Por
José de Oliveira Santos (Zezito)
Artigo escrito em 1997
José de Oliveira Santos (Zezito)
Artigo escrito em 1997
O presente artigo tem como objetivo apresentar um resgate histórico – critico, a partir da vivência pessoal e do reexame da memória escrita produzida nos 06 (seis) anos de existência do Projeto Reculturarte.
O inicio da experiência, em 1989 deu-se a partir do esforço conjunto da Associação dos Moradores e Amigos do Bairro América (AMABA), do Centro Sergipano de Educação Popular (CESEP) cuja sede naquele momento estava situada no Bairro América, com a participação de membros dos grupos de jovens da Igreja São Judas Tadeu, e em alguns momentos com a participação da assistente social do posto de extensão da Fundaçao Estadual de Bem Estar do Menor (FEBEM) no bairro América.
No início de 1989 foi promovida uma série de reuniões com o intuíto de engajar um grupo expressivo de jovens num esforço coletivo de recuperação da dignidade e cidadania das crianças e adolescentes. Após algumas tentativas de elaboração de estratégias para agrupar, socializar, reeducar e formar grupos de produção e geração de renda , junto ao publico infanto - juvenil , decidiu-se utilizar a arte e recreação, considerando que devia-se partir daquilo que é mais ligado ao mundo da criança e que por isso favorece mais a sua grupalizaçao.
Com o objetivo de melhorar a capacidade de intervenção dos jovens, foram realizadas algumas atividades de formação destacando-se nesse ano a realização de um Encontro de Jovens do bairro América, que reuniu representantes de 10 (dez) grupos, incluindo alguns de bairros adjacentes. O tema do encontro foi “A questão do menor abandonado em nosso meio”. Esse evento buscou também ampliar a quantidade de pessoas comprometidas com a proposta de trabalho.
Em termos de ação direta com as crianças, os registros dão conta da realização de um campeonato de bola de gude em maio, uma quadrilha junina em junho, e uma tarde de lazer em outubro de 1989. O grupo de capoeira já existente na AMABA desde 1988 foi incorporado a proposta de trabalho. Outra experiência inicial foi a turma do teatro, animado por um jovem do grupo teatral da igreja e a turma da dança, animada por uma professora, responsável pela organização da quadrilha junina. A formação da cooperativa dos guardadores de carro difere das outras iniciativas pela proposta de organizar os meninos que trabalhavam em frente a igreja, para obterem maiores condições de trabalho e aumento na renda financeira. Depois de algum tempo, em virtude da falta de experiência dos jovens educadores no trato das questões ligadas ao mundo do trabalho, a alfabetização e a recreação foram incorporadas como proposta de intervenção junto aos guardadores de carros.
Com o íntuito de oferecer condições de compra de material necessário para a realização das atividades foi solicitado e aprovado o apoio financeiro da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) de Salvador-Ba.
Em Setembro de 1989 acontece a participação do assessor do Projeto Reculturarte, José da Guia Marques, e três adolescentes no II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que reuniu em Brasília 700 crianças e 200 educadores do Brasil e de alguns países da América Latina para a discussão de problemas gerais ligados a infância e para pressionar os políticos e autoridades visando a aprovação do estatuto da criança e do adolescente.
Esse encontro contribuiu para o conhecimento de novas linhas de trabalho e iniciou o processo de articulação regional e nacional do Projeto Reculturarte com o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua.
O I Encontro de Crianças e Adolescentes do bairro América e a passeata contra a violência foram resultados da influencia positiva do Encontro em Brasília. Esses dois eventos e o I Festival Infantil foram os momentos de maior destaque no ano de 1990. A passeata contra a violência, inicialmente prevista para ser realizada no bairro América, tornou conhecido o Projeto Reculturarte além dos limites da comunidade, em virtude da revolta de expressivos setores da sociedade aracajuana contra a ação do grupo de extermínio que assassinou quatro crianças no bairro Terra Dura.
Inicialmente, a passeata contra a violência faria um protesto contra a morte de diversas crianças e adolescentes no bairro América que, segundo versões da policia, eram causadas pelas disputas internas entre os grupos de viciados e traficantes.
