domingo, 26 de junho de 2022

Os desafios da cultura no Governo do Petro

 É fundamental desenvolver compromissos legislativos, sempre dotados de orçamento, que garantam o direito fundamental dos cidadãos a usufruir de uma vida cultural de qualidade

SAIA VERGARA JAIME

22 DE JUNHO DE 2022 - 07:15 BRT

Um homem passa pela sede de campanha do candidato Gustavo Petro.LUÍS EDUARDO NORIEGA A. (EFE)

A administração da cultura é de imensa complexidade. Geralmente está associado a uma carreira menor dentro da administração do Estado. Nada está mais longe da realidade. Isso é de capital importância em um país que, aliás, é uma potência multiétnica e multicultural, como reconhece a Constituição Nacional de 1991. Quem assume a direção do Ministério da Cultura deve possuir conhecimentos técnicos em arte, cultura e patrimônio, com comprovada experiência na gestão do público -o que já é um desafio em si mesmo-, bem como uma ampla capacidade de negociação que lhe permite influenciar o desenho do Orçamento Geral da Nação (PGN). Isso, se você quiser contribuir para quitar a dívida histórica com esse setor, que tem sido um dos mais esquecidos pelo Estado.

Quando falamos de cultura, referimo-nos a um território criativo e produtivo de diversidade muitas vezes incompreensível. Para citar apenas algumas áreas, falaremos das artes em geral, que incluem as artes cênicas —teatro, circo, música, dança —, as artes plásticas —pintura, escultura, cerâmica, etc.— e as artes visuais —fotografia, videoarte, cinema, etc.-. A cultura também é moldada pela literatura e pelos ofícios associados aos livros, os novos meios digitais e de comunicação, arquitetura, artesanato, bem como manifestações e expressões populares -festas, festividades, carnavais, ofícios tradicionais, etc.-. Da mesma forma, abrange tudo aquilo cuja declaração o certifique como património material, imaterial e/ou natural: desde conjuntos arquitectónicos de todas as épocas, passando por expressões intangíveis muito diversas (como a obstetrícia, cozinhas tradicionais, línguas ou danças), até paisagens naturais sem as quais a dinâmica sociocultural de nossos povos não poderia ser compreendida.

A administração da cultura também deve considerar que existem instituições nevrálgicas, muitas vezes constituídas por redes territoriais ou nacionais, como museus, bibliotecas, espaços artísticos, coleções, instituições de formação e institutos de pesquisa. E que, em todas elas, devem ser criados e fortalecidos sistemas de informação continuamente modernizados e atualizados. Isso, para favorecer a tomada de decisões, mas também para avançar para a transparência e a participação cidadã que os modelos institucionais de governo aberto exigem nas democracias progressistas do século XXI.

Quem adentra as complexidades da gestão pública da cultura deve ter clareza sobre a importância da formulação de planos de cultura e planos setoriais que busquem caracterizar, diagnosticar e propor ações específicas que permitam atender às necessidades do universo cultural desde o nível nacional, municipal e/ou distrito, com enfoques populacionais e territoriais. Idealmente, estes planos, construídos pelos cidadãos com o apoio técnico dos Conselhos das Áreas Artísticas, órgãos de participação sectorial nacional e territorial, devem também ser promovidos pelo Ministério da Cultura e pelas entidades culturais de cada departamento, município e/ou distrito. Não podemos perder de vista a importância de acompanhar as entidades territoriais e também os cidadãos, na formulação dos Planos Especiais de Gestão e Proteção (PEMP) do patrimônio material existente em todo o território nacional, bem como nos Planos Especiais de Salvaguarda (PES) das manifestações do patrimônio imaterial. Ambos são instrumentos de gestão que procuram preservar a nossa riqueza patrimonial e que exigem imenso trabalho cidadão e institucional que deve incluir sempre um investimento económico.

Há uma base legislativa que vem se expandindo desde a Lei 397 de 1997 (Lei Geral da Cultura) até hoje com as últimas apostas feitas pelo presidente Duque para fomentar as indústrias culturais e criativas a partir do investimento privado. Também é essencial conhecer este outro mundo, porque aqui estão as chaves do que está lá e do que está faltando, o que funciona e o que pode ser melhorado. Da mesma forma, é fundamental desenvolver compromissos legislativos, sempre dotados de orçamento, que garantam verdadeiramente o direito fundamental dos cidadãos de desfrutar de uma vida cultural de qualidade, garantindo padrões mínimos de trabalho para os trabalhadores culturais, que vivem em condições de extrema precariedade e informalidade.

