quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

E a "tradicional" familia brasileira representado por Bolsonaro e Michele. O que tem de semelhante com as peças e crônicas de Nelson Rodrigues?

 “Atrás de todo paladino da moral, vive um canalha!”... -Nelson Rodrigues. 




O anjo pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues
Por Eduardo Bomfim -
02/04/2020

O anjo pornográfico
A primorosa biografia do jornalista Ruy Castro sobre Nelson Rodrigues é um livro que retrata fielmente a vida e a produção literária de um grande cronista, dramaturgo, ensaísta e pensador brasileiro.



Segundo Ruy Castro, a vida de Nelson Rodrigues e da sua trágica família permitiu ao escritor extrair valiosos ensinamentos que ele passou às suas peças de teatro, livros e crônicas.

Nelson também foi um exímio observador da realidade cotidiana, de onde extraiu imenso e rico material humano para denunciar a hipocrisia e o falso moralismo, especialmente da “pequena burguesia” urbana e carioca.

Nascido em Pernambuco em 1912, mudou-se com seus pais para o Rio de Janeiro ainda muito pequeno, onde aprendeu o ofício do jornalismo, no começo como ajudante de redação, depois como profissional da imprensa. Daí em diante jamais deixou de trabalhar nas redações até a sua morte em 1980.

Politicamente conservador, Nelson Rodrigues era, mesmo assim, um revolucionário em suas obras. Tanto é que nenhum teatrólogo nacional teve suas peças tão censuradas pelo regime civil-militar como ele.

Crítico cirúrgico dos costumes e das falsidades do conservadorismo de boa parte da elite e da classe média, foi considerado por muitos escritores como o “Balzac brasileiro”. Outros chegaram a considerá-lo gênio.

Nelson Rodrigues escrevia em média até três, ou mais, crônicas diárias. Apaixonado pelo futebol, era torcedor do Fluminense, escreveu as célebres crônicas “À sombra das chuteiras imortais”, livro no qual descreveu os jogos, misturando realidade com ficção das mais saborosas. Inventou por exemplo personagens como o sobrenatural do Almeida, um jogador do Fluminense injustiçado pela direção do clube, depois morto pela tuberculose. Quando o tricolor carioca entrava em campo, o fantasma do Almeida lá estava para atrapalhar e sabotar os jogadores das Laranjeiras.

Foi o criador de inúmeros apelidos que ficaram para a posteridade, como o rei Pelé, Garrincha o anjo das pernas tortas, Didi o príncipe etíope, Amarildo o possesso, Zagalo o formiguinha de ouro, Leônidas o diamante negro, entre outros.

Considerava o futebol brasileiro um símbolo da identidade e união nacional e criticava com audácia os seus colegas de esporte nas redações dos jornais. Afirmava que eram os responsáveis pelo que ele chamava de complexo de vira lata dos brasileiros, chamando os seus pares de redação nos esportes de pessoas com “mentalidade de colonizados”.

Nelson Rodrigues era um patriota até a medula. Certa feita, o jornalista e cronista, seu amigo, Otto Lara Resende chegou de Portugal, onde passara dois anos. Em uma das suas crônicas diárias Nelson, observando o ar de cosmopolita superioridade de Otto Lara, não o perdoou: “chegou ontem de Portugal Otto Lara, com um sotaque lisboeta de dar inveja a qualquer cidadão nascido em Lisboa”.

Muitas de suas peças de teatro eram interrompidas por vaias e gritos moralistas indignados já na estreia, chamando-o de tarado. Ao que ele respondia, ao final da exibição, com virulento bate-boca, lá do palco.

Sua criação artística narrava o que ele via e recolhia entre as quatro paredes dos apartamentos da classe média: incestos, adultérios, casamentos por exclusivos interesses financeiros, etc.

Daí as suas peças famosas: em Os sete gatinhos mostra um sujeito que transformou a própria casa num bordel, cujas prostitutas eram as suas sete filhas. Em Bonitinha mas ordinária revelou uma jovem implacavelmente interesseira, que a todos manipulava com sexo por dinheiro.

Beijo no asfalto narra a história de um cidadão suburbano, que diante de um moribundo atropelado atendeu ao seu último desejo: um beijo. Um jornalista de um diário sensacionalista publicou a foto da cena em primeira página e daí ocorre uma sucessão de tragédias familiares e profissionais.