A partir das denuncias de garotos sobreviventes e da comprovação da participação de policiais na chacina da Terra Dura ficou confirmado que a famosa “guerra da maconha” era uma intervenção de setores da policia e da imprensa. Diante disso a AMABA aceitou a proposta de outras entidades e artistas para a realização de uma mobilização de protestos em conjunto.
Alem da articulação local, a passeata foi vinculada a a campanha nacional “Não Matem Nossas Crianças” coordenada pelo Centro de Apoio as Populações Marginalizadas (CEAP) do Rio de Janeiro que enviou a Aracaju um representante, Ivanir Santos.
De acordo com a entrevista concedida ao Jornal de Sergipe em 27 de novembro de 1990, Ivanir Santos afirmou que sua presença em Sergipe tinha por objetivo conhecer com profundidade a real situação dos menores marginalizados do Estado. “Foi surpreendente para mim, ver o Secretário de Segurança do Estado afirmar num programa local que o numero de casos de assassinatos de menores não era tão alto em Sergipe e verificar, junto aos dados da OAB, o registro de cerca de 140 mortes”, disse. Ivanir Santos explicou que o CEAP deverá fazer uma investigação própria sobre a situação em Sergipe para enviar os dados a Anistia Internacional.
Prosseguindo a experiência bem sucedida de realização dos momentos de formação, foi realizado em setembro de 1990, o 1O Encontro de Educadores do bairro América. Nesse momento, foi realizado um levantamento dos avanços e dos entraves que dificultavam a melhoria da qualidade do trabalho com as crianças e adolescentes. Nesse mesmo ano foi celebrado o convênio com a Visão Mundial, que garantiu a remuneração permanente de alguns educadores e a compra de equipamentos e material de consumo para as atividades (capoeira, dança, teatro, banda afro, esporte, alfabetização, jornal e artesanato) e eventos especiais (festival infantil, retiros, passeios, encontros de educadores e festas)
Com isso o Projeto Reculturarte passou a distinguir a AMABA em relação as demais associações de moradores, pelo destaque da ação cultural, envolvendo crianças e jovens.
Em termos de ação educativa o dia-a-dia do projeto foi realizado através de uma serie de atividades em dias alternados e por eventos de formação e momentos de lazer realizados de forma esporádica.
As atividades foram realizadas na AMABA e em espaços cedidos pela Paroquia São Judas Tadeu (durante os dois primeiros anos de funcionamento do projeto) e em campos, praças, ruas e etc. Do total de tempo destinado para cada atividade, a maior parte foi empregada em ensaios e treinos, o tempo restante para conversas sobre questões internas da atividade ou assuntos de interesse das crianças e adolescentes, com destaque para a questão das drogas, violência e sexualidade.
Com o objetivo de ampliar o tempo para abordagem dos diversos temas, foi realizado em 1995 uma experiência de formação, através dos programas de reflexão: Afetividade, Zumbi dos Palmares e Solidariedade, que eram realizados durante os sábados e serviam como preparação para os retiros realizados em chácaras, escolas, e espaços da igreja (destinados para encontros de fins de semana), onde os temas dos programas de reflexão eram aprofundados.
Quanto a questão de tempo, as atividades foram realizadas com uma média de um a três encontros semanais com duração de duas horas por encontro. O numero de participantes variou de dez (teatro) até cinqüenta (banda).
Algumas atividades estiveram presentes com poucos momentos de interrupção, desde o inicio do Projeto, como é o caso da banda, da dança, do esporte e da capoeira.
A capoeira já existia na AMABA antes mesmo da criação do Projeto Reculturarte, a partir de um projeto do setor de cultura negra da Secretaria de Cultura do município (atualmente FUNCAJU). O Projeto denominado Capoeiração, de 1988, durou apenas um ano, tendo o grupo se constituído a partir da disposição do mestre Alvinho Sucuri e de alguns alunos interessados. Foi a única atividade que mereceu um estudo mais completo por parte de Rita Leolinda, estagiária de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe (UFS), no ano de 1990.
