sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Play list - Consciência Negra com a Missa dos Quilombos

 

Milton Nascimento - Missa dos Quilombos 


 Invocação à Mariama - Dom Hélder Câmara


Missa dos Quilombos - Cia. Ensaio Aberto - 2002



Coral do Colégio Micael /Kyrie/ Missa dos Quilombos




“A Missa dos Quilombos: Produto Político, Religioso e Cultural”
Rafael Senra 

 1 Mestrando em Letras pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). Email: rararafaels@yahoo.com.br

RESUMO: Este texto pretende analisar a Missa dos Quilombos, de Dom Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento, pensando no caráter múltiplo que esta celebração religiosa evoca, tanto em termos de produto cultural quanto de atuação política de resistência.
Palavras-chave: Missa dos Quilombos; Milton Nascimento; Dom Pedro Casaldáliga; Pedro Tierra; Walter Benjamin.
1. Considerações sobre a Missa dos Quilombos
A Missa dos Quilombos foi idealizada por Dom Helder Câmara, e efetivamente escrita e produzida por Dom Pedro Casaldáliga, na época bispo de São Félix do Araguaia/MT, e Pedro Tierra, poeta. Fruto de dois anos de pesquisa sobre a escravidão negra e o silêncio teológico da igreja católica a respeito do tema, foi pensada como uma continuidade da Missa da Terra Sem Males. Esta, também escrita pelos dois “Pedros” alguns anos antes, tratava da exploração do índio, e da posição da igreja católica sobre o assunto.
Milton Nascimento, que Casaldáliga carinhosamente define como “um negro, criança maior”, foi convidado a musicar a missa/poema, além de cantar parte dela. Com produção à cargo de Frei Paulo César Bottas, a Missa dos Quilombos foi celebrada pela primeira vez para um público de sete mil pessoas em 22 de novembro de 1981, na praça em frente à Igreja do Carmo, em Recife. É um local emblemático para o tema, pois ali, em 1695, a cabeça do líder quilombola Zumbi dos Palmares foi exposta no alto de uma estaca.
A primeira gravação da “Missa dos Quilombos” foi feita dentro da Igreja da Serra do Caraça, em Minas Gerais, e lançada pela gravadora BMG/Ariola em 1982. Consiste em uma versão editada da Missa dos Quilombos, sem grande parte das narrações originais de Dom Helder Câmara, e mesclando músicas de Milton Nascimento e Fernando Brant em alguns momentos. Desde então, várias versões da Missa foram celebradas ao longo dos anos, nem todas envolvendo Milton Nascimento ou os autores das letras e discursos. Algumas dessas
versões misturavam manifestações negras contemporâneas, como o rap e o hip-hop. A mais recente foi feita pela Companhia Ensaio Aberto em 2002, e dirigida por Luís Fernando Lobo.
Dom Pedro Casaldáliga diz que o objetivo da Missa é o de se retratar aos povos negros, herdeiros dos negros escravos da época do império, e se desculpar pelos equívocos da escravidão: “Para escândalo de muitos fariseus e para alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos Confessa, diante de Deus e da História, esta máxima Culpa Cristã” (CASALDÁLIGA , 2006). Porém, apesar de parecer à primeira vista uma atitude da Igreja Católica de retratação oficial perante a sociedade, a Missa foi vetada pelo vaticano, sendo proibida a sua celebração durante quase uma década.
Esse caráter “subversivo” da Missa reflete a fala de Walter Benjamin sobre os interesses do capitalismo de supressão da produção artística do proletariado. Ele inicia seu ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” citando as análises de Marx sobre o capitalismo, feitas em uma época onde esse modo de produção ainda estava em seus primórdios. “(Marx) concluiu que se podia esperar desse sistema não somente uma exploração crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de condições para sua própria supressão” (BENJAMIN, 1994, p.165).
Não só a Missa dos Quilombos se constituiu (em sua primeira versão) um produto cultural sem fins lucrativos, mas seu caráter sincrético também foi um dos motivos que ajudaram a fomentar uma idéia de celebração subversiva, ainda mais em tempos de ditadura militar. O apoio da Teologia da Libertação não era algo muito favorável – na época, “um documento do departamento de estado americano considera a Teologia da Libertação mais perigosa que o comunismo”. (TEIXEIRA, 1998, p.2)
Para Benjamin, a forma mais primitiva de se tratar a arte, baseava-se no culto e na religiosidade. “O valor único da obra de arte “autêntica” tem sempre um fundamento teológico, por mais remoto que seja” (BENJAMIN, 1994, p.171). Quando a reprodução técnica se faz possível, ela se liberta dessas relações que ele chama “rituais”, e passa a fundar-se na política. Depois, ele compara dois valores que podem ser pensados para obras de arte: o valor de culto e o valor de exposição. O valor de culto estava ligado ao uso da magia, posteriormente ao uso religioso, onde as obras eram produzidas para “os espíritos”, ou deuses, e não necessitavam serem expostas. Estas obras, porém, são pensadas para lugares estáticos, e não podem ser transportadas de nenhuma forma, diferente das obras de menor porte e maior valor de exposição, que são produzidas (e reproduzidas) de modo a facilitar seu deslocamento.

