Dirceu Benincá*
Os princípios e os impulsos do sistema capitalista estão entranhados na vida das pessoas, bem como nas instituições e nas relações sociais. Sua lógica é perversa, uma vez que promove a exclusão, brutais desigualdades, injustiças, individualismo, competição, destruição e morte. Não é possível que nos acomodemos à sua fúria avassaladora. Muito pior é contribuir para que ela se reproduza, prospere e destrua o que temos de mais caro e nobre: a vida com todos os seus significados.
A motivação para resistir a este sistema pode partir de diferentes análises, perspectivas teóricas ou posicionamentos políticos. Dentre os lugares de onde se levantam gritos proféticos de indignação diante da dinâmica de morte produzida pelo capitalismo estão as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Berço de onde surgiram múltiplos movimentos sociais populares, as CEBs seguem, com teimosia, lutando em função de uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável, organizada a partir da base. Esse novo jeito de ser Igreja continua, em parte, como uma realidade que se concretiza e, em grande parte, como uma utopia que está sempre na mira das esperanças.
Para dar mais concretude às esperanças e possibilidades de um mundo melhor, creio ser importante pensar no fortalecimento daquilo que denomino de Comunidades Integrativas de Base. Refiro-me às próprias CEBs, as quais necessitam avançar sob múltiplas dimensões e avançar de maneira integrativa. Ao invés de identificar essas dimensões como pilares, colunas estáticas, prefiro falar delas como “pneus” das comunidades, uma vez que, historicamente, as CEBs se assumiram como Igreja “em” movimento. De modo simbólico, cito quatro “pneus”, que estão na base da movimentação. Mas, esse número pode ser ampliado.
Comunidades Eclesiais de Base: Diante do individualismo, preconceitos, discriminações e divisões é preciso fortalecer a vida comunitária, o ecumenismo, o diálogo interreligioso, o respeito ao diferente, a valorização das mulheres, dos jovens, das culturas oprimidas, dos excluídos em geral. A espiritualidade solidária, libertadora, profética e missionária torna-se fundamental na superação do espírito e das estruturas capitalistas. As CEBs precisam ser cada vez mais eclesias no sentido de estreitar laços de fraternidade, superar centralismos e autoritariasmos, exercitar a democracia interna, lutar pela justiça, pelo direito, pela vida e dignidade humana. Para isso, é importante aprimorar a organização dos pobres e excluídos em comunidades, grupos, associações, redes... Segue válido o princípio de que a força aparece quando a fraqueza se organiza.
As CEBs, alinhadas com a perspectiva da Teologia da Libertação, entendem que a fé precisa estar articulada com a vida, tanto no nível pessoal como social. Nesse sentido, são possíveis inúmeras ações nas pequenas comunidades visando compreender a necessária relação existente entre a fé e suas implicações sociais. Entre os múltiplos eventos e mobilizações que podem contribuir nessa direção, está a 5ª Semana Social Brasileira, que será realizada em 2013 com o tema “Um novo Estado: caminho para uma nova sociedade do bem viver”. A mesma tem como objetivo discutir com a sociedade questões sociopolíticas e traçar perspectivas para o país, com base na Doutrina Social da igreja.
Comunidades Econômicas de Base: O livro dos Atos dos Apóstolos (2,42-47) afirma que os primeiros cristãos tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e seus bens e dividiam entre todos, segundo a necessidade de cada um. Esse modo de viver é revolucionário, totalmente distinto da economia de mercado que rege a sociedade moderna, transformando os mais fugazes desejos em necessidades inevitáveis e fazendo com que muitas necessidades básicas de uma multidão de pobres e excluídos não sejam atendidas.
As comunidades, configuradas como eclesiais de base, ficarão impossibilitadas de seguir seu caminho se tiverem o “pneu” da economia desalinhado. Diante do sistema capitalista, que estimula o lucro a qualquer custo, a competição individualista, a exploração e a exclusão social é preciso fortalecer a economia solidária, o consumo responsável, o comércio justo e ético. Entre tantas outras ações possíveis, está a mobilização para obter 1,5 milhão assinaturas a fim de aprovar a lei de iniciativa popular em vista da criação de uma política nacional da Economia Solidária.