Segundo o relatório de pesquisa o grupo, na época (Maio a Agosto de 1990), contava com dezenove membros assíduos, da faixa etária entre 7 e 14 anos. Já naquele momento a autora apontava alguns limites e problemas, que também apareceriam em analises e discussões relacionadas a outras atividades em anos seguintes.
Rita Leolinda destacou uma grande identificação cultural ligada a capoeira e a mobilização do grupo baseada na própria atividade, embora não seja este o propósito principal do projeto, conforme percebeu a estagiária. Quanto a escolarização, “O índice de repetência 60% e mais de três vezes, é alto” (Rita 1990:16). A autora percebeu também certa reprovação quanto a participação do sexo feminino nos treinos e a utilização de apelidos pejorativos a alguns membros de cor negra acentuada. Quanto a participação de meninas no grupo, essa realidade foi modificada em 1993, com a entrada de algumas adolescentes no grupo, embora não tenha havido continuidade dessa participação.
Quanto a questão do preconceito racial, a proposta do programa de reflexão sobre os 300 anos de Zumbi dos Palmares (1995) incluiu o racismo como principal tema dos debates.
Para o entendimento da dinâmica do projeto em 1993, visto a partir do olhar de um grupo de vinte crianças e cinco educadores que se reuniram na cidade de Propriá, vale a pena transcrevermos a síntese das várias opiniões acerca do que era bom e do que era ruim naquele momento. As coisas boas eram: alegria, brincadeira, lazer, arte, amor (que muitas vezes não encontramos na família), paz, refugio para os problemas, momento novo agora e sempre, uma forma diferente de ensinar e aprender, desejo de transformar a sociedade, Jesus presente naquilo que gostamos. As coisas ruins eram: injustiças, falsidades, engano, confusão, poucos fazem e muitos criticam, medo do projeto acabar ou dos meninos não poderem levar a frente.
Quando aquilo que diz respeito as dificuldades do relacionamento interpessoal, a não superação de muitos desses problemas provocou o afastamento de muitos educadores(as), meninos(as), assim como de sócios e dirigentes. Se isso não levou ao fim do projeto, sem duvida nenhuma quebrou um pouco o encanto inicial, já que a proposta daqueles que formularam a idéia original ia em sentido contrário as valores individualistas e competitivos que vigoram na sociedade atual.
Em termos conclusivos, embora até o ano de 1995, já que, a partir do segundo semestre de 1996, não estamos mais presentes enquanto dirigentes da AMABA, nem enquanto educadores a constatação que fazemos é que, em termos de resultados, a experiência do projeto foi feliz quanto a grupalizaçao, socialização e reforço da auto-estima de um grupo expressivo de crianças negras e pobres do bairro América.
Vale lembrar o sentimento de satisfação e alegria compartilhados por muitos daqueles que estiveram presentes, tanto na condição de realizadores como na condição de convidados, quando da apresentação de produção cultural em alguns momentos, caso do festival infantil (1990 a 1994) e festa Kizomba (1995). O que se viu foi muita beleza, originalidade e sentido de cooperação por parte de todos os envolvidos. No entanto, outras medidas relacionadas a melhoria do padrão socio-economico-cultural, ou não foram levadas em conta ou as tentativas de implementá-las foram bastante tímidas. Pelo fato de ter estado presente no Projeto Reculturarte desde o inicio, confirmo as duas hipóteses.
O estudo de Rita Leolinda acerca da atividade de capoeira já apontava para a necessidade, manifestada pelos próprios meninos, do reforço escolar e cursos profissionalizantes.
Já foi dito que o Movimento Popular está em crise por não ter se preocupado com a estética e com a mística, tendo se reduzido apenas ao aspecto político.
