sábado, 27 de janeiro de 2024

"DEVEMOS, COM OU SEM ESPERANÇA, DESESPERADOS OU NÃO, IR PARA A RESISTÊNCIA". TALVEZ O TEXTO DE DESPEDIDA DE EDGAR MORIN

imagem Jean-jack Renaot

"Se é meia-noite no século": quando Victor Serge publicou o livro que leva este título, em 1939, ano do pacto germano-soviético e da divisão da Polónia, era de facto meia-noite e uma noite irrevogável estava prestes a engrossar e continuar por cinco anos. 

Não é meia-noite em nosso século? Duas guerras estão em andamento. A da Ucrânia já mobilizou ajuda económica e militar de parte do mundo, com radicalização e risco de alargamento do conflito. A Rússia não conseguiu anexar a Ucrânia, mas permanece nas regiões anteriormente separatistas de língua russa. O bloqueio enfraqueceu-a parcialmente, mas também estimulou o seu desenvolvimento científico e técnico, nomeadamente no domínio militar. Esta guerra já está a ter consequências consideráveis: o empoderamento do Sul em relação ao Ocidente e o fortalecimento de um bloco Rússia-China. 

Uma nova fonte de guerra eclodiu no Médio Oriente após o massacre cometido pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, seguido pelos bombardeamentos mortais de Israel em Gaza. Estas carnificinas, acompanhadas de perseguições na Cisjordânia e de declarações anexionistas, despertaram a questão palestiniana adormecida. Mostraram tanto a urgência, a necessidade e a impossibilidade da descolonização do que resta da Palestina Árabe e da criação de um Estado Palestino. 

Como não é nem será exercida qualquer pressão sobre Israel para alcançar uma solução entre dois países, só podemos prever um agravamento, ou mesmo um alargamento, deste terrível conflito. É uma lição trágica da história: os descendentes de um povo perseguido durante séculos pelo Ocidente cristão, e então racista, podem tornar-se tanto os perseguidores como o bastião avançado do Ocidente no mundo árabe. 

O pensamento ficou cego. 

Estas guerras agravam a conjunção de crises que atingem as nações, mantidas pelo antagonismo virulento entre três impérios: os Estados Unidos, a Rússia e a China. As crises alimentam-se umas das outras numa espécie de policrise ecológica, económica, política, social e civilizacional que se amplificará. 

A degradação ecológica afecta as sociedades humanas através da poluição urbana e rural, agravada pela agricultura industrial. A hegemonia do lucro descontrolado (principal causa da crise ecológica) aumenta as desigualdades em todas as nações e em todo o planeta. As qualidades da nossa civilização deterioraram-se e as suas deficiências aumentaram, particularmente no desenvolvimento do egoísmo e no desaparecimento da solidariedade tradicional. 

A democracia está em crise em todos os continentes: é cada vez mais substituída por regimes autoritários, que, ao disporem de meios de controlo informático sobre as populações e os indivíduos, tendem a formar sociedades de submissão que poderiam ser chamadas de neototalitárias. A globalização não criou solidariedade e as Nações Unidas estão cada vez mais desunidas. 

Esta situação paradoxal faz parte de um paradoxo global específico da humanidade. O progresso técnico-científico que se desenvolve prodigiosamente em todas as áreas é a causa dos piores retrocessos do nosso século. 

Foi ele quem permitiu a organização científica do campo de extermínio de Auschwitz; foi ele quem permitiu o desenho e a fabricação das armas mais destrutivas, até a primeira bomba atômica; é ele quem torna as guerras cada vez mais mortíferas; foi ele quem, movido pela sede de lucro, criou a crise ecológica do planeta. 

Notemos – o que é difícil de conceber – que o progresso do conhecimento, ao multiplicá-lo e separá-lo por barreiras disciplinares, provocou uma regressão do pensamento, que se tornou cego. Ligado ao domínio do cálculo num mundo cada vez mais tecnocrático, o progresso do conhecimento é incapaz de conceber a complexidade da realidade e em particular das realidades humanas. O que leva ao retorno do dogmatismo e do fanatismo, bem como a uma crise de moralidade na onda de ódio e idolatria. 