Comunidades Políticas de Base: Em nosso país ainda persiste a corrupção, o colonialismo, o assistencialismo, a dominação de uma elite, a utilização da máquina pública para interesses particulares, a indiferença e o analfabetismo político de muitos. Sabe-se que é no mundo da política que se definem os rumos de um país e de seu povo. Nesse cenário, as comunidades eclesiais e econômicas de base necessitam fortalecer a política do bem comum, as lutas por justiça social, a democracia direta, as práticas cidadãs e a cultura de participação ativa nos espaços decisórios.
Entre outras ações possíveis, destaca-se a fiscalização da ficha dos candidatos a cargos eletivos. Originada de um projeto de iniciativa popular, aprovada pelos deputados e senadores e sancionada pelo Presidente da República, a Lei da Ficha Limpa/2012 será aplicada integralmente nas eleições municipais de 2012. Seria importante, inclusive, que os critérios da Ficha Limpa fossem extensivos a todos os ocupantes de funções públicas. É fundamental também fiscalizar a conduta dos candidatos, fazendo valer a Lei 9.840/99, Contra a Corrupção Eleitoral. Para garantir mais ética na política, faz-se necessária ainda ampla reforma do sistema político, incluindo, entre outras questões, o financiamento público exclusivo de campanhas, como reivindica o novo projeto de lei de iniciativa popular lançado há um ano pela Plataforma dos Movimentos Sociais.
Comunidades Ecológicas de Base: Diante das graves crises e problemas ambientais, como a poluição, as monoculturas, o aquecimento global e tantos outros, há necessidade de criar e ampliar as práticas ecológicas sustentáveis e responsáveis. Como afirma Leonardo Boff: “O cuidado salvará a Vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como Pátria e Mátria de todos." A articulação da fé viva com a vida de tudo e de todos os que vivem transformará as comunidades em comunidades ecológicas de base.
Nesse sentido, é importante adotar o consumo ecologicamente correto e socialmente justo; praticar a separação dos resíduos na fonte; realizar a coleta seletiva, a reciclagem, a reutilização, etc.; fortalecer as organizações dos catadores de materiais recicláveis; criar eficientes mecanismos para concretizar a política nacional dos resíduos sólidos nos municípios... Há muitas ações que podemos e devemos desenvolver de modo a enfrentar os diversos problemas. As ações das comunidades serão tanto mais eficientes quanto mais forem articuladas e integradas.
Enquanto houver desigualdades, injustiças, agressão à dignidade humana e à natureza, as CEBs permanecerão atuais, necessárias e indispensáveis na sua missão fundamental de defender e promover a vida. Necessárias para enfrentar a lógica capitalista que atua fora e dentro de cada um de nós e para fortalecer a sociedade do bem viver, utopia feita realidade pelos povos indígenas Aymara, Quétchua, Guarani e outros. As comunidades serão mais fortes e autênticas na medida em que forem eclesiais, econômicas, políticas e ecológicas de base!
*Padre, doutor em Ciências Sociais e co-autor do livro CEBs: nos trilhos da inclusão libertadora. Paulus, 2006, entre outros.
INDAGAÇÕES DE CIDADÃ(O)S INDIGNADOS CONTRA O ESTABLISHMENT, E EM LUTA INCESSANTE POR UMA NOVA SOCIEDADE
(Establishment, em sentido mais abstrato, refere-se à ordem ideológica, economia e política que constitui uma sociedade ou um Estado.
Em sentido depreciativo, designa uma elite social, econômica e política que exerce forte controle sobre o conjunto da sociedade, funcionando como base dos poderes estabelecidos. O termo se estende às instituições controladas pelas classes dominantes, que decidem ou cujos interesses influem fortemente sobre decisões políticas, econômicas, culturais, etc., e que portanto controlam, no seu próprio interesse e segundo suas próprias concepções, as principais organizações públicas e privadas de um país, em detrimento da maioria dos eleitores, consumidores, pequenos acionistas, etc.
Em sentido mais restrito, pode referir-se a um grupo de indivíduos com poder e influência sobre determinada organização ou campo de atividade.