Quem arriscar tomar as rédeas da cultura em nosso país deve saber que existem atividades econômicas relacionadas ao setor, como turismo, TIC, ciência e, claro, educação, com as quais devem trabalhar de forma muito articulada. E mais ainda, se este governo buscar fortalecer atividades que lhe permitam fazer a transição de economias extrativistas para economias criativas sustentáveis. E aí, as competências em relação ao relacionamento com o setor privado e com a cooperação internacional também são fundamentais.

O panorama de ação que já existe é vasto. E se expande ainda mais se forem levadas em consideração as propostas feitas no “Pacto Histórico e Cultural”, como foi chamado o documento endossado pelos então candidatos, Petro e França, no qual participaram mais de 1.500 pessoas de diferentes nós territoriais. Este articula múltiplas propostas a partir de oito linhas de trabalho, a partir da dívida histórica da cultura e propondo caminhos pelos quais os cidadãos consideram que ela pode ser liquidada. Os oito eixos concentram-se no compromisso territorial de gerar processos em torno da cultura de paz, que inclui o reconhecimento dos saberes ancestrais em cada região, bem como a inclusão da educação artística no currículo desde a primeira infância e na formalização do corpo docente. Enfatiza a necessidade de desenvolver produtos culturais inovadores para diferentes plataformas, reconhecer a participação de grupos populacionais - com foco no financiamento de projetos para jovens e mulheres - e promover a autonomia cultural territorial. Propõe também a melhoria da infraestrutura e do aprovisionamento, bem como a necessidade de manutenção dos monumentos e criação de contra-monumentos. Em relação às políticas e modelos de governança cultural, o documento preconiza a descentralização institucional e a formulação de planos com enfoque intergeracional. Oferece também diversas estratégias de intercâmbio e mobilidade de artistas, e de qualificação da associatividade para a promoção de economias criativas. 

Sobre as politicas publicas, nesses momentos de abertura ao diálogo com outros partidos, valeria a pena convidar os especialistas que criaram o programa de cultura do ex-candidato Fajardo, uma vez que há propostas de grande alcance em termos de fortalecimento institucional que seria importante considerar como parte das ações a serem desenvolvidas neste novo governo.

Quem assume o desafio de dirigir o portfólio de cultura deve estabelecer prioridades, valorizando o que existe, o que foi feito, o que falta e o que foi prometido, principalmente porque em quatro anos será muito difícil atender a tudo. E ainda mais se você levar em conta que tanto o presidente eleito quanto o vice-presidente falaram que este será um governo com abordagem territorial. Obra complexa: em 2022, o Ministério da Cultura recebeu um orçamento de investimento que não ultrapassou 400 bilhões de pesos, ou seja, 0,57% do PGN em investimento, que foi de US$ 69,6 bilhões. Este número é risível quando se trata de atender um dos setores que, segundo o DANE, foi um dos mais afetados pela pandemia. E é ainda mais quando comparado ao orçamento para Educação, que para este ano foi de US$ 49,5 bilhões; Defesa e Polícia aos quais foram atribuídos US$ 42,6 bilhões; Saúde e Proteção Social, com US$ 41,9 bilhões; Trabalho, com US$ 34,7 bilhões; ou o de Inclusão e Reconciliação Social, que tem US$ 23,2 bilhões. A abordagem territorial também tem outro enorme desafio além do econômico, que é a priorização: entre Bogotá, Antioquia e Cauca em 2022, quase um quarto do investimento do PGN foi compartilhado.

Quem é responsável pela pasta da cultura deve ter um mapeamento muito preciso das necessidades regionais e setoriais, e saber focar as prioridades, principalmente no atendimento às populações e territórios. E terá que negociar um orçamento de investimento decente para a cultura, participando ativamente do desenho do PGN do próximo governo que, supomos, terá um enfoque de gênero.

O discurso do novo governo gira em torno do fato de que a Colômbia será uma potência mundial da vida. Para isso, a contribuição da cultura será definitiva e deve estar no centro das políticas econômicas e sociais porque, como bem sabemos nós artistas deste país, quem empunha um instrumento musical, um pincel ou um cinzel; que pela força da poesia expressa sua inconformidade, seus desejos mais profundos; quem dança e canta para expressar seus impulsos mais íntimos, dificilmente conseguirá empunhar uma arma. A cultura é a essência da nossa vida juntos, é o legado dos nossos antepassados, é a esperança, aquilo que finalmente nos redime e salva.

*Ex-diretor do Instituto de Patrimônio e Cultura de Cartagena



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