Nas Olimpíadas de Tóquio do ano corrente de 2021, dentre tantos ensinamentos, sublinho agora o momento inesperado e desconcertante em que a badalada atleta Simone Biles abriu mão de competir nas finais individuais da ginástica artística.
Se viver, para toda e qualquer humana criatura é uma batalha, com muito mais força o é para a população negra. Saímos para a competição da vida sempre muito atrás. E isso é uma herança da escravidão e da mentira cívica da abolição. Ser vencedora ou vencedor, em qualquer campo da vida, exige da população negra disposições e persistências sobrenaturais. Por isso, entendemos facilmente o soteropolitano Gilberto Gil quando canta que "a felicidade do negro é uma felicidade guerreira".
Nessa batalha somos muitas vezes forçados a sempre dizer sim, a nunca parar... Dizem que desistir é coisa para gente fraca! Essa, a propósito, é a lógica do mundo branco da colonialidade capitalista, segundo o qual não podemos respirar e tão pouco parar. Tempo é dinheiro, dizem eles!
Como podemos nos dar o luxo de dar um passo atrás e respirar? Como frear e ir para o acostamento se tudo e todos nos mandam acelerar?Quer seja pela sobrevivência ou para conquistar lugares disputados na sociedade, sabemos que lutar é a lei. "Liberdade é uma luta constante", lembra Conceição Evaristo. E essa batalha travamos muitas vezes as custas de terríveis sofrimentos e adoecimentos físicos e psíquicos.
O racismo estrutural é adoecedor. Já nascemos sob pressão! E ela vem de todos os lados. Nem sempre a cabeça aguenta. Diz Biles: "você sente o peso do mundo".
E como se não bastasse também contamos com as pressões dos nossos iguais que nos tem como referência e sobre nós depositam suas expectativas e projeções. Há inclusive aqueles que, sob o pretexto do "ninguém larga a mão de ninguém", querem nos enlaçar em seus projetos de vida e luta. Também, as vezes, é preciso desagradar a esses, sem culpa ou remorso. "O lançar de mãos não pode ser algema", diz. Conceição Evaristo!
Por isso, considero a atitude de Simone Biles de grande valor psicológico.
Há momentos que, doa a quem doer, temos que olhar para dentro e respeitar nossos limites internos. É a hora do "freio emocional". Ou damos um passo atrás ou nos dilaceramos. Há momentos que temos que dizer: "agora não posso ultrapassar o limite interno; e isso não significa, necessariamente, abandonar a competição ou luta da vida. Há o momento da saída, de ir para arquibancada e torcer para que outras e outros avancem. As vezes é preciso sair de cena!
É bem verdade que dizer "não" para uma atleta que chegou onde Simone Biles chegou é muito mais "fácil", comparado a uma atleta iniciante. Entre nós são pouquíssimos os que podem ouvir a voz do coração e dizer "sim" ou "não".
Como minha mãe livremente poderia recusar uma trouxa de roupa tendo que sustentar suas filhas e seus filhos? Quantos "sins" teve que dizer com lágrimas nos olhos. Mas isso não significa dizer que não teve seus momentos de recuo e drible. O povo preto teve que aprender a dizer "não" e recuar de mil maneiras; hora no enfrentando direto, hora na ginga de um bom capoeira. O malandro diz "sim" e "não" na ginga insubmissa de seu corpo.
Mas, para a nossa reflexão vale a certeza de que dizer "não" quando todos esperam um "sim" é sempre psicologicamente desafiador.
Fica, pois, um potente ensinamento para toda humanidade neste tempo dramático de pandemia: a necessidade de, as vezes, se permitir dar um passo trás.
É possível pensar que, em alguns momentos, nossa alma só precisa desse passo (para trás) para poder se impusionar com mais potência para frente. Nossa alma preta sabe, como lembrou Bezerra da Silva, que nem sempre "apertar" significa "acender". Ensinou o mestre: "pra fazer a cabeça tem hora". E é exatamente isso que diz a Bíblia: "Para tudo há tempo debaixo do sol".
É,pois, preciso respeitar, quanto possível, quando a alma diz "não"! Há horas que a vida deseja falar "Da calma e do silêncio". É a partir desse tempo interior sublime que Conceição escreve: "Quando os meus pés abrandarem na marcha, por favor, não me forcem... Deixe-me quieta, na aparente inércia". Também lembra com ancestral sabedoria Conceição Evaristo que é preciso "cuidar dos passos assuntando as vias, ir se vigiando atento, que o buraco é fundo".
Quanta psicologia empretiçada não há nessas palavras, nesse recado ou nessa "visão" de Conceição?
Simone Biles percebeu que realmente o "buraco é fundo" e teve coragem de ser fraca e bancar o peso da decisão.
Nem sempre podemos corresponder as expectativas e projeções dos outros, nem mesmo daqueles e daquelas que tanto amamos; nem que entre esses estejam nossas mães ou nossos pais.
Há momentos que a avaliação é pessoal e intransferível e, por vezes, incomunicável. Não podemos viver a partir do número de curtidas na internet. As vezes para ouvir a alma precisamos perder seguidores!
O ego precisa aprender a suportar o peso da frustração e bancar a hora do "sim" e a hora do "não".
Desistir nem sempre é sinal de fraqueza!
Não somos deusas nem deuses; nem Cristo, nem Buda, Xiva, Alá ou Orixá. Não somos invulneráveis, tampouco imortais. Somos sim humanos; demasiadamente, humanos... E também não somos portadores da eterna juventude... Ao dizer "não" Simone Baile deu um passo gigantesco rumo à maturidade, que exige a acolhida do limite. O ideal infantilizado da "eterna ou do eterno jovem" faz do humano um eterno aventureiro desenraizado e sem condições de desenvolver a personalidade. É a eterna criança que não conhece limite e que não suporta o peso da frustração.
Biles ouviu a "preta velha interior" que lhe disse: "você não é mais nova como antes". E "macaco velho não põe a mão na combuca"... "Todo tempo tem seu tempo". E "quem não pode com o tempo não inventa moda".
A meu juízo, fruto da imaginação, desse diálogo interior da atleta com sua "velha" oculta nasceu uma Simone Biles maturada e capaz de dizer: "Temos que proteger nossas mentes e nossos corpos e não apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos... Somos pessoas e às vezes só se tem que dar um passo atrás".
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