Na origem, o termo dizia respeito a uma aliança entre a burguesia urbana e grupos da aristocracia rural britânica, que tradicionalmente concentrava os meios de ação no país, sendo pouco aberta a inovações em todos os campos e hostil ao compartilhamento do poder com outros grupos, fonte- WIKIPÉDIA)
Alder Júlio Ferreira Calado
Para quem se dispõe a perceber - ou a quem é dado fazê-lo –resultam escandalosos o volume, a diversidade, o ritmo e a freqüência dos índices mais perversos de degradação da qualidade de vida do Planeta e dos viventes, entre os quais os humanos. E isto se tem dado de tal maneira, a suscitar, em um número crescente de pessoas e grupos, um sentimento de impotência, logo seguido de uma tendência à naturalização e banalização dessa sucessão de episódios macabros, inclusive os mais aviltantes da condição humana. Apresenta-se, com efeito, inaceitável seguirmos convivendo com estúpidos índices de violência social, sob suas diversas formas, a começar pelos extravagantes índices de assassinatos de jovens, de mulheres, de negros, de índios, de trabalhadores e trabalhadoras. Só neste item, teríamos um desafio de grande monta a enfrentar. Infelizmente, não é o único. A esse desafio devemos somar um complexo e extenso espectro de tantos outros, a envolverem torturas, estupros, exploração do trabalho infantil, trabalho escravo, péssimas condições de trabalho, impunidade seletiva, acidentes de trabalho, acidentes de trânsito (sobretudo implicando vítimas de acidentes de motos), altos índices de pessoas sem acesso aos serviços públicos essenciais, as crescentes e graves agressões às condições sócio-ambientais, interminável sucessão de graves escândalos ético-políticos a escancararem a promiscuidade inerente à relação Mercado e Estado e seus mais distintos aparelhos, dentre uma extensa gama de direitos sociais negados ou insuficientemente assegurados.
Ao listarmos essas e tantas agressões ao Planeta, aos viventes e aos seres humanos, não deixamos de reconhecer avanços pontuais, graças inclusive a políticas governamentais. São muito bem-vindos, e devem ser mantidos e ampliados. Ao mesmo tempo, cumpre-nos reconhecer que, diante de crescentes desafios de todo tipo que enfrentamos, já não basta pretender responder a tantos e tais desafios, com ações pontuais ou de caráter compensatório. Por ousados que se apresentem – e isto é coisa rara! -, são incapazes de responder de modo satisfatório e de forma universalizante. E já não temos o direito de ignorar isto, ou responder com palavras generosas, cheias de boas intenções. Por essa via, não alcançaremos atender ao conjunto dos direitos do conjunto de cidadãos e cidadãs.
Tais ações não conseguem enfrentar a contento nossos grandes desafios. Apenas servem para aliviá-los, aqui e ali, enquanto se avolumam os grandes problemas, sem cessar, e em ritmo crescente. Contra essa crescente tendência de altíssimo poder corrosivo, a médio e longo prazos, sobre a condição humana e o sentido da vida e da convivência social, impõe-se, não apenas reagir com indignação contra cada situação explosiva, delas cuidando a varejo, mas também ensaiar passos alternativos a essa barbárie. Isto já está sendo feito, um pouco por toda a parte, em doses moleculares, mas ainda de modo bastante incipiente, em comparação com um cotidiano sabidamente impregnado de conformismo, até nas formas predominantes de ousar alternativas não convencionais.
Eis por que ousamos, com humildade, associar-nos a tantos e tantas que, comunitariamente ou de forma individual, vêm-se atrevendo a ensaiar passos alternativos, por mais limitados, parciais e provisórios que possam ser, cientes de que “E melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir.” Em geral, só a quem ousa buscar, é dada a oportunidade de encontrar.
É assim que nos sentimos: mergulhados num terreno pantanoso, com pouca ou nenhuma luminosidade, mas, ao mesmo tempo, repletos de esperança de sobrevivermos, e fazendo tudo ao nosso alcance para superar tais impasses. Assusta-nos perceber que, justamente numa época de invenções e descobertas científico-tecnológicas inéditas, não tenhamos tido qualquer êxito significativo no enfrentamento das gritantes desigualdades sociais, de que são provas a concentração de riquezas, de terras, de rendas; a desvairada tendência à privatização e mercantilização das relações humanas e sociais e até das fontes de vida. Ante os gemidos de centenas de milhões de seres humanos sobrevivendo em condições desumanas ou sub-humanas, revoltam-nos os crescentes investimentos nas indústrias bélicas e de armamentos em geral. Provoca-nos profunda indignação a mera constatação da existência consentida de paraísos fiscais, inclusive para “lavar” dinheiro sujo proveniente do tráfico de drogas, de armas e semelhantes empreendimentos. Insurgimo-nos contra os grandes conglomerados transnacionais, que pontificam por todo o mundo, nas mais distintas áreas econômicas (setor primário, indústria, comércio, serviços...). Causam-nos pavor os cada vez mais degradantes processos e condições de trabalho impostos aos Trabalhadores e Trabalhadoras.