As lições da crise da AMABA/ Projeto Reculturarte de 1993, quando a maior parte dos membros do conselho deliberativo pediu demissão, aponta em sentido contrário a afirmação anterior. No caso da AMABA/Projeto Reculturarte, uma das principais razões do “racha” foi a ênfase excessiva no aspecto cultural (estética). Sobre o assunto, conforme o relatório do primeiro encontro de avaliação institucional da AMABA, de Maio de 1993, a opinião do grupo dissidente a respeito dessa questão foi expressa da seguinte forma: ”Tendência a reduzir o trabalho da AMABA a atividades culturais. Há dois grupos perseguindo objetivos diferentes”.
Em minha opinião, a concepção inicial acerca da ação cultural foi pensada de forma integrada, buscando através da arte expressar os sentimentos da população do bairro América acerca da realidade de opressão e de abandono, e ao mesmo tempo, organizar e mobilizar as pessoas diretamente envolvidas, assim como os moradores em geral. Se em alguns momentos o retrato da miséria e das injustiças foi apresentado com competência, a organização e a mobilização para as conquista acerca da melhoria da qualidade de vida ficaram a desejar.
Colaboradores
Revisão Maxivel Ferreira
Digitação Irene Smith
PROJETO RECULTURARTE: UM ESPETÁCULO POSSÍVEL AO CAMINHO DO DESAFIO DA INCLUSÃO SOCIAL NO LAZER
Jussara da Silva Rosa
Luiz Carlos Vieira Tavares
Mestrandos do curso de Educação Física da UNIMEP
RESUMO: No intuito de relatar nossa experiência profissional em um projeto social desenvolvido por uma associação de moradores, é que objetivamos com este artigo trazer para a arena das discussões a possibilidade de diálogo sobre essa prática, divulgando e ampliando nossas ações, bem como, apontar possibilidades para a experiência inclusiva do lazer, e aqui no caso específico na dança, por acreditar que ela permite ao seu participante um verdadeiro sentir, pensar, agir, perceber e reagir enquanto ser humano histórico e cultural na dinâmica de suas relações.
INTRODUÇÃO
O Projeto Reculturarte é desenvolvido no Bairro América da cidade de Aracaju. O Bairro América no seu surgimento era caracterizado como suburbano, mas com o crescimento da cidade hoje já não é mais possível caracterizá-lo por este aspecto.
A história desse bairro começa com a instalação do Reformatório Penal do Estado nesta região, que a partir daí, passou a ser conhecida como “Caatinga da Penitenciária”.
A maioria dos presos nesta época eram do Estado de Sergipe. As suas famílias ao se deslocarem para a capital, na intenção de visitá-los deparavam-se com problemas de acomodação (abrigo) e retorno, visto que nesta época não tinha transporte diariamente. Diante dessas dificuldades as famílias dos presidiários começaram armar tendas e barracos nas redondezas da penitenciária. Porém, estas famílias não foram os primeiros habitantes, pois, já morava lá, o carroceiro e o enfermeiro da penitenciária.
O judeu José Zúkema ao observar esta situação começou a lotear estes terrenos por preços acessíveis para estas famílias e até mesmo para ex-presidiários. Não se sabe ao certo se José Zúkema era realmente dono dessas terras ou se foi apenas o loteador. Zúkema viveu muito tempo na América, mas precisamente nos Estados Unidos, foi por este motivo que ele deu a “Caatinga da Penitenciária” o nome de América.
Desde o seu início o bairro é constituído por uma população de baixa renda, onde a maioria dos trabalhadores são absorvidos na construção civil, no serviço público (servente, vigilante, professor), faxineiras e desempregados. As famílias são grandes, de estrutura frágil, em que a figura do esposo é freqüentemente trocada, além de possuírem grande número de filhos. Estes, por sua vez começam a trabalhar nos primeiros anos de vida para auxiliarem no orçamento de casa.
O bairro é hoje marcado por uma série de problemas sociais que vão desde os mais simples de infra-estrutura até os mais complexos e lamentáveis problemas sociais.
Foi por perceber estes problemas que um grupo de moradores do bairro sentiu a necessidade de criar uma associação que amenizasse ou até mesmo superasse tais problemas, e é a partir desta intenção que surge a Associação de Moradores e Amigos do Bairro América (AMABA).
