O caldeirão cultural
"Boca de esquina/boca de beco/vias,/por onde falam
periferias/ Giz/traçando Brasis/unha nas harmonias,/arrogância de bárbaro invasor,/muleque
digno/cantor"
O texto acima é de autoria do aclamado poeta, cantor e
compositor Tom Zé e está reproduzido em reportagem do jornalista Valmir Santos,
na Folha de S, Paulo, do último 5 de agosto. Os versos e a reportagem falam de
Edvaldo Santana, cantor do subúrbio paulistano, de voz rouca e rascante,
chamado por muitos de Tom Waits da periferia.
Edvaldo Santana não é um popstar - ainda, pelo menos -, mas
vem galgando espaço a cada dia na mídia. Quem ainda não o ouviu, é só
sintonizar emissoras de nível e qualidade, como as rádios USP e Eldorado, entre
outras -, onde não impera o jabá (o dinheiro de gravadoras para que músicas de
gosto duvidoso, daquelas que incomodam os ouvidos, toquem sem parar). A USP, a
Eldorado e Tom Zé não estão sozinhas nessa escolha. Também apostam suas fichas
no muleque cantor Edvaldo nomes de peso como Jô Soares (literalmente), Arnaldo
Antunes, Haroldo de Campos, o poeta Ademir Assunção e os críticos Luiz Antonio
Giron e JB Medeiros, entre outros.
Pois bem, aí vai um pouco da história cultural recente:
Edvado Santana (que acaba de lançar o seu terceiro CD, pelo selo Eldorado) não
começou ontem.
Desde o finalzinho dos anos 70, ele e dezenas de outros
jovens artistas populares - a maioria de origem humilde e filhos de migrantes
nordestinos e mineiros -, integraram o Movimento Popular de Arte (MPA) de São
Miguel Paulista. Foi um dos movimentos culturais mais ricos e efervescentes na
capital paulista.
Todos os finais de semana, shows musicais, peças de teatro,
brincadeiras infantis, "varais" de poesia, mostras de pintura e
fotografia e filmes ao ar livre eram exibidos na praça padre Aleixo Monteiro
Mafra, no centro de São Miguel. Dali, surgiu a idéia das "praças do
rock", "praça do forró", "do choro", etc, promovidas
na gestão de Mário Covas na prefeitura de São Paulo. Numa pequena sede do MPA,
crianças e adolescentes do bairro tinham aulas de música, teatro, artes
plásticas e artesanato.
A experiência desse período está contada num livro - A
história do Movimento Popular de Arte de São Miguel Paulista -, resultado de
uma tese da professora Marília Spósito, da Faculdade de Educação da USP. Lá por
São Miguel circularam também Tom Zé, Gianfrancesco Guarnieri, os atores Celso
Frateschi, Denise Del Vecchio, Reinaldo Maia e Roberto Rosa e o poeta Glauco
Mattoso, entre outros.
Num circo armado nas proximidades da praça se apresentaram,
dezenas de vezes, artistas como Walter Franco, Zé Geraldo, Tetê Espínola,
Língua de Trapo, Premeditando o Breque e Renato Teixeira.
Naquele período, infelizmente, não havia o apoio e a
retaguarda de organizações não-governamentais e estruturadas como as existentes
hoje, em condições de financiar e manter o projeto. O MPA se sustentava -
unicamente - com os recursos arrecadados em festas, rifas e pequenas
contribuições de seus integrantes e, às vezes, de comerciantes do bairro. Por
decisão coletiva, o apoio oficial de governos e prefeituras, naquela época, era
rejeitado veementemente, sob qualquer hipótese.
Passados mais de vinte anos, os frutos do trabalho do MPA
podem ser conferidos. Além da música, muita gente saiu dali para o teatro, o
jornalismo, a política, o trabalho social e até para dirigir universidades,
caso do educador Francisco Eduardo.
O cantor Sacha Arcanjo, que também lança agora o seu
primeiro CD, dirige hoje um centro cultural no bairro. O poeta Akira Yamasaki é
responsável pelo trabalho cultural da Companhia do Metropolitana (Metro).
O artesão e designer de jóias Moacir Martins dirige a
oficina de teatro de bonecos Os Maismolengos e também expõe e vende obras de
arte criadas por ele para consumidores estrangeiros. Muitos outros, como o
poeta Claudio Gomes e os músicos Raberuan, Ceciro Cordeiro, Gildo Passos, Zulu
de Arrebatá, Mauro Paes e Artênio Fonseca desenvolvem seus trabalhos
individualmente.
A história do MPA mostra que, com muito pouco, é possível
conseguir resultados. Na periferia das grandes cidades, milhares de crianças e
adolescentes não têm hoje nenhuma opção de lazer ou atividade cultural. Nem
perspectivas de futuro. Frequentam, no máximo, a escola pública, que nem ao
menos tem garantido um ensino de qualidade.
Por isso, a importância da arte na educação e socialização é
fundamental. Entidades e organizações ligadas à área da infância devem apoiar e
fortalecer, sempre, iniciativas como essas. Os grupos de rap e break, por
exemplo, hoje estão organizados em bairros como Capão Redondo e Cidade
Tiradentes, na periferia paulistana.
Os rappers têm hoje suas próprias rádios comunitárias.
Organizam seus shows, montam bibliotecas e fazem campanhas de arrecadação de
roupas e alimentos. Lançaram até um candidato próprio para a Assembléia
Legislativa de São Paulo, nas últimas eleições.
E os resultados dessa mobilização vão aparecer brevemente.
Da mesma forma que frutifica hoje o trabalho do Movimento Popular de Arte. Eu
sinto orgulho de ter sido um integrante do Movimento Popular de Arte e
vivenciado essa rica e valiosa experiência.
Jornalista Gilberto Nascimento
NASCIMENTO, Gilberto. O caldeirão cultural. SP. Disponível em: http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/g_nascimento/id210800.htm
Jornalista Gilberto Nascimento
NASCIMENTO, Gilberto. O caldeirão cultural. SP. Disponível em: http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/g_nascimento/id210800.htm
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