No campo sócio-ambiental, vasto e complexo é o rosário de impasses. A degradação das condições de vida no Planeta se dá de modo crescente e multifacetado: do voraz desmatamento ao comprometimento das fontes de água; da degradação da qualidade dos oceanos à das redes hidrográficas; da contaminação do solo, do subsolo, da flora e da fauna à alimentação animal e humana; do comprometimento da qualidade das sementes às construções de obras faraônicas de impacto deletério para o meio-ambiente e para os povos tradicionais e ribeirinhos; das políticas urbanas de alto poder corrosivo, a exemplo da política industrial de automóveis, à priorização de políticas fundadas em combustível fóssil... Só para mencionar alguns casos dos mais conhecidos.
Do ponto de vista político, causa-nos espécie, cada dia mais, a promiscuidade entre o Estado (em especial, as grandes potências) e os interesses mercantilistas controlados pelos grandes conglomerados transnacionais e grandes empreiteiras. Cada dia mais visível fica o distanciamento entre as decisões dos governantes e as aspirações das distintas sociedades, a despeito do caráter de legalidade sempre alegado pelos respectivos gestores.
Graças à aplicação de eficientes estratégias, o sistema se rege rigidamente controlado pelo consórcio entre as forças do Mercado e os aparelhos do Estado. Todos os aparelhos deste se acham, de algum modo, assediados pelas investidas de caráter mercantilista. Por meio de um conjunto de táticas, o Mercado logra estabelecer “relações perigosas” com diferentes agentes do Estado, seja por formação de “lobbies”, seja por cooptação, seja por meio de alianças fundadas apenas nos interesses em voga.
Não menos importante, é perceber-se como tal estrutura se reflete no quadro da cultura, em particular por meio da produção de uma grade de valores compatíveis com a mesma lógica. Aqui se vale, com freqüência e com eficácia, do enorme potencial da mídia, da propaganda e publicidade.
Também no plano da formação, constata-se um liame de reconhecido peso – que pode ser crítico ou funcional diante da configuração das relações culturais hegemônicas do sistema. Depende do tipo de formação. Aqui tem um lugar privilegiado o poder da mídia como caixa de ressonância dos valores, idéias e interesses preponderantes (no caso, os do Mercado e seu Estado), com especial destaque para a televisão. Influência intimamente associada à grade de valores em voga nos espaços escolares, religiosos, associativos, familiares, etc.
Não se deve subestimar, por conseguinte, o papel do sub-sistema de educação em vigor. Neste caso, a escola, nas mais distintas instâncias níveis e modalidades. Aqui se vai consolidando a ideologia dominante, que é a da classe dominante.
Ao mesmo tempo, convém situar a relevância de como se dão a organização e as formas de manifestação das distintas forças sociais, diante das características desse tipo de sociabilidade.
Isto posto, tratamos, em seguida, de formular alguns questionamentos provocativos acerca desses desafios, preferindo listar um certo número de questionamentos, agrupados conforme sua área mais pertinente, de modo a distinguir, sem separar, áreas como a sócio-ambiental, a de produção, a de gestão, a de formação, a dos valores... Ao fazê-lo, alertamos com ênfase sobre a necessidade de percebermos e levarmos na devida conta o necessário entrelaçamento existente entre todas as áreas consideradas.
1. Na área sócio-ambiental
- Tendo presente o caráter das forças (Mercado e Estado) que hegemonizam a concepção, a implementação, a avaliação e a redefinição das políticas sócio-ambientais, será razoável seguirmos surpresos diante da inércia ou mesmo da involução dos resultados, também nesta área, como se deu, por ex., na Rio + 20?
- Considerando que reside, em grande medida, no setor sócio-ambiental o centro dos interesses econômicos das grandes multinacionais e das grandes empreiteiras (hidrelétricas, hidro-agronegócio, biodiversidade...), e considerando a forte influência ou controle que elas têm sobre o Estado, será razoável alimentar alguma esperança de que as conferências e fóruns oficiais respondam positivamente aos desafios sócio-ambientais, na perspectiva dos povos e dos viventes do Planeta?
2. Na esfera da produção
- O que nos leva a acreditar que as forças centrais do Capital (transnacionais, grandes potências, organismos multilaterais...) estejam dispostas a respeitar os direitos da Terra e dos povos, de modo a confiar-lhes nossas expectativas de mudança?