Ao tratar desses valores, ele diz que “se a exponibilidade de uma missa, por sua própria natureza, não era talvez menor que a de uma sinfonia, esta surgiu num momento em que sua exponibilidade prometia ser maior que a da missa” (BENJAMIN, 1994, p.173). Este momento era onde começava a se pensar sobre a reprodutibilidade técnica, mas não é esta a questão. O que Benjamin chama da “própria natureza” da missa, concerne ao seu caráter tanto ritual quanto político e cultural, e aos múltiplos valores que emanam de sua prática. O aspecto ritual circunscreve toda a celebração, pensada para atingir seu ápice no momento em que é recriado o momento da Santa Ceia, onde Cristo repartiu o pão (metáfora de seu corpo) e o vinho (metáfora de seu sangue) com os apóstolos. Já o aspecto político é consequência direta da presença de uma camada considerável da sociedade, pertencentes às mais diversas classes sociais. Como consequência desses aspectos, a missa inevitavelmente passa a fazer parte de um “todo cultural” que permeia as práticas destas sociedades.


O que é chegado ao público consumidor que adquire suas reproduções (na época, o disco de vinil, hoje em dia, CDs, DVDs, documentários e textos sobre a missa) são pedaços da obra totalmente destituídos de sua “aura”, como chama Benjamin a respeito daquilo que só é inerente ao objeto original. Fernando Brant, no documentário “Missa dos Quilombos”, feito pela TV Câmara em 2006, fala da sensação de participar e vislumbrar a Missa ao vivo, da força que emana do momento exato de sua concepção:
Novembro de 1981. Eu estava lá no Recife, vendo e ouvindo tudo. Pele e pelos arrepiados. Dom Helder, Dom Pedro e Dom Zumbi denunciando os crimes cometidos contra os negros do Brasil e conclamando a todos a criar uma nova história. A música de Milton Nascimento ganhava a praça, as pedras, as pessoas. O povo estava alí inventariando o passado para fazer presente o futuro mais justos. No dia Nacional do Negro e aniversário da morte de Zumbi, brasileiros se uniam em torno de música, palavras, crenças e idéias. Éramos todos participantes de um acontecimento inesquecível.(...) Debaixo do abrigo carinhoso das irmãs Carvalhinho e Escobar convivemos três dias com gente que, do Brasil inteiro vinha assistir a missa e transmitir sua experiência de vida. Mais uma vez o clima de amizade e comunhão tomou conta de nós. E o resultado foi este que eu estava falando. O que se viu e ouviu foi de arrepiar. Celebrantes, músicos, coro, maestro e povo compuseram, juntos, um espetáculo que comoveu até as pedras da praça do Recife. (BRANT, 2006).
No momento em que vira produto, a obra deixa de ser missa, pois esta última depende dos sacramentos e da participação dos fieis, principalmente no ritual da comunhão, onde todos compartilham do sangue e do corpo de Cristo. Porém, na Missa dos Quilombos, as figuras que são costumamente evocadas nas tradições católicas se misturam à figuras de outras de religiões e cultos afro-descendentes, como explica Selma Suely Teixeira:

