mas evito falar por não ter certeza de que se possa esperar algo
dos EUA, que representam o extremo ocidente, os valores ocidentais em
decadência. Houve uma hegemonia americana, assim como houve uma
europeia, mas não é olhando para eles que veremos o mundo emergente.
Os
fenômenos pós-modernos, como a saturação política, o esgotamento da
razão, a fragmentação social em tribos, poderiam ser vistos como uma
volta a certos sentimentos primitivos, misturados a uma tecnologia
sofisticada?
É
verdade que tudo isso renova com atitudes arcaicas. Porque, na verdade,
a pós-modernidade não é mais do que um retorno a uma pré-modernidade,
só que não em sua totalidade. Não estamos mais confrontados à flecha
iluminista do progresso, nem ao círculo nietzcheniano, mas sim à
espiral. Vemos um monte de coisas antigas voltar, com suportes
tecnológicos, como, por exemplo, a internet. Então, sim, há emoções e
outras atitudes arcaicas, mas as encontramos em blogs, flashmobs, fóruns
de discussão...
O senhor disse que o Brasil é um laboratório da pós-modernidade. Por quê?
Cometi
um erro dizendo isso, porque acredito fundamentalmente que seja verdade
(risos). Na verdade, não gostaria de passar por um estrangeiro que fica
opinando sobre o país, como certos colegas, que passam 10 dias no
Brasil e já acham que conhecem tudo e já podem dar lições aos
brasileiros. Mas a primeira vez que vim aqui foi em 1991 e me senti bem
logo de cara, foi amor à primeira vista. Pessoalmente e
intelectualmente. Percebi que havia uma série de pesquisas que colocavam
em valor as características pós-modernas, como a concentração no
presente, a visão do corpo não apenas como instrumento de produção,
enfim, a razão sensível, que não é a negação da razão, mas um
enriquecimento dela. E, para dizê-lo em termos lógicos, o Brasil é um
país com dimensão oximórica – uma figura de retórica que eu uso para
definir ideias opostas, que parecem excluir-se mutuamente mas que, no
fim, se combinam, como num curto-circuito. Mais ou menos como “monstro
delicado”.
E no que diz respeito à estetização do cotidiano, outro tema que lhe é caro, temos nossa arquitetura, cheia de curvas...
Sim,
mas infelizmente vocês tiveram influência de Le Corbusier e da Bauhaus,
uma arquitetura reduzida à funcionalidade. Por outro lado, no caso do
Brasil a funcionalidade foi apagada por uma exageração do puro e simples
tropical. Mais simplesmente, reduzir os ângulos. A modernidade é o
ângulo. A pós-modernidade é o barroco.
17:47 - 07/11/2009
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