- Salvo aos olhos de quem se contente com um papel social do Estado limitado a jogar aos pobres as migalhas das riquezas, assegurando ao grande Capital as grandes fatias das riquezas, das terras e da renda, será razoável seguir-se investindo no receituário convencional de enfrentamento dos desafios (processo eleitoral, democracia de duvidosa representatividade, culto da personalidade, etc.?
- Tomando em consideração essa mesma relação entre Mercado e Estado, no caso tanto das grandes potências norte-americanas e européias, quanto das potências emergentes, que diferenças substantivas há entre os frutos dessas mesmas instâncias aqui e lá?
- Que resultados efetivos tal relação pode oferecer para a superação, não apenas da miséria (com o mero “dar o pão”), mas sobretudo para a superação da desigualdade social, a raiz maior do problema?
- Na prática, é razoável esperar-se – e assim seguir-se apostando – que seja possível assegurar condições dignas ao conjunto dos cidadãos e das cidadãs (trabalho, terra, alimentação, moradia, educação, saúde, seguridade social, previdência, lazer, participação na produção cultural, equidade nas relações sociais de gênero, de etnia, de geração, de espacialidade, de liberdade...), sem alterar substancialmente o modo de produção e de consumo, de modo inclusive a extinguir os privilégios dos grandes conglomerados atuando nos diferentes setores da economia?
- Como se comportam, quanto a isto, as grandes potências e o Estado, em geral, inclusive o Brasil?
- Tomando-se como ilustração apenas o caso da estrutura fundiária, da exploração mineral, da gestão de nossa biodiversidade, por que será que o Estado (não apenas o do Brasil) só intervém – e quando o faz, com freqüência, é no favorecimento aos interesses do Mercado -, após a deflagração dos conflitos, dos quais resultam centenas de assassinatos de trabalhadores, de índios, de quilombolas, de pescadores, de ribeirinhos, e quase nunca se antecipando aos mesmos, atuando na raiz do problema, por meio de efetivas políticas estruturantes como a realização da Reforma Agrária, da demarcação das terras indígenas e quilombolas...?
3. No campo político
- Sempre atentos para o fato de que o campo político – assim como cada uma das demais esferas da realidade social - é expressão, é parte componente e também produto do complexo de relações características de qualquer sociabilidade, também desta, claro, perguntamo-nos qual o perfil preponderante das forças políticas hegemônicas que aqui agem, nas distintas esferas de poder, e nos distintos âmbitos de abrangência dos entes federados?
- Na sucessão de decisões tomadas, em todos essas instâncias, à parte uma ou outra exceção, quê interesses substantivos prevalecem: os das classes populares ou os dos setores privilegiados?
- Não obstante a evidência de tal performance, que caminhos caminhos têm sido tradicionalmente trilhados para se enfrentar tal desafio?
- À exceção de ações alternativas da parte de um ou de outro desses agentes – mais a nível pessoal do que por força do perfil do agrupo de pertença -, quais têm sido os frutos rotineiros daí resultantes, eleição após eleição, inclusive naquelas em que se logra renovar mais da metade de seus componentes?
- Talvez por superestimar-se o peso da tradição, prefira-se seguir tentando colocar “remendo novo em pano velho”. Mas, examinando-se bem a questão, logo se percebe não se tratar de uma tradição das mais antigas, considerando-se que essa ordem política conta com apenas alguns séculos, na milenar caminhada histórica da humanidade. Quem disse que um modelo político que tenha cumprido seu papel, durante determinado período da história, e já apresentando evidentes sinais de exaustão, não está a requerer dos cidadãos e cidadãs de hoje um empenho mais consistente e continuado de superação por outro que responda à altura aos desafios presentes?
- E, ao fazê-lo, por que não ousar empreender novos caminhos, novo instrumento político de gestão, alternativo ao modelo de Estado, nem que para isto os cidadãos e cidadãs devam tomar décadas afio?
- Até que ponto é bastante para isto o mero reconhecimento dos sinais de exaustão desse modelo, sem um firme e continuado empenho de ousar empreender caminhos alternativos, ainda que de alcance molecular?