A AMABA é uma entidade comunitária que foi fundada em 14 de abril de 1983 por um grupo de moradores preocupados com a situação de abandono do bairro, que só é lembrado pelas autoridades na época de eleições. E hoje se caracteriza por ser uma entidade profundamente comprometida e reflexiva com os problemas sociais tais como: violência, saúde, educação, ecologia e lazer.
Na intenção de obter dos governantes um compromisso mais efetivo com a população do bairro e também de bairros vizinhos, a diretoria, coordenadores e moradores se reúnem em comissão para solicitar audiência ao governador, prefeito e secretários; promove abaixo-assinados; denuncia à imprensa as irregularidades e quando é necessário promove atos públicos na intenção de sensibilizar e mobilizar a comunidade para uma atitude política diante das desigualdades e injustiças sociais.
Diante das reivindicações feitas por esta associação, a conquista de uma sede própria e a aquisição do Registro da mesma, foi bastante significativo para que o bairro ganhasse uma nova roupagem.
O bairro hoje dispõe de saneamento básico, ruas pavimentadas, segurança comunitária, arborização, instalação de espaços físicos para o lazer (praças, quadras e teatro de arena).
Outras conquistas vieram, um programa denominado “Cinema nos Bairros”, patrocinado pela Secretaria de Cultura do Município; um outro programa que consistia em visitas ao Centro de Criatividade, onde as crianças e adolescentes tinham a oportunidade de participar de oficinas artísticas e assistir aos espetáculos teatrais gratuitos; a criação de uma “Rádio Comunitária”, cujos equipamentos foram comprados com o apoio da CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço); e por fim, a criação do “Projeto Reculturarte”.
Este projeto nasceu da reflexão feita por alguns componentes da AMABA em conjunto com o CESEP (Centro Sergipano de Educação Popular) e com o posto de extensão da FEBEM (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), em cima da necessidade de estar repensando sobre a apropriação dos espaços destinados ao lazer, bem como o uso de seu conteúdo, visto que as crianças e adolescentes desse bairro não dispunham de muita opção de lazer.
Foi por reconhecer uma defasagem nos conteúdos culturais de lazer, com práticas voltadas quase que exclusivamente para o esporte (futebol) e com a utilização apenas da quadra como espaço para essa prática, que a associação investigou junto à população desse bairro de que forma eles entendiam o lazer e quais as atividades físicas de lazer eles tinham interesse em participar.
De posse dos resultados desta investigação, a associação com o intuito de desmistificar o entendimento que os moradores desse bairro e de uma forma geral a sociedade sergipana, tinham em relação ao lazer, visto que, compreendiam apenas como uma forma de descanso, divertimento, válvula de escape e coisa de desocupado ou de quem tem dinheiro, passou a desenvolver as seguintes atividades: dança, capoeira, música, teatro, artes plásticas, jogos e brincadeiras populares, esportes.
De acordo com Marcellino (1995, p.70), “é preciso que o lazer, além de suas funções de descanso, evasão, e entretenimento, atenda também as necessidades de desenvolvimento cultural”.
Como parte integrante da sociedade brasileira e sergipana, atuando na vida cultural e sócio-política, a AMABA tem procurado entender os conflitos sociais existentes em nossa sociedade, analisando-os e procurando encontrar formas alternativas de solução, é neste sentido que o Projeto Reculturarte funciona, objetivando por meio das atividades lúdico-culturais inserir crianças e adolescentes no convívio e na participação social.
O Projeto Reculturarte contando com o apoio financeiro da CESE e da Visão Mundial, passou a contratar educadores amadores e profissionais, para desenvolver suas atividades.
Nesta perspectiva, o projeto vem contribuindo para a ampliação do entendimento do lazer, por acreditar que este ao mesmo tempo em que possa estar desenvolvendo uma atividade alienante e conformista, pode também se apresentar como uma atividade revolucionária e transformadora a caminho da criticidade e criatividade.
