Homenagem aos que resistiram à ditadura reuniu cerca de 2 mil pessoas, estudantes a maioria, para ouvir testemunhos de militantes que lutaram contra golpe.
Porto Alegre - Como é
possível que, até hoje, no Brasil, nenhum torturador tenha sido preso?
Nenhum! Como é possível que nenhum responsável por essas atrocidades
tenha conhecido a justiça? As perguntas feitas por Flavio Koutzii
expressaram a mistura de indignação e perplexidade que outros
participantes do ato- homenagem “50 anos do Golpe de 1964, 50 anos de
impunidade” expressaram na noite de segunda-feira (31), no Salão de Atos
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que ficou
superlotado para ouvir o depoimento de seis pessoas reconhecidas por
suas trajetórias de luta contra a ditadura instalada no país após o
golpe de 64 e pelas denúncias que fazem até hoje dos crimes cometidos
neste período. A presença do público, majoritariamente jovem,
surpreendeu os próprios organizadores do ato e, principalmente, os
homenageados.
“A presença de vocês aqui hoje é um alento que não
vivi em nenhum momento no pós-ditadura”, disse emocionada Suzana Lisboa,
manifestando um sentimento que atravessava o ar do Salão de Atos da
UFRGS. Foi um evento com uma altíssima carga emocional. E o principal
combustível para a emoção foi a realidade. Algo de novo estava
acontecendo ali, disseram vários dos participantes do encontro. A
começar por Clara Charf, viúva de Carlos Marighella, que se mostrou
absolutamente surpresa e encantada pelo que estava presenciando. “Estou
admirada e encantada. Há muito tempo que eu não via uma manifestação
assim. Se o Marighella estivesse vivo, isso aqui seria um grande
presente para ele”, disse Clara, 88 anos, militante desde 1945, sempre
com o movimento de mulheres como fez questão de registrar.
O
ato-homenagem na UFRGS foi um encontro de gerações que, segundo
testemunharam os mais antigos, ainda não havia acontecido na escala em
que aconteceu. Um dos principais responsáveis por esse encontro
inter-geracional foi o professor Enrique Serra Padrós (História/UFRGS),
que trabalha com esse tema há anos e criou o Coletivo pela Educação,
Memória e Justiça, que reúne professores, alunos e ativistas da área de
direitos humanos. Padrós contou que, quando o Coletivo estava pensando o
ato-homenagem, decidiu eleger como público-alvo preferencial estudantes
das escolas de Porto Alegre. A partir daí se constituiu uma rede de
amigos, companheiros, estudantes, ex-alunos e professores cujo trabalho
se materializou segunda-feira à noite nas cerca de duas mil pessoas que
lotaram o salão da universidade.
O encontro teve um significado
especial para a universidade também, como afirmou a socióloga Lorena
Holzmann, ex-aluna e professora da UFRGS. Ela lembrou o triste período
das cassações e expurgos de professores que se seguiu ao golpe de 64.
“Com este ato de hoje, a Universidade se redime, de certo modo, do que
houve na ditadura. É um ato de redenção”, disse Lorena, também
emocionada. Redenção, memória, verdade, justiça, encontro de gerações,
vida: essas foram algumas das palavras centrais no ato-homenagem. Uma
homenagem que se dirigiu aos participantes convidados e também aos que
caíram na ditadura, sendo que cerca de 155 deles seguem desaparecidos
até hoje. Um vídeo exibido no início do evento mostrou os seus rostos,
em sua maioria, jovens idealistas como aqueles que estavam na plateia
encontrando uma história que ainda não conheciam.
As novas
gerações ouviram relatos crus e duros sobre o que foi a tortura na
ditadura. Relatos como o de Goreti Lousada, filha de Antônio Losada, que
sofreu um atropelamento e está na UTI do Hospital de Pronto Socorro.
Goreti contou um pouco da história de luta de seu pai, que foi preso em
1973 no governo Médici e ficou quatro meses no DOPS em Porto Alegre
sofrendo tortura. Ela leu um trecho de um texto escrito por Losada que
descreve a tortura sofrida por uma mulher no DOPS. Essa mulher era a mãe
de Goreti que, com a voz engasgada pela emoção, prosseguiu a leitura
até o fim sendo muito aplaudida. Ela lembrou, com orgulho, que seu pai,
após sair da prisão não seguiu o conselho dado pelos policiais de deixar
aquilo tudo para trás. “Ele denunciou seus torturadores, nome por
nome”.