Em Os cafajestes descreveu a trajetória de um bando mau-caráter, que vivia total e cotidianamente do assédio sexual às mulheres. Boca de ouro conta a história de um marginal bem-sucedido na vida, e vale destacar ainda Toda nudez será castigada e Vestido de noiva.

Sua obra, composta por crônicas e peças de teatro, é reconhecida até hoje como clássica e de grande atualidade.

Criou em seus artigos cotidianos, para vários jornais, personagens famosos e reais, apesar de ficcionais, como Palhares, o crápula, a estagiária de jornalismo da PUC, estilo existencialista, de pés descalços, cabelos imensos e sem lavar, tipo hippie, que andava nas redações dos jornais como se estivesse “levitando”, e que certa feita, ao entrevistá-lo, perguntou: o que você acha do nada absoluto?

Nos anos sessenta era moda a apologia ao Poder Jovem. Nelson Rodrigues, perguntado em entrevista sobre o que ele achava do Jovem, respondeu: meu conselho é que envelheçam, envelheçam!

Sobre o famoso Maio de 1968 em Paris, que encantou a muitos da geração, dizia: não sabem para onde vão, nem o que querem. Só fazem arrancar paralelepípedos das calçadas e queimar carros nas ruas, não há projetos, reinvindicações, nada, não conseguem nem organizar a pauta de um congresso deles. Ele, nesse caso, referia-se ao congresso dos anarquistas, na época, realizado em um teatro em Paris, que não terminou porque não começou, pela simples razão de que não houve consenso sobre a pauta inicial do encontro.

Na verdade, o mundo vivia a plena efervescência da Guerra Fria entre a URSS e os Estados Unidos. Uma polarização geopolítica que dificultou a compreensão e construção de estratégias de desenvolvimento e a busca de rumos condizentes com as especificidades de cada povo e de cada país.

Sobre isso, Charles de Gaulle, então presidente da França, afirmou certa vez:  quem deseja saber mesmo o que é a Guerra Fria procure observar e estudar quais são os interesses estratégicos do Estados Unidos e da União Soviética.  Mas Nelson, mesmo conservador, transitava por essa época com suas próprias opiniões, certas ou erradas.

Nelson Rodrigues criticava também a grã-finagem da sociedade carioca, de quem dizia não ter dinheiro algum, todos falidos, sem pagar a conta dos restaurantes. Afirmava que viviam do prestígio social e da venda de quadros valiosos recebidos de herança, enquanto em suas mansões havia festas e chafarizes jorrando cascatas de champanhe francesa, da legítima.

Percebeu igualmente certas artificialidades na esquerda carioca, a qual dividia em duas: a que fazia a revolução nos bares da Zona Sul e quando acabava o dinheiro voltava para casa. Chamava-a de “a esquerda festiva”. A outra parte da esquerda que criticava era a que se guiava unicamente pelos slogans de orientação exclusivamente internacional e muito pouco ou quase nada por uma visão nacional.

Olhando em retrospectiva, antes das autocríticas de parcela das esquerdas nacionais, Nelson Rodrigues já tinha, ao seu modo e visão conservadora, detectado as profundas insuficiências sobre o conhecimento da realidade brasileira por parte de muitos setores da esquerda nativa.

Nelson Rodrigues também foi crítico dos modismos intelectuais que impõem às pessoas posturas, vocabulários e certos autores ou cineastas estrangeiros. Muitos ficavam intimidados se não entendiam ou não gostavam do que esses diretores ou celebridades diziam ou faziam.

Em uma de suas seleções de crônicas, A cabra vadia, ele escolheu o seu amigo pessoal Otto Lara Resende, sempre vítima, talvez por isso mesmo, para narrar uma história por ele mesmo inventada, mas que poderia ser muito real.

No episódio, Otto Lara o chamou até um terreno baldio da cidade para lhe confessar, quase sussurrando: Nelson, não posso mais aguentar, tenho que confessar a alguém, eu não tolero Jean Luc Godard.

Jean Luc Godard, que está vivo e atuante, foi um dos mais festejados cineastas da intelectualidade de esquerda nos anos sessenta. E não pegava nada bem, nas esquerdas, não admirar os filmes do ilustre cineasta francês.

As crônicas de Nelson Rodrigues foram selecionadas por temas e há vários livros à disposição editados pela Companhia das Letras, assim como a sua biografia.