A Missa dos Quilombos, tal qual uma assembléia convocada para a celebração de um pacto, divide-se também em 10 partes: “A de Ó” (Estamos chegando), espécie de procissão de entrada, onde o negro conta a história de seus sofrimentos e a negação de sua raça; “Em nome do Deus”, onde de dentro do nome de Deus, o negro pede em nome do seu Povo à Santíssima Trindade; “Rito Penitencial (Kyrie)”, onde o negro suplica pela sua dignidade usurpada; “Aleluia”, onde o negro rejubila-se com a sua Ressurreição, anunciada pela palavra de Jesus; “Ofertório”, onde o negro traz seu corpo castigado e o produto do seu trabalho escravo para ser acolhido pelo Senhor; “O Senhor é Santo”, onde o negro dirige os apelos da comunidade a Cristo, o Rei Salvador; “Rito da Paz”, onde o negro faz um paralelo entre a Redenção de seu Povo e a Paz, comunhão de respeito e do trabalho sem escravidão; “Comunhão”, onde o negro comunga com seus irmãos um mesmo ideal de Libertação; “Ladainha”, onde o negro pede a intervenção da mulher humilde que gerou o Rei Salvador, pela causa de seu Povo e a “Marcha Final (de banzo e esperança)”, onde o negro expõe o banzo, a esperança no novo Quilombo que virá. (TEIXEIRA, 1998).
Os valores ritual e valor político compõem um inevitável amálgama de significações do sentido maior da Missa dos Quilombos; afinal, levar ao público em plena ditadura militar uma obra como essa, tinha como intenção fundadora aproximar a igreja das pessoas, ao modo do que faziam tendências cristãs como a Teologia da Libertação. Dom José Maria Pires, na época membro da arquidiocese da Paraíba, comenta o fato no documentário “Missa dos Quilombos”, de 2006:
Falar de responsabilidade e de alegria não soa bem para aqueles que estão dominando. Então, eles tem que encontrar uma maneira de deturpar essas intenções. Deturparam de uma forma quando tomaram a própria imagem (a capa do disco “Missa dos Quilombos”) e a transformaram em uma imagem de marxismo: foice e martelo (no lugar da cruz). Como se aqueles que promoviam a Missa e todo este movimento fossem pessoas que estivessem esperando o marxismo. (PIRES, 2006).
De acordo com Pires, jornais da época juntaram materiais sobre a Missa dos Quilombos e enviaram como denúncia para a Santa Sé, mas não antes de forjarem, nos materiais, elementos que poderiam sugerir tendências comunistas. Uma carta de Roma foi enviada para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dizendo que a Missa dos Quilombos “não correspondia ao sentido da eucaristia”. Dom José Lamartine, que era Bispo Auxiliar do Recife e membro da Comissão de Liturgia, foi um dos participantes e concelebrantes da Missa, ao lado de Dom Helder Câmara, e reuniu a Comissão para responder à carta, alegando que os elementos agregados à Missa, como danças e cânticos adicionais, não feriam as normas da igreja. Entretanto, a resposta do Vaticano foi que a celebração da Missa dos Quilombos estava proibida, sem oferecer maiores detalhes.
Passada quase uma década de proibição da Missa, houve então um acontecimento que iria resignificar as questões acerca do debate sobre a igreja católica e as manifestações religiosas adjacentes à ela. Realizou-se, na cidade de Santo Domingo, República Dominicana,