4. Na grade de valores
- A qualidade de uma árvore é atestada por seus frutos. São bem conhecidos os frutos oferecidos pelo atual modelo, também no plano dos valores: o individualismo (inclusive o culto da personalidade), a superestimação da condição de chefe (donde a cultura presidencialista),, a concorrência desenfreada, o pragmatismo (a famosa “Lei do Gerson”: “Faça como eu: leve vantagem em tudo!”), a avidez pelo ter, pelo poder, o imediatismo, o desrespeito ao ritmo da natureza, a esquizofrenia individual ou coletiva como modelo de portar-se. Como aspirar a protagonizar uma nova sociedade sem ousar o contínuo exercício de autocrítica e de sinalização convincente em direção a práticas alternativas a essa grade de valores?
- É conhecida a enorme força de persuasão ou de incessante inculcação dos valores do Mercado sobre imensas maiorias da população – inclusive de crianças, adolescentes e jovens! -, por meio da mídia convencional, seja por meio de programas sensacionalistas (por ex., os que exploram o cotidiano da delinquência), seja por conta de sua propaganda e publicidade, bem como pela devastadora ação de sua programação de entretenimentos, em especial pelo estilo dominante de suas novelas. Salvo honrosas exceções, a grande maioria das novelas, sob o pretexto da livre criação artística, cumpre um enorme papel político-pedagógico, de caráter quase sempre negativo, à medida que se recorre, como “matéria prima” de sua elaboração, aos extintos mais perversos do ser humano, alçando-os, expressa ou subliminarmente, à categoria de modelo, transformando atitudes de esquizofrenia, não tanto como limites, mas como comportamento naturalizado, como padrão, enfim. O que se pode esperar de alternativo desse modelo mediático?
- Lidamos com uma ampla diversidade de valores, que impregnam necessariamente as diferentes esferas de nossa realidade (intra-subjetiva, inter-subjetiva, familiar, comunitária, societal, permeando espaços de produção, de consumo, de poder, de relação com a Natureza e com o Sagrado...). Até que ponto as críticas pertinentes que lançamos ao chamado “mundo político”, somos capazes de dirigir, em primeiro lugar, a nós mesmos, no dia-a-dia do trânsito, nos cotidiano profissional (em que tantas vezes, sucumbimos à privatização dos espaços públicos)?
5. No plano da formação
- Na organização, no planejamento, na implementação, no acompanhamento e na avaliação do nosso sistema educativo, é mesmo que pontifica como protagonista central, senão o Estado e seus respectivos aparelhos, com o envolvimento passivo das organizações de base?
- Sem negar as exceções de pessoas ou segmentos singulares afinados com as aspirações formativas das forças vivas da sociedade, é razoável esperarmos seguir atribuindo ao Estado a responsabilidade de controlar o sistema educacional, numa perspectiva de alternatividade?
- Ou caberia, antes, aos sujeitos sociais da sociedade a tarefa de produzir e vivenciar tal processo formativo de feição alternativa?
- Têm-se comportado assim os principais protagonistas desse processo de formação, em especial os movimentos sociais com perfil de alternatividade ao sistema vigente?
- Quais as implicações previsíveis para os principais protagonistas de mudança, quando estes abdicam de protagonizar seu próprio processo formativo em favor de uma composição com os agentes do Estado?
6. No terreno da organização e das lutas
- É relativamente conhecida a contribuição de clássicos como Marx, Weber e Troeltsch à compreensão da ação dos movimentos sociais, na história. Os dois últimos, por ex., alertavam quanto à tendência de movimentos socais que, irrompendo impetuosos em seu propósito mudancista, vão progressivamente aliviando seu discurso e suas práticas, à medida que logram conquistar algumas de suas reivindicações. Algo que parece bem aplicável a movimentos como o PT, a CUT e outros. Até que ponto, a julgar pelo crescente nível de colaboração interclassista (inclusive por dentro do Estado), isto não concerne até mesmo movimentos sociais com reconhecida história de lutas, na perspectiva de mudança social?
Levantamos tais indagações, com propósito provocativo, e sem pretensão de julgamento, mas tentando ajudar numa perspectiva do saudável exercício de autocrítica. Bem sabemos que as conquistas pelas quais nos movemos, não virão a curto prazo, nem por acesso de voluntarismo. Por outro lado, segue bastante sedutora, em setores de certa esquerda, a aposta na “tomada do quartel” (expressão designativa da cega aposta no poder das armas). Considerando-se que a atual correlação de forças desaconselha a olhos vistos tal recurso, indagamo-nos até que ponto tal contexto não induza tais setores ao desânimo de lutar com a arma da crítica, assumindo suas tarefas ético-políticas, lado a lado dos lutadores e lutadoras do povo, mobilizados no grito das ruas?
João Pessoa, 29 de junho de 2012.
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