O título da biografia de Ruy Castro, O Anjo Pornográfico, deve-se ao fato de que quando invariavelmente era chamado de pornográfico e tarado pelo enredo das suas peças, por setores moralistas da elite que frequentava os teatros no Rio, ele refutava sempre com ferocidade: eu pornográfico? Diante de vocês eu sou um anjo!

Atacado por segmentos das esquerdas e dos conservadores da época, Nelson Rodrigues não deixava por menos e construiu uma frase que ficou célebre, posteriormente, usada por muitos: toda unanimidade é burra.

O dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues, além de patriota e culto, também estudava os fundamentos relativos às questões nacionais. Era um dos grandes admiradores e entusiasta da produção antropológica de Gilberto Freyre, a quem chamava, em seus artigos, de “gênio”. Era pródigo em elogios a Casa Grande e Senzala.

Nelson era um defensor entusiasmado da mestiçagem do povo brasileiro, citando-a muitas vezes, especialmente, em suas crônicas sobre o futebol nacional, além de outros ensaios.

Outra marca de Nelson Rodrigues é que apesar de jornalista tinha horror ao objetivismo puramente racionalista, quando se abstrai a intuição e a imaginação criadora, que como sabemos são elementos indissociáveis. Daí a sua famosa frase repetida várias vezes, condenando o que ele chamava os idiotas da objetividade.

Quanto a essa questão, como em muitas outras, Nelson Rodrigues tornava-se quase obsessivo em suas declarações, como no futebol, quando criticava os comentaristas esportivos que se guiavam unicamente pelo vídeoteipe. Ele respondia sempre: o vídeoteipe é burro. Evidente que nesse caso e em muitos outros está presente a veia literária, a coragem e o sarcasmo típicos de Nelson Rodrigues.

A verdade é que, mesmo para aqueles que possam questionar a genialidade do jornalista, não é possível ignorar o seu enorme talento. Porque ele foi um ponto fora da curva na interpretação dos fatos e da vida real, como em A vida como ela é, uma das suas colunas diárias ao longo de muitos anos.

O estilo literário e jornalístico de Nelson Rodrigues nunca foi rebuscado, acadêmico ou pomposo, era facilmente lido tanto por um intelectual como por um cidadão do povo. Ele escrevia fácil, simples e compreensível por todos, sem a necessidade de uma segunda leitura, ou de uma meditação mais profunda sobre seus textos, inclusive nas suas peças teatrais.

Em sua vida familiar conturbada, teve um irmão jornalista assassinado quando era muito jovem e outro irmão foi soterrado em uma das grandes tempestades que se abateu sobre o Rio de Janeiro na década de sessenta.

Mário Filho, o outro irmão jornalista e apaixonado pelo futebol, defendeu a realização da Copa do Mundo no Brasil em 1950 e a construção do Maracanã contra a mesma campanha moralista e hipócrita que tentou inviabilizar a Copa do Mundo no Brsil em 2014.  Mário Filho escreveu a obra clássica O negro no futebol brasileiro, prefaciado por Gilberto Freyre. Em sua homenagem o Maracanã rece eu seu nome.

Mas a sua vida pessoal também não foi nada fácil, padeceu duas vezes de tuberculose e sofreu internação por meses, de maneira compulsória, quando a doença era quase uma sentença de morte, porque não existiam os atuais medicamentos para a enfermidade bastante contagiosa. E sobreviveu às duas internações.

Durante a época mais dura do regime civil-militar, o seu filho Nelson Rodrigues Filho foi preso e condenado por crime político.

Hoje em dia Nelson Rodrigues possui uma enorme legião de admiradores, leitores de várias vertentes ideológicas, quase desmentindo a sua famosa frase: toda unanimidade é burra.

Polêmico, controverso, obsessivo, inventivo, inspirado e pessoa de muita coragem pessoal, Nelson Rodrigues entrou para a História do jornalismo brasileiro assim como para a da dramaturgia nacional.

A verdade é que Nelson Rodrigues faz muita falta nos tempos atuais de convicções absolutas, definitivas, de fundamentalismos políticos, patrulhamentos ideológicos por meio de “bolhas” de ativistas digitas e sociais, à esquerda e à direita.

A moda é exigir que todos se enquadrem em verdades definitivas, inapeláveis e imutáveis, condenando os que discordam das “regras” sectárias e estreitas, embora saibamos que para muitos essas convicções possuem uma boa dose de pragmatismo político, muita publicidade, e até de oportunidades financeiras. Nelson Rodrigues, além de um clássico, é muito atual.




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