a 4ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, de 12 a 28 de Outubro de 1992. As principais autoridades da Igreja Católica se reuniram para discutir o tema “Nova evangelização, Promoção humana, Cultura cristã”, além de celebrar o quinto centenário da descoberta das Américas e os quinhentos anos de evangelização do continente.
A Santa Sé propôs não só o tema, mas também um roteiro de discussão que deveria ser rigorosamente seguido ao longo da Conferência. Dos 356 bispos presentes, os representantes brasileiros, que formam o maior episcopado da América Latina, questionaram esta imposição de um roteiro, alegando que tal atitude cerceava as possibilidades de discussão. Conseguiram uma abertura por parte do Papa e do alto clero, que os permitiu abordar o tema da cultura sem a obrigação de seguir o até então indispensável roteiro. No fim da Conferência, as discussões levaram à um questionamento: O que a Igreja Católica tem a dizer para as múltiplas culturas dos locais onde ela está presente, principalmente no Brasil, país que abriga uma série de culturas indígenas, negras e populares? A solução teórica girou em torno de uma espécie de “canonização” do conceito de inculturação, que Dom José Maria Pires define como o fato de que a fé e o evangelho devem ser praticados de acordo com os dados da cultura de determinado local. Assim, a mistura dos rituais indígenas e afros dentro do padrão da missa católica, como o que aconteceu na Missa dos Quilombos e Missa da Terra Sem Males, se tornou oficialmente permitida.
Néstor García Canclini fala sobre o conceito de “Hibridismo”, um termo tomado emprestado da biologia que ajuda a dar conta de “formas particulares de conflito geradas da interculturalidade recente em meio à decadência de projetos nacionais de modernização na América Latina” (CANCLINI, 2008, p.18). O “híbrido” seria similar ao que alguns tratam como o “sincretismo em questões religiosas”, ou a “mestiçagem em história e antropologia” (CANCLINI, 2008. p.19). Da mesma forma, é possível pensar em como a Missa dos Quilombos ofereceu uma releitura da hibridização das religiões brasileiras e africanas, na medida em que uma manifestação religiosa majoritária agregou, ou se fundiu, à uma outra em busca de reconhecimento. No processo de hibridização, “busca-se reconverter um patrimônio (...) para reinseri-lo em novas condições de produção e mercado (...). A hibridização interessa tanto aos setores hegemônicos como aos populares que querem apropriar-se dos benefícios da modernidade” (CANCLINI, 2008, p.22). Assim, não só a Igreja Católica se fortalece sua imagem de órgão comprometido com a liberdade e aceitação das diferenças culturais, mas também os movimentos negros se fortalecem em sua busca de espaços políticos, culturais e sociais da modernidade.

O frei Leonardo Boff é outro que também se utiliza das metáforas emprestadas da biologia para pensar sobre a necessidade de respeito à diversidade de religiões, em uma entrevista concedida ao site IHU Online em 2007:
O desafio primeiro é reconhecer o fato do pluralismo religioso. Isso não constitui uma patologia ou decadência, mas um dado positivo de realidade. É mais ou menos como a biodiversidade. Terrível seria se, na natureza, houvesse apenas pinus eliotis ou baratas. A riqueza está na biodiversidade ecológica analogamente ao valor da diversidade religiosa. Cada expressão religiosa revela algo do Mistério de Deus e nenhuma pode pretender possuir qualquer monopólio, nem da revelação nem dos meios de salvação. A graça e o propósito salvador de Deus perpassam toda a realidade e são oferecidos a todos. (BOFF, 2007).
No caso específico dos negros, uma estatística apresentada pela revista Sem Fronteiras em 1995 dizia que “dos cerca de 14 mil sacerdotes (da igreja católica), uns duzentos são negros” (CASALDÁLIGA, 1995). Dom José Maria Pires acredita que a Igreja Católica está se despertando para a questão da cultura negra, com o crescimento da participação de seminaristas e religiosos como agentes de pastoral negros, e Dom Pedro Casaldáliga cita o padre Antônio Aparecido da Silva, professor de teologia da PUC de São Paulo, na afirmação de que “a população negra é hoje tema de relatórios e estudos pastorais e prioridade na maioria dos planos diocesanos de pastoral das grandes cidades” (CASALDÁLIGA, 1995).
Jesus Martin Barbero traça, em sua obra “Dos Meios às Mediações”, todo um histórico de como as culturas negras foram aceitas e incorporadas pelo mercado:
A “abertura ao mercado”, isto é, a criação de um mercado nacional, implica a ruptura do isolamento em que viviam os latifúndios, trazendo à luz, ao torná-la social no plano nacional, a produtividade do gesto negro. Foi quando se chegou à seguinte conclusão: se o negro produz tanto quanto o imigrante, então que se reconheça o valor do negro. (BARBERO, 2008, p.242, 243).
Eduardo Hoornaert, em um artigo escrito para a revista Tempo e Presença em 1982, na mesma época da celebração da Missa, faz importantes considerações sobre a atualidade do tema dos quilombos:
Em primeiro lugar, celebrar a Missa do Quilombo não significa apenas comemorar o passado, significa antes de tudo intuir o presente. Quilombo no Brasil é atualidade, não passado. Pois os bairros populares das grandes metrópoles brasileiras são na verdade quilombos, onde os negros se sentem em casa (quilombo ou mocambo significa casa). O mundo do trabalho é adverso ao trabalhador, o mundo do bairro lhe é familiar. Ali ele se refaz, conversa, anda no meio da rua, transforma a rua em campo improvisado de futebol, distingue entre os “quilombolas” (os maloqueiros) e forasteiros, se sente aceito (HOORNAERT, 1982, p.12).
Depois, ele compara o caráter de resistência dos velhos e “novos” quilombos:

