Publicado em 19 de abril de 2016
Direita nada de braçadas no que se refere ao convencimento direto de setores majoritários da população; votos pelo “sim” no impeachment precisam ser estudados
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Onde a direita acerta? Há tempos penso em escrever algo nessa linha. Tentando identificar alguma fundamentação – ainda que tortuosa – em argumentos e fatos por ela utilizados em seu discurso. Ou estará ela errada o tempo todo, sob todos os aspectos? A esquerda precisa ignorar o papel do medo, por exemplo, na definição das opções políticas de cada cidadão? Por que deixar a direita nadar de braçadas em relação a determinados temas que interessam a todos os brasileiros?
Fiquei pensando nisso ao tentar rever a votação de domingo, em meio ao show de horrores na Câmara. Ainda que seja mais fácil maximizar uma fala especialmente grotesca, como a de Jair Bolsonaro (de certa forma bancando sua estratégia violenta), talvez falte refletir sobre o papel de Deus e da família na conquista de mentes e corações – e no quanto sair demonizando as duas palavras pode significar mais uma compra do jogo do adversário.
Muitíssimos indígenas são evangélicos. Ou cristãos. Não conheço indígenas ateus, talvez existam. No mínimo têm suas tradições religiosas, míticas, associadas à natureza. Cito-os neste dia 19 de Abril porque costumam ser esquecidos, mas a percepção de que a população – indígena, negra, branca – é majoritariamente religiosa não deveria ser esquecida na hora de desancarmos os deputados. Será que não desrespeitamos desnecessariamente crenças dos demais (como se não as tivéssemos) em vez de atacar somente a hipocrisia dos nobres deputados?
Falo de deuses e de famílias. No plural. Pois, a se julgar por algumas falas à esquerda, é como se a simples menção à palavra “família” fizesse o orador se alinhar ao que há de mais sórdido no planeta. Sim, eu sei da associação do termo ao conservadorismo, até mesmo à propriedade (pensemos na TFP, a Tradição, Família e Propriedade, organização de ultradireita). Mas será mesmo tão interessante agirmos como se as famílias não fossem uma dimensão importante do cidadão (e do eleitor)?
É claro que a agenda do Estado laico precisa ser divulgada. E não é disso que estou falando. E sim de certa precipitação nos discursos, da associação de todo evangélico à mais fina flor reacionária, e de certa presunção de que todos à esquerda seriam ateus. Não são. Temos umbandistas e católicos, judeus e espíritas. E temos famílias – famílias hétero, famílias gays, famílias. (Fico tentando imaginar alguém que tenha filhos que consiga fugir da definição mínima de família, ainda que viva numa comuna.)
Novamente: estou tentando dizer que se trata de combater a hipocrisia e a usurpação, de questionar o machismo e a vigarice religiosa na fala deste ou daquele deputado. Mas que é preciso ter cuidado com o preconceito e a demonização pura e simples – e olhem que termo foi utilizado aqui, “demonização”. A esquerda também tem suas crenças e cacoetes, também tem seus maniqueísmos e suas seitas. E está errando, está errando feio, está perdendo, continua perdendo. Até quando?
UMA DISPUTA RETÓRICA
Patético um deputado ir com filho a tiracolo no plenário para que ele diga o “sim”? Claro. Ou que outro deputado volte ao microfone porque esqueceu de mencionar o filho? Evidente. Mas a própria utilização da palavra “patético”, aqui, remete a uma tradição persuasiva, a um braço – tradicionalmente eficiente – da retórica. E a ausência de inclusão em discursos racionais das dimensões familiar e religiosa talvez escancare o terreno (simbólico) para que os conservadores nadem de braçada.
Não, não estou pedindo para que deputados de esquerda dediquem voto à tia ou façam o sinal da cruz durante a fala. Mas que respeitem a tia e a cruz, e que façam uma desconstrução das hipocrisias e cafajestices atacando-as pelo que são, e não pelo que elas usurpam. Ou que se lembrem que famílias de camponeses são atacadas e expulsas no campo, que pais e mães perdem filhos diariamente por causa da violência promovida por falsos defensores da família. Por causa da violência de classe.
Era uma família em Imbituba (SC), no dia 30 de dezembro, aquela família indígena que tevê o bebê degolado na rodoviária. São famílias de agricultores e pescadores as atingidas pela política predadora do agronegócio, que tem metade dos votos na Câmara e mais da metade no Senado. É gente que acredita em Deus que tem seus filhos mortos por um sistema defendido pela bancada da bala, pela legião de Bolsonaros (não temos um só Bolsonaro) que se multiplica no Congresso.
Se a direita reduz, cabe à esquerda ser plural. Efetivamente plural. Mesmo Paulinho da Força terá uma família, por trás daquelas rugas pelegas. Paulo Skaf e cada dono golpista de jornal têm família. E eles usam o que têm de melhor (em muitos casos, apenas a própria família, ou a própria crença em algo transcendental) para parecerem mais humanos. Cabe também à esquerda se lembrar que atacar essas dimensões pode apenas referendar o discurso de que comunistas comem criancinhas.
O que está em jogo é a violência patrocinada por esses canalhas. O filho do deputado tal não tem culpa de nada, ele talvez pronunciasse “sim” sem os tons de cinismo do pai. Combater os privilégios de classe não implica ser cruel com a parte mais bela da vida desses senhores. Respeitar a mãe do ex-deputado Hildebrando Paschoal – aquele que motoserrava desafetos – deveria fazer parte da mesma ética que nos faz respeitar uma camponesa que, fervorosamente, reze todos os dias pelo fim da desigualdade.
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