Nos apoiando no pensamento de Marcellino (1998, p.156), ele nos diz que:
Apesar de tudo e embora não de modo exclusivo, é particularmente no tempo de lazer, que são vivenciadas situações geradoras de valores que poderiam ser chamados de “revolucionários”. São reivindicadas formas de relacionamento social mais espontâneas, a afirmação da individualidade, a consciência com, ao invés do domínio da natureza.
Compromissado com a prática da cidadania, o Projeto Reculturarte inclui o lazer como uma das dimensões culturais do ser humano, em que este é estimulado para a vivência de sua existencialidade, numa relação concreta consigo mesmo, com os outros e com o seu contexto.
Como exercício de cidadania este projeto tem possibilitado aos seus participantes o conhecimento dos seus direitos e de seus deveres, a consciência ambiental, a imaginação, a autonomia e a alegria, a criticidade e criatividade.
Ainda nos apoiando em Marcellino (1998, p. 156), o lazer:
É uma questão de cidadania, de participação cultural. Entendo por participação cultural a atividade não conformista, mas crítica e criativa, de sujeitos historicamente situados. Entendo, ainda, a participação cultural como uma das bases para a renovação democrática e humanista da cultura e da sociedade, tendo não só a instauração de uma nova ordem social, mas de uma nova cultura.
A nossa relação direta com esse projeto ocorreu por meio da dança. Em 1993, surge a oportunidade de ministrar aulas de dança nesta associação, o que nos deixou bastante motivados, bem como inseguros frente as dúvidas que tínhamos em relação ao conteúdo e ao estilo de dança que ensinaríamos naquela comunidade.
As crianças e adolescentes que freqüentavam esse projeto manifestavam um certo fascínio pela dança afro e pela dança de rua como uma forma de protesto, talvez por conta dos movimentos de luta e resistência contra as injustiças sociais que esta associação desenvolvia.
Foi então aí a nossa maior escola de dança, aprendemos bastante com aquelas crianças e adolescentes. Foi lá também que começamos a refletir sobre o corpo que dança, pois, nos víamos na missão de ensiná-las o que na verdade não compreendíamos, encontrando-nos completamente descontextualizados da história daquela comunidade, bem como daqueles corpos. Corpos que tinham fome e sede de aprender, corpos que desejavam veemente uma oportunidade de se fazer presente no mundo, corpos que buscavam a liberdade e autonomia e que acreditavam na felicidade.
Como acreditávamos na dança como uma forma de linguagem da expressão humana e enquanto tal, uma obra de arte aberta a diversos sentidos e significados, fizemos a opção de desenvolver nossas ações nesta perspectiva. Visto que, a dança enquanto obra de arte aberta e inacabada pode estar representando a possibilidade do movimento constante da criação e reflexão por meio da experiência vivida. Ela pode ainda possibilitar ao corpo dançante uma transcendência temporária de sua cotidianidade, não como forma de fuga, mas como condição de reflexão de sua realidade.
Assim, a poética do corpo dançante configura-se na vivência da corporeidade, que é experiência perceptiva da realidade sensível.
Como experiência vivencial, a dança proporciona um perceber-se presente no sentido estético da corporeidade e motricidade.
Para Dantas (1999, p.28):
O movimento do corpo dançante designa um deslocamento, uma transformação e identificação com impulso corporal, com a capacidade de projeção do corpo no tempo e no espaço. Um corpo ao dançar, entrega-se ao ímpeto do movimento, deixando-se deslocar e transformar. Ele atravessa o espaço, joga com o tempo, brinca com as leis, diverti-se com o seu peso, provoca dinâmicas inusitadas.
Nesta entrega ao movimento, desenvolvemos uma atmosfera muito agradável. Utilizamos a improvisação por ser um jogo em que sua principal regra é estar aberto e sensível as propostas que vão surgindo. Dantas, (1999, p. 102) nos diz que:
Há na improvisação uma predisposição para atuar de acordo com o momento: o improvisador está pronto para transformar toda circunstância em ocasião, todo acidente em possibilidade e se dispõe a explorar constantemente a memória à procura de soluções inusitadas para as situações criadas pelo jogo.