A especulação imobiliária que ameaça os bairros populares encontra nesse “caráter quilombola” dos mesmos um impedimento. No dia em que esses bairros perderem este caráter, eles não terão muita resistência diante da invasão burguesa. Desta forma, preservar o quilombo é preservar uma raiz importante do povo de descendência africana. Haveria muita coisa a dizer sobre os quilombos urbanos e seu significado. Basta recordar quantos nomes de bairros suburbanos lembram a “denegrida África”. Só para falar em Rio de Janeiro: Catete, Catumbi, Gamboa, Calabouço, Livramento, Morro do Desterro, etc. (HOORNAERT, 1982, p.13).
Hoornaert comenta, em outro momento de seu artigo, se há indícios de que a Missa dos Quilombos pode vir a ter desdobramentos no nível das práticas eclesiais de base, e cita a perspectiva que permeia a lógica católica, calcada no iluminismo:
Influenciados por uma já longa tradição ocidental que remonta ao iluminismo (século XVIII), os agentes de pastoral mal percebem a relevância da luta cultural. Eles compreendem a importância da luta pela libertação nos níveis econômicos, sociais e políticos, mas fazem com dificuldade a passagem entre estes “níveis” e a luta cultural. Esquecem que cada símbolo, cada discurso, cada expressão cultural é uma arma, a favor ou contra o povo. As ciências, da forma em que foram praticadas na Europa e na América do Norte, acreditam demais nos esquemas de progresso e desenvolvimento para darem a devida atenção às experiências de luta e resistência dos povos oprimidos codificadas, celebradas e vivificadas pela religião (HOORNAERT, 1982, p.13).
As perspectivas de identidades pós-modernas, onde o sujeito não se ampara em um “centro” regulador que funciona como uma verdade universal e inquestionável, estão na contramão da tradição iluminista que algumas camadas da Igreja Católica insistem em assumir. Para se manter hegemônica enquanto instituição religiosa, seus pilares conceituais permanecem inabaláveis na idéia de uma razão universal, exceto pelos movimentos que promovem uma cisão interna no próprio catolicismo, como a Teologia da Libertação.
Apesar disso, as discussões na atualidade parecem seguir por uma direção mais flexível. Prova disso são os já comentados avanços que amparam as práxis da Igreja contemporânea, como, por exemplo, o termo “Nova Evangelização”, que diferencia a evangelização tradicional, realizada nos quinhentos anos da história da América Latina, e os novos caminhos que devem nortear essa evangelização. Na já citada Quarta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Santo Domingo, os bispos definiram a “nova evangelização” como
o conjunto de meios, ações e atitudes aptos para pôr o Evangelho em diálogo ativo com a modernidade e o pós-moderno, seja para interpretá-los, seja para deixar-se interpelar por eles. Também é o esforço por inculturar o Evangelho na situação atual das culturas de nosso Continente (1992).