João Carlos Bona Garcia homenageou, na pessoa de Enrique
Padrós, todos os professores de História que estão trabalhando para
resgatar a memória do período da ditadura. Também homenageou a todos os
que tombaram pelo caminho, tanto no Brasil como no Exterior, lembrando
os nomes de Frei Tito e Maria Auxiliadora. Bona Garcia também falou da
tortura da qual foi vítima e deu o nome de seu torturador. “Quem me
torturou foi Átila Rohrsetzer, que estava acompanhado de um médico, e
nos torturava ouvindo música clássica e falando da mulher e dos filhos.
Eles sentiam prazer em fazer isso”, contou. Bona disse ainda que a visão
da ditadura segue presente na sociedade. “Em outros países, órgãos de
repressão estão reconhecendo crimes que cometeram. Aqui no Brasil ainda
não houve nada disso”.
Flavio Koutzii lutou contra ditaduras no
Brasil e na Argentina, onde foi preso, e definiu assim a importância do
ato do qual estava participando: “O centro de hoje é não esquecer o que
aconteceu e entender o que aconteceu, em toda a sua complexidade”. Ele
falou de dois resquícios do período ditatorial que seguem vivos hoje:
“No Colégio Militar de Porto Alegre, os livros com os quais os alunos
trabalham ainda trazem a versão das forças armadas sobre aquele período.
Espero que um dia a Presidência da República ponha um fim nisso”. O
segundo resquício é o fato de os torturadores não terem sido julgados
até hoje. “Como é possível isso? Não se trata de nenhuma fobia
anti-militar, mas sim de justiça e memória”. Sobre esse ponto, chamou a
atenção ainda para o seguinte fato: “Nunca li uma notícia dizendo que
alguém que foi torturado foi atrás de seu algoz depois de sair da prisão
e o matou com um tiro na cabeça. Nenhum de nós fez isso, pois seria
mais uma vitória deles”.
Na mesma direção, a uruguaia Lilián
Celiberti denunciou a impunidade dos crimes cometidos na ditadura
brasileira e defendeu a importância da memória para combatê-la. “A
impunidade é a perseguição e a destruição da memória. Com todos vocês
aqui hoje a memória se torna algo vivo, algo presente. Para derrotar a
impunidade, cada um de nós aqui precisa sair daqui e compartilhar essa
luta, compartilhar o que está ouvindo e vendo aqui. Neste diálogo
inter-geracional podemos construir uma democracia real baseada na
memória, na verdade e na justiça”.
Nei Lisboa manifestou algum
otimismo com o que estava vendo nas atividades sobre os 50 anos do
golpe. “É a primeira vez que vejo isso que está acontecendo agora. Nos
atos relativos aos 30 ou 40 anos do golpe nunca conseguimos reunir tanta
gente como está aparecendo aqui hoje. E se começou a falar mais
claramente sobre o papel da sociedade civil, de empresários, da mídia e
dos Estados Unidos no golpe”.
Nilce Azevedo Cardoso, que também
foi torturada durante a ditadura, manifestou-se extasiada com o que
estava vendo no Salão de Atos da UFRGS. Ela acentuou o caráter
midiático-civil e militar do golpe e disse que “toda a sociedade
brasileira foi torturada a cada tortura que um de nós sofremos”. Nilce
traçou uma linha de conduta entre a impunidade da tortura e a sua
prática hoje no Brasil: “Nós ficamos sabendo de torturas e mortes
praticamente todos os dias. Nossos jovens estão sendo assassinados e uma
das razões disso estar acontecendo é que, durante 21 anos, foi gestada
uma sociedade do medo. Foram 21 anos de medo e não-pensar. Temos que
desconstruir tudo isso. Temos que denunciar os Pedro Sellig e os Ustra
da vida e perguntar onde estão nossos companheiros que foram
assassinados, onde estão seus corpos?”.
Créditos da foto: Ramon Moser/Divulgação UFRGS
Nenhum comentário:
Postar um comentário