domingo, 1 de março de 2015

Play list "Rio eu gosto de você" - 450 anos de aniversário.













Chico Alencar - Em aniversário a gente costuma presentear, né? Pois hoje, nos 450 anos do Rio, devemos dar um presente à nossa cidade de tantas bençãos naturais. Há mil maneiras de fazê-lo. Não precisa ter grana, basta boa vontade: regar uma planta, plantar uma árvore, recolher lixo do chão, ter hábitos mais moderados de consumo (sobretudo com a preciosa água), dar bom dia a quem passa, resgatando o espírito de vizinhança (nada de 'cada um no seu quadrado'), exercer com plenitude sua cidadania crítica, tendo consciência dos direitos sociais. O Rio é mais, quando a gente entende e VIVE cidade como coletivo de cidadão!

450 anos de São Sebastião do Rio de Janeiro, cidade que já começou com luta entre portugueses e franceses, usando os nativos como 'bucha de canhão'. Sítio lindo, único no mundo, mas também marcado pela feiúra da exclusão e pelo não reconhecimento a quem ergueu a cidade: seus escravos, seu povo humilde e anônimo, sua gente trabalhadora que nos transporta, nos alimenta, nos dá o sustento cotidiano. Rio de contradições, da aspereza e da poesia da vida. Rio tão musical mas que, volta e meia, desafina. Estação primeira ou derradeira? Nossa batucada, nossa cidade! 





A melhor palavra para definir uma cidade é a dos versos. A melhor maneira de se cantar uma cidade é a canção. Com vocês, o mineiro Drummond, e as 'Saudades da Guanabara', de Aldir Blanc e Moacyr Luz:

RETRATO DE UMA CIDADE
I
Tem nome de rio esta cidade
onde brincam os rios de esconder.
Cidade feita de montanha
em casamento indissolúvel
com o mar.
Aqui
amanhece como em qualquer parte do mundo
mas vibra o sentimento
de que as coisas se amaram durante a noite.
As coisas se amaram. E despertam
mais jovens, com apetite de viver
os jogos de luz na espuma,
o topázio do sol na folhagem,
a irisação da hora
na areia desdobrada até o limite do olhar.
Formas adolescentes ou maduras
recortam-se em escultura de água borrifada.
Um riso claro, que vem de antes da Grécia
(vem do instinto)
coroa a sarabanda a beira-mar.
Repara, repara neste corpo
que é flor no ato de florir
entre barraca e prancha de surf,
luxuosamente flor, gratuitamente flor
ofertada à vista de quem passa
no ato de ver e não colher.
II
Eis que um frenesi ganha este povo,
risca o asfalto da avenida, fere o ar.
O Rio toma forma de sambista.
É puro carnaval, loucura mansa,
a reboar no canto de mil bocas,
de dez mil, de trinta mil, de cem mil bocas,
no ritual de entrega a um deus amigo,
deus veloz que passa e deixa
rastro de música no espaço
para o resto do ano.
E não se esgota o impulso da cidade
na festa colorida. Outra festa se estende
por todo o corpo ardente dos subúrbios
até o mármore e o fumé
de sofisticados, burgueses edifícios:
uma paixão:
a bola
o drible
o chute
o gol
no estádio-templo que celebra
os nervosos ofícios anuais
do Campeonato.
Cristo, uma estátua? Uma presença,
do alto, não dos astros,
mas do Corcovado, bem mais perto
da humana contingência,
preside ao viver geral, sem muito esforço,
pois é lei carioca
(ou destino carioca, tanto faz)
misturar tristeza, amor e som,
trabalho, piada, loteria
na mesma concha do momento
que é preciso lamber até a última
gota de mel e nervos, plenamente.
A sensualidade esvoaçante
em caminhos de sombra e ao dia claro
de colinas e angras,
no ar tropical infunde a essência
de redondas volúpias repartidas.
Em torno de mulher
o sistema de gesto e de vozes
vai-se tecendo. E vai-se definindo
a alma do Rio: vê mulher em tudo.
Na curva dos jardins, no talhe esbelto
do coqueiro, na torre circular,
no perfil do morto e no fluir da água,
mulher mulher mulher mulher mulher.
III
Cada cidade tem sua linguagem
nas dobras da linguagem transparente.
Pula
do cofre da gíria uma riqueza,
do Rio apenas, de mais nenhum Brasil.
Diamantes-minuto, palavras
cintilam por toda parte, num relâmpago,
e se apagam. Morre na rua a ondulação
do signo irônico.
Já outros vêm saltando em profusão.
Este Rio…
Este fingir que nada é sério, nada, nada,
e no fundo guardar o religioso
terror, sacro fervor
que vai de Ogum e Iemanjá ao Menino Jesus de Praga,
e no altar barroco ou no terreiro
consagra a mesma vela acesa,
a mesma rosa branca, a mesma palma
à Divindade longe.
Este Rio peralta!
Rio dengoso, erótico, fraterno,
aberto ao mundo, laranja
de cinqüenta sabores diferentes
(alguns amargos, por que não?),
laranja toda em chama, sumarenta
de amor.
Repara, repara nas nuvens; vão desatando
bandeiras de púrpura e violeta
sobre os montes e o mar.
Anoitece no Rio. A noite é luz sonhando.
Carlos Drummond de Andrade (1977)




Este domingo que chega junto com março bem que podia ter 'águas fechando o verão', como cantou um dos filhos diletos do Rio, nosso maestro soberano Tom Jobim.
Amanhã a cidade celebra 450 anos de sua fundação - de início, um acampamento militar para a conquista e colonização portuguesa. Rio de Janeiro, fevereiro, março, julho, dezembro... Sebastião também, imagem maltratada e bela, louvada na comovente prece/canção de Gil e Bituca.



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