Pedro Tierra, poeta e co-autor das letras e discursos da Missa dos Quilombos, avalia de forma muito positiva a contribuição que a Igreja Católica brasileira ofereceu ao panorama social do país.
Nenhuma igreja, ou nenhuma face da igreja católica no mundo viveu a experiência que a Igreja Católica viveu no Brasil nos anos da ditadura, nenhuma. Se formos comparar a igreja do México, a igreja da Argentina, a igreja do Chile, a igreja do Paraguai... Essas igrejas, elas não desempenharam o papel que a Igreja Católica no Brasil desempenhou na resistência aos anos de chumbo, a repressão, e na reconstrução (do movimento popular). E é aí que eu acho que foi o papel mais fecundo que ela desempenhou ao longo dos quinhentos anos da história, não tenho dúvida de dizer isso muito tranquilamente. Em nenhum momento, em quinhentos anos de história, a Igreja Católica no Brasil estabeleceu uma tão profunda identificação com os movimentos sociais, com os oprimidos do país (TIERRA, 2006).
Apesar de Tierra falar da participação da Igreja Católica nesse período histórico, ele certamente está se referindo à uma ala menos conservadora da instituição, a Teologia da Libertação. Este movimento surgiu na década de 70 em todo o mundo, mas teve uma força especial na América Latina, muito provavelmente pelo caráter de resistência aos regimes militares que governavam vários países do continente. Enquanto grande parte da Igreja apoiava a ditadura, na medida em que sua hegemonia religiosa permanecesse intacta, a Teologia promovia uma cisão com a própria Igreja, ao mesclar o compromisso do evangelho com a militância política, além de influências marxistas. Os idealizadores e autores da Missa dos Quilombos, como Dom Helder Câmara e Dom Pedro Casaldáliga, eram adeptos da Teologia da Libertação, e tanto os atritos políticos quanto religiosos foram uma constante em suas vidas.
Conclusão
Obras como a Missa dos Quilombos, e seu múltiplo caráter tanto de culto, quanto de produto cultural, incorporação de classes sociais e símbolo de resistência, fazem parte de um importante legado deixado por estes homens para a cultura brasileira.
Outro aspecto relevante da Missa é sua atualidade temática, se pensarmos que a raça negra ainda sofre de discriminação e preconceito por parte da sociedade brasileira. Tanto é que ela continua sendo celebrada de diferentes maneiras, mas preservando sua essência e sua mensagem de integração de raças e povos. Isso acontece graças à tantas pessoas que preferem o grito ao silêncio, que preferem por o dedo na ferida à viver na dor da hipocrisia.

Assim, pensar no que significa a Missa dos Quilombos em todas as suas camadas de influência no tecido social, além da semente de mudança que ela promoveu no paradigma da Igreja Católica, é uma tarefa nada simplória, e sim permeada de variadas possibilidades de reflexão, ainda relevantes.
ABSTRACT: This article aims to analyse the “Missa dos Quilombos”, by Dom Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra and Milton Nascimento, thinking in the multiple caracther of this religious celebration, as a cultural product and of political act of resistence.
Key-words: Missa dos Quilombos; Milton Nascimento; Dom Pedro Casaldáliga; Pedro Tierra; Walter Benjamin.
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MARTIN-BARBERO, Jesus. Os meios e as mediações. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
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Textos da Internet
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FIGUEIRA, Padre Ricardo Resende. A Missa dos Quilombos e a escravidão contemporânea. Disponível em Ensaio aberto: http://www.ensaioaberto.com/missa_textos_programa.htm#tonelada LOBO, Luis Fernando. Uma tonelada por dia. Disponível em Ensaio Aberto: http://www.ensaioaberto.com/missa_textos_programa.htm#tonelada
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TEIXEIRA, Selma Suely. Missa dos Quilombos - Um canto de Axé. 1998. Disponível em http://www.geocities.com/pwpercio/cantodeaxe.html .
Áudio e Vídeo
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NASCIMENTO, Milton. Missa dos Quilombos. BMG Ariola, 1982.

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