Neste sentido, as pesquisas e composições coreográficas que desenvolvíamos neste projeto já não eram mais uma iniciativa só nossa, mais sim de todo um grupo. Essa construção ocorria na coletividade, o que nos aproximava cada vez mais por meio do diálogo e do encontro.
Para Pinto (2004), o diálogo deve ser corporificado no sentido de estar atuando contra as desigualdades de oportunidades e concretizando a possibilidade de “acesso a melhores condições de vida”.
Ainda para Pinto (2004, p. 200):
O diálogo, aberto, sem preconceitos, sem querer tirar vantagem em tudo, considerando os sonhos pessoais e coletivos, é o caminho que vejo como mais promissor nesse sentido. A construção de conhecimento e intervenção voltadas à qualidade de vida implica, pois, possibilidades de politização, ou melhor, de conscientização sobre o que é vivido [...] Neste sentido, os problemas surgidos nas nossas intervenções devem ser tratados como oportunidade de educação lúdica para a autonomia: escolhas, negociações, tomadas de decisão e participação coletiva.
O ser humano autônomo no contexto do nosso trabalho, é aquele que se indigna com caminhos já percorridos e pré-estabelecidos, arriscando-se em novos horizontes e desbravando novos rumos traçados por ele mesmo, com possibilidades inclusive de superação dos seus limites.
Na dança o ser humano autônomo transcende o corpo oprimido na busca de sair da acomodação para a transformação, deslocando-se da ingenuidade para a criticidade e criatividade. É a possibilidade de se estabelecer redes de conexões para a conservação ou revolução da concretude histórica do ser humano. “Falar de transcendência do corpo oprimido, portanto, é o mesmo que falar de desejos, relações e mudanças deste corpo. [...] Transcender é, então, matar a morte para que a vida viva” (LIMA JR., 1998, p.27).
É exatamente nesta recusa da opressão que a AMABA, vem desenvolvendo o Projeto Reculturarte, criando novos mecanismos de libertação, para que crianças e adolescentes continuem expressando de forma intensa e significativa a sua existência. Desta forma, a dança enquanto uma das atividades desenvolvidas por este projeto e enquanto uma das manifestações do ser humano tem representado um desses mecanismos para sua expressão.
CONCLUSÃO
A inclusão cultural no lazer e aqui no caso específico da dança, só se constituirá enquanto aprendizagem significativa seja na associação, na escola, na rua, no barracão ou no palco a partir do momento que valorizar o corpo dançante enquanto corpo-sujeito, que traz em si as marcas de sua cultura, que é um corpo que na sensibilidade perceptiva de sua existencialidade conta, faz e refaz história, na dimensão de seu próprio tempo e espaço.
Acreditamos que seja nesta perspectiva que a dança possa contribuir com a inclusão social e cultural no lazer, possibilitando ao corpo dançante por meio da experiência lúdica e artística, o encontro com corpos que dançam, com corpos que assistem e com o mundo, rompendo com o silêncio que esses corpos carregam em si por conta de uma educação autoritária e alienante, e por conta de um modo de produção que só visa o consumo, resgatando nos mesmos a imaginação, o prazer, a auto-estima e, a coragem de desbravar novos caminhos, por meio das experiências vividas, percebidas e sentidas.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
DANTAS, Mônica. Dança o enigma do movimento. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.
LIMA JR., José. Corpoética, cosquinhas filosóficas no umbigo da utopia.São Paulo: Paulinas, 1998.
MARCELLINO, Nelson C. Lazer e humanização. Campinas: Papirus, 1995.
_____________ . Educação Motora e Políticas Públicas. In: I Congresso Latino-Americano de Educação Motora. II Congresso Brasileiro de Educação Motora. Foz do Iguaçu. 1998.
PINTO, Leila Mirtes S. M. Educação Física, Corporeidade, Lazer: Diálogos com Amigos sobre “Riscos a Correr”. In: MOREIRA, Wagner. e SIMÕES, Regina (Orgs) Educação Física, Intervenção e Conhecimento Científico.Piracicaba: Editora Unimep, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário