Rafael Moreira fala de seu livro que discute a cultura após a extinção do MinC por Bolsonaro
Desde março em 1985, quando foi criado, até os seus 33 anos de existência, em 2019, o ministério da Cultura (MinC) viveu anos em que tentava se equilibrar entre a luta por orçamento, a tentativa de se afirmar como pasta de relevância para a administração nacional e as dificuldades políticas que, em um momento ou outro, se acentuavam e ameaçavam as políticas do setor.
Mas foi no governo Bolsonaro, precisamente no mês de janeiro do primeiro ano de comando do ex-capitão, que o MinC viveu seu pior terror, ao ser formalmente extinto como pasta para se tornar uma secretaria. A medida, oficializada em despacho do presidente da República que marcou sua primeira reforma ministerial, rebaixou o ministério a um status que o levou ao centro de uma das principais polêmicas daquele momento.
“A partir de quando você rebaixa uma determinada área da condição de ministério para de secretaria, sinaliza que ela passa a ter menos importância na definição de políticas públicas e que também vai passar necessariamente a contar com uma parte menor do orçamento”, resume o cientista político Rafael Moreira, que recentemente publicou o livro O Fim do Ministério da Cultura: Reflexões sobre as Políticas Culturais na Era Pós-MinC, em parceria com o jornalista Lincoln Spada.
Em conversa com o Brasil de Fato, Moreira refletiu sobre os efeitos do desmonte e destacou, entre outras coisas, que vê a recriação do MinC como “ponto de partida” para o futuro governo federal, “quem quer que seja” o presidente da República. Confirma a seguir a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: Em janeiro 2019, o Ministério da Cultura perdeu o status de ministério e foi convertido em secretaria especial de Cultura, inclusive vinculada agora ao ministério do Turismo. Em que medida isso mudou o papel da pasta?
Rafael Moreira: A partir do momento em que você rebaixa uma determinada área da condição de ministério para a de secretaria, você sinaliza para as pessoas do país em geral que aquela área passa a ter menos importância na definição de políticas públicas e que também vai passar necessariamente a contar com uma parte menor do orçamento.
A pessoa que vai ficar à frente daquela pasta tem menor poder de barganha internamente na hora de definir os rumos do orçamento do país. Isso se desdobra nos outros órgãos ligados ao Ministério da Cultura.
É importante lembrar que o MinC não era só um ministério. Ele já tinha toda a sua estrutura, suas políticas públicas que vinham sendo tocadas há anos. Também estava ligada ao ministério uma série de órgãos e secretarias, que também passam por esse processo de desmonte. Então, só para citar alguns, você tem o Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], tem o Ibram [Instituto Brasileiro de Museus], tem a Fundação Cultural Palmares.
Essa mudança de estrutura organizacional e política contradiz os preceitos constitucionais? A Constituição diz que o Estado deve garantir a todos não só o acesso às fontes da cultura nacional, mas também deve apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais...
Sim. A questão da cultura está definida na Constituição como um direito das pessoas. Isso, inclusive, se consolida a partir da própria Constituição de 1988. Vale lembrar que o MinC foi criado a partir da transição democrática.
O país atravessava uma ditadura que já durava 21 anos e, como parte dos acordos da aliança democrática que deu início aos governos eleitos a partir de então, ainda que o primeiro tenha sido eleito de forma indireta por um colégio eleitoral [de Tancredo Neves, que faleceu antes de assumir e a consequente gestão de José Sarney] consolidou-se a ideia de que deveria ser criado um ministério onde se pudesse congregar todas as políticas públicas culturais do país.
A gente já tinha algumas experiências locais e estaduais, de Secretaria de Cultura, mas até então não existia um ministério que pudesse congregar todas as políticas publicas e também, de certa forma, dar representação aos artistas. A gente teve ali figuras importantíssimas que passaram pelo ministério.
Acho importante pontuar isso. Francisco Weffort, Celso Furtado, Juca Ferreira e Gilberto Gil, o mais lembrado, são pessoas que, além de representarem os anseios dos artistas, dos fazedores de cultura do nosso país, procuraram levar adiante políticas que justamente dessem voz ou canalizassem essa previsão constitucional de que cultura é um direito de todos.
Então, a partir do momento em que você rebaixa um ministério a uma condição de secretaria, você está sinalizando pro país que aquilo que está previsto na sua própria Constituição, a partir de então, passa a ter menos importância para aquele determinado governo.
A cultura, então, quando assume essa forma institucional mais robusta, como é o caso de um ministério, tem mais força para alavancar esse movimento, esse incentivo que a Constituição exige que o Estado dê à área?
Exatamente. Ela passa a ter mais força porque, a partir do ministério, você passa a ter uma estrutura em que você vai contar com servidores públicos que são diretamente ligados a esse setor e também com os artistas, que, de certa forma, vão começar a participar do processo de elaboração de políticas públicas ligadas àquele setor em específico, e é por meio de um ministério que você consegue consolidar essas políticas, consegue fazer com que elas passem a ter uma certa continuidade, independentemente de alternância de governo, de alternância de poder entre diferentes partidos, etc.
A gente tem uma série de políticas, como a própria Lei Rounet – que é sempre uma das mais lembradas –, que foram implementadas lá atrás e que, obviamente, passam por um processo de aperfeiçoamento, independentemente do governo que esteja no poder, mas que se consolidam, que reconhecem a importância você ter políticas tais como a Lei Rounet, mas também como várias outras.
Temos os pontos de cultura, as praças das artes, enfim, uma série de políticas culturais que acabam se consolidando a partir da existência de um ministério.
Aproveitando que você falou da Lei Rouanet, a gente vive hoje uma grande controvérsia em relação a essa política pública, que foi criada já há algum tempo e hoje parece ser alvo de uma espécie de campanha de armadilhas retóricas que tentam enfraquecer o objetivo da política. É possível concluir que o fim de uma instituição como o MinC talvez incentive esse movimento de difamação da Lei Rouanet?
Incentiva, sim. Só acho importante pontuar que a Lei Rouanet sofria críticas mesmo antes do atual governo, e ela mesma foi criticada tanto em governos de direita quanto de esquerda porque, muitas vezes, ela acaba levando a uma concentração dos recursos na região Centro-Sul.
Então, críticas havia, mas a questão é: a partir do momento em que você critica uma determinada política pública, não é para destruí-la, mas sim para aperfeiçoá-la. Quando o Bolsonaro participa das eleições de 2018, ele tem ali duas “grandes” propostas para a Cultura. A primeira delas é justamente a destruição do MinC e a segunda, de certa forma, é a destruição da Lei Rouanet, e deu no que deu.
Agora, em relação à sua pergunta, a gente pontua inclusive no livro que a extinção do MinC, a perseguição que os artistas e algumas leis sofrem, como é o caso da Lei Rouanet, acaba se desdobramento nas outras esferas de poder. Então, só para citar um dos entrevistados, o Mateus Sartori, que foi secretário de Cultura de algumas gestões no interior de São Paulo, pontua na entrevista dele [no livro] essa perseguição que os artistas tiveram no nível municipal na cidade dele.
Eles tiveram que fazer uma série de reuniões com empresários da cidade, fazedores de cultura porque já havia uma lei de incentivo municipal, mas, a partir de quando o Bolsonaro ganha a eleição e vem com essa retórica de perseguição à lei, os empresários ficaram até com o pé atrás para continuar patrocinando eventos culturais na própria cidade.
Então, eles tiveram que dizer “olha, a lei que a gente tem aqui na cidade é municipal, não é a Lei Rouanet, mas, independentemente disso, vocês não devem temer a Lei Rouanet”. Então, só para pessoas terem a dimensão do que essa retórica de perseguição tanto aos artistas quanto ao MinC e a algumas leis acaba tendo no nosso cotidiano...
A partir do momento em que você tem um presidente da República que persegue a Lei Rouanet, essa perseguição se desdobra em outros níveis de governo e isso afeta diretamente a oferta de atividades culturais que a gente tem no nosso município.
A jornada do MinC nesta nossa frágil democracia pós-ditadura militar durou 33 anos. Curiosamente, a pasta foi criada no mesmo dia em que se considera o fim do regime, 15 de março de 1985. E aí, depois, vem o governo Bolsonaro e põe fim ao ministério logo no comecinho do primeiro ano de gestão. A gente pode afirmar que a valorização das políticas de cultura vem claramente junto do desenvolvimento democrático, ao mesmo tempo em que governos autoritários parecem desidratar essa área?
Sim. A gente, inclusive, pontua algo no livro que relaciona aquilo que está acontecendo no nosso país com o que acontece em outros países. Mundo afora lideranças do campo da extrema direita têm ascendido ao poder por vias democráticas e, a partir do momento em que elas chegam ao poder, elas passam a minar a democracia por dentro.
Essa é uma das principais linhas de pesquisa na ciência política nos últimos anos. E boa parte das pessoas que ascendem por essas vias passam a adotar uma postura de perseguição explícita à sua cultura, à cultura do país, até pelo papel que ela cumpre. A cultura nos faz refletir, nos faz passar uma mensagem para um público mais amplo que mesmo um próprio livro ou artigo científico não consegue passar, até pelo alcance que esse tipo de produção tem.
Uma música, letra de rap, peça de teatro, nação de maracatu, tem a capacidade de gerar reflexão crítica nas pessoas sobre aquilo que está acontecendo no país que um livro, muitas vezes, não consegue cumprir.
Então, eu acho que tem, sim, uma relação entre a ascensão desses governos de direita e a perseguição que a cultura tem sofrido. A gente também pontua, além dessa reflexão sobre o que está acontecendo mundo afora, que esse processo já estava em curso mesmo antes do governo Bolsonaro. Vale lembrar que a gente já teve ali, ainda em 2017 ou 2016, se não em engano, aquela exposição que teve que ser fechada em Porto Alegre porque houve uma série de manifestações de extrema direita, teve o [agora] ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella tentando tirar de circulação um gibi que tinha um beijo sendo exposto na Bienal do Rio de Janeiro.
Então, já havia uma série de perseguições em curso com pessoas que atuam na área da cultura e a extinção do MinC pelo governo Bolsonaro foi o auge do processo, o fundo do poço. Nunca houve uma perseguição tão grande, tão explícita aos fazedores de cultura do país.
Depois de vocês terem se debruçado sobre o que aconteceu com o MinC, de terem refletido sobre isso e entrevistado várias pessoas da rede de atuação na Cultura, o que vocês trazem como conclusão na pesquisa que poderiam compartilhar com a gente?
A gente aponta que, quem quer que assuma a Presidência da República ano que vem, vai pegá-la numa condição de terra arrasada em se tratando das políticas públicas. Lógico que isso também vai se desdobrar em outras áreas das políticas. A política ambiental foi completamente destruída, o MEC [Ministério da Educação] nem se fala, enfim, mas quem quer que assuma vai pegar uma terra arrasada, e a reconstrução das políticas vai passar necessariamente pela reconstrução do MinC.
Isso vai acabar sendo o primeiro passo que necessariamente vai ter que ser dado. Mas, lógico, isso é apenas o primeiro passo, e não um ponto de chegada. Mas a recriação do ministério é, sim, um ponto de partida necessário.
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