A ausência de esperança. 

Caminhamos para prováveis catástrofes. Isso é catastrofismo? Esta palavra exorciza o mal e dá serenidade ilusória. A policrise que vivemos em todo o planeta é uma crise antropológica: é a crise da humanidade que não consegue tornar-se Humanidade.

Houve um tempo – não há muito tempo – em que podíamos considerar uma mudança de direção. Parece que é tarde demais. É claro que o improvável e principalmente o imprevisto podem acontecer. Não sabemos se a situação global é apenas desesperadora ou verdadeiramente desesperadora. Isto significa que devemos, com ou sem esperança, com ou sem desespero, avançar para a Resistência. A palavra evoca irresistivelmente a resistência dos anos de ocupação (1940-1945), cujos inícios, muito modestos, foram dificultados pela ausência de esperança previsível após a derrota de 1940. 

A falta de esperança previsível é semelhante hoje, mas as condições são diferentes. Não estamos atualmente sob ocupação militar inimiga: somos dominados por poderes políticos e económicos formidáveis e ameaçados pelo estabelecimento de uma sociedade de submissão. Estamos condenados a suportar a luta entre dois gigantes imperialistas e a possível irrupção bélica do terceiro. Estamos sendo arrastados para uma corrida em direção ao desastre. 

Fraternidade, vida e amor. 

A primeira e fundamental resistência é a da mente. Requer resistir à intimidação de qualquer mentira afirmada como verdade, ao contágio de qualquer intoxicação coletiva. Requer nunca ceder à ilusão da responsabilidade coletiva de um povo ou de um grupo étnico. Requer resistir ao ódio e ao desprezo. Prescreve a preocupação de compreender a complexidade dos problemas e dos fenómenos, em vez de ceder a uma visão parcial ou unilateral. Requer pesquisa, verificação de informações e aceitação de incertezas. 

A resistência também passaria pela salvaguarda ou criação de oásis de comunidades com relativa autonomia (agroecológica) e de redes de economia social e solidária. A resistência exigiria também a coordenação de associações dedicadas à solidariedade e à rejeição do ódio. A resistência prepararia as gerações mais jovens para pensar e agir pelas forças de união da fraternidade, da vida e do amor que podemos conceber sob o nome de Eros, contra as forças de deslocamento, desintegração, conflito e morte que podemos conceber sob o nome de Polemos e Tânatos. 

É a união, dentro dos nossos seres, dos poderes de Eros e daqueles da mente desperta e responsável que alimentará a nossa resistência à escravização, às ignomínias e às mentiras. Os túneis não são infinitos, o provável não é certo, o inesperado é sempre possível."

Edgar Morin é sociólogo e filósofo. Seu último livro, “Encore un moment…” (Denoël), foi publicado em 2023.

TRADUÇÃO COMPARTILHADA POR DANIEL RAVIOLO, DO TEXTO DO EDGAR MORIN PUBLICADO EM PARIS NO LE MONDE DO DIA 22 DE JANEIRO.

UM TEXTO DOÍDO MAS LÚCIDO SOBRE OS TEMPOS PRESENTES. CONCLUI: "DEVEMOS, COM OU SEM ESPERANÇA, DESESPERADOS OU NÃO, IR PARA A RESISTÊNCIA". TALVEZ O TEXTO DE DESPEDIDA DESSE GRANDE HOMEM.

(Enviado por Alvaro Pantoja)

Filósofo, antropólogo, sociólogo: Edgar Morin

José Eli da Veiga fala sobre esse intelectual, cuja principal obra teórica, segundo ele, é muito pouco conhecida no Brasil, que está prestes a completar 102 anos de vida

https://jornal.usp.br/radio-usp/filosofo-antropologo-sociologo-edgar-morin/


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