Não escrevo para dar respostas, mas para fazer eco ao debate de gênero dentro da Igreja, quase sempre posto para debaixo do tapete.
Imaginando, por exemplo, se candomblé e umbanda fizessem um sínodo, ialorixás (mulheres)e babalorixás (homens), em tese, participariam, sob o recorte de gênero, com igual posição de poder. Pensando também na sinodalidade, a partir de outras denominações cristãs, bispas/bispos, pastoras/pastores, teriam condições de atuar com igualmente de gênero.
Para muitos sistemas e vivências religiosas, ser homem ou mulher, em nada interfere no exercício do poder religioso.
Como não fazer memória da potência do sacerdócio vivido pela ialorixá Mãe Beata de Iemanjá? Como não lembrar do sacerdócio fecundo da pastora luterana e teóloga Lusmarina? Como não sublinhar o pastoreio da pastora Kaká Omowalê junto aos adolescentes com privação de liberdade?
Como não reverenciar o sacerdócio potente da sacerdotisa de umbanda, Mãe Marilene (da Casa de Cláudia)?
Quantas igrejas cristãs pastoreadas por mulheres fazem brilhar o "Evangelho da Alegria", nos termos de Francisco, e fazem avançar o reinado da vida inaugurado por Cristo?
Estaria o catolicismo na contramão da história?
Então, no que se refere ao exercício do poder sagrado no catolicismo, o que o homem tem que a mulher não tem? Se homens e mulheres, somos iguais diante de Deus, como afirmamos em alta voz, os homens seríamos mais iguais que as mulheres?
E eu, Geraldo, que sou padre, se tivesse nascido mulher, Geralda, não poderia ser sacerdotisa ordenada por que razões? Retomo a pergunta: para a Igreja Católica Apostólica Romana, o que o homem tem que a mulher não tem? Ou, no meu caso, o que Geraldo tem (que pode ser padre), que a Geralda não teria?
Seria a barba ou a voz mais grossa? Seria o pênis? Ou a vontade divina, segundo a qual só aos homens caberiam o exercício do poder sagrado?
Escrevo para registrar que se a Igreja quiser ouvir, com sinceridade, a todos e todas, ela terá que responder, sem escapismos ou frases prontas, no aqui e agora da história, a muitas questões pertinentes e relevantes, entre as quais a questão atualíssima questão de gênero.
Reconhece Francisco: "As mulheres tem muito a dizer-nos. As vezes somos demasiado machistas, e não deixamos espaços à mulher".
O que a "pirâmide invertida" de Francisco pode inverter ou alterar nas relações de gênero na Igreja?
Ou tudo tem que continuar como dantes no quartel de Abrantes?
Se o Espírito é o protagonista do caminho sinodal, no que se refere à questão de gênero,o que diz o Espírito à Igreja?
Fato é que a Igreja que deseja escutar em sinodalidade traz um perigo em sua escuta: o ouvido do macho!
Para o esperançar na sinodalidade, o papado de Francisco tem sido canal de empoderamento e visibilidade da mulher em cargos e funções, historicamente, destinadas ao poder masculino. Para citar um exemplo, a recente nomeação da freira Francisca Raffaella Petrini para exercer alto cargo no Vaticano, função historicamente exercida só por homens, pode ser considerada como sinal extraordinário dos ventos novos de Oyá na trajetória do catolicismo: revolução bergogliana?
O Papa Francisco bem sabe que, sob o ângulo da justiça de gênero, a Igreja ainda tem muito o que caminhar, mas ele, na força do Espírito, tem corajosamente dado passos significativos, ainda que pareçam pequenos.... A Igreja não nasceu ontem. Tem uma história pesada de subalternizaçao e exclusão da mulher.
Mas diz Francisco: "...a Igreja não pode ser Igreja sem a mulher, porque a Igreja é uma mulher, é feminina, é 'a Igreja', não 'o Igreja'". E nas palavras de Francisco, "a mulher é protagonista de uma Igreja em saída".
Contudo, hierarquicamente (e nos altos cargos eclesiásticos também), a Igreja se consolidou na história como lugar do homem; logo,lugar do ouvido do macho; ou, segundo o poeta Carlos Drummond de Andrade, do "Ouvido masculino".
Deixo, pois, minha pergunta fundamental: essa situação auricular (do homem)pode comprometer a escuta da Igreja no caminho sinodal?
Mesmo esperançado com Francisco, não desconsidero a lentidão da Igreja, sobretudo da hierarquia, quando o assunto é ruptura com o passado.
A propósito, quanta oposição encontra Francisco dentro da própria Igreja?
Jesus não deixou de dizer aos seus discípulos: "como sois lentos...". Para algumas pautas atualíssimas (racismo e feminismo,por exemplo), a Igreja, como diz a canção, "caminha com passos de formiga e sem vontade". Em "Evangelho da Alegria", escreve Francisco que as reivindicações dos legítimos direitos das mulheres "colocam à igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente".
No fundo, como diz Djamila Ribeiro, a luta é por uma sociedade [e por uma Igreja] "em que as mulheres possam ser consideradas pessoas".
É exigir demais?
Relendo minha formação no seminário, a presença da mulher foi muitíssimo pequena. E posso dizer que fomos formados (ou deformados) para olhar para mulher como símbolo da tentação e do pecado.
O seminário é o lugar da castração simbólica!
Desse modo, a ordem sacramental pode vir seguida de desordem psíquica. E isso impacta na subjetividade presbiteral e no exercício da pastoral. A integração no feminino (anima)e do masculino (animus) não é questão facultativa!
Se é para "caminhar juntos" (=sinodalidade) precisamos caminhar mais integrados.
Como disse um teólogo, o feminino é a dimensão atrofiada da Igreja. Há sim um imaginário eclesiástico patriarcal: mulher=Eva=tentação=pecado=perda do paraíso!
E que paraíso (nós homens) tememos perder?
Quais os malefícios do patriarcado na construção da subjetividade dos bispos, padres e diáconos?
São perguntas valiosas para quem quer caminhar junto.
Se "o feminismo é todos", como enuncia bell hooks, é (ou deveria ser) também do Papa, dos bispos, dos padres, diáconos, religiosos/religiosas,leigos e leigas.
Uma Igreja que não integra o feminino e o masculino, sob o prisma junguiano, é um sistema psíquico adoecido.
E essa situação não pode comprometer a escuta?
Que contribuições a afirmação da mulher na Igreja pode dar à sinodalidade?
No marco da legitimidade da afirmação da mulher e da integração do feminino na Igreja, tomo o poema "Ouvido masculino", de Drummond, como, no mínimo, um alerta ou uma chamada de atenção para todo o corpo eclesial no âmbito da sinodalidade.
A propósito, o presente texto, no limite, tem a intenção, ao fim e ao cabo, de por em xeque o próprio exercício da escuta no universo machocêntrico.
Escreve o poeta:
"Muitas vezes, se houve dizer que as mulheres falam demais... Mas, não tem problema, porque o ouvido masculino (seletivo) escuta somente o que a ele interessa... Veja o exemplo abaixo:
A MULHER diz: esse lugar estar uma bagunça, Amor!
Você e eu precisamos limpar isto.
Suas coisas estão jogadas no chão
E você vai ficar sem roupas pra usar
Se não lavá-las agora mesmo.
O que o HOMEM escuta:
Blá, blá, blá, blá, Amor!
Blá, blá, blá, blá, Você e eu
Blá, blá, blá,blá, no chão
Blá, blá, blá,blá, sem roupas
Blá, blá, blá,blá, agora mesmo..."
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