27/04/2014
Dos gregos aprendemos e isso atravessou os séculos, que todo
ser, por diferente que seja, possui três características
transcendentais (estão sempre presentes pouco importa a situação, o
lugar e o tempo): ele é o unum, o verum e o bonum,
quer dizer ele goza de uma unidade interna que o mantem na existência,
ele é verdadeiro, porque se mostra assim como de fato é e é bom porque
desempenha bem o seu lugar junto aos demais ajundando-os a existirem e
coexistirem.
Coube aos mestres franciscanos medievais, como Alexandre de Hales e
especialmente São Boaventura que, prolongando uma tradição vinda de
Dionísio Aeropagita e de Santo Agostinho, acrescentarem ao ser mais uma
característica transcendental: o pulchrum vale dizer, o belo.
Baseados, seguramente na experiência pessoal de São Francisco que era
um poeta e um esteta de excepcional qualidade, que “no belo das
criaturas via o Belíssimo,” enriqueceram nossa compreensão do ser com a
dimensão da beleza. Todos os seres, mesmo aqueles que nos parecem
hediondos, se os olharmos com afeição, nos detalhes e no todo,
apresentam, cada um a seu modo, uma beleza singular na maneira como
neles tudo vem articulado com um equilíbrio e harmonia surpreendentes.
Um dos grandes apreciadores da beleza foi Fiodor Dostoiewski. A
beleza era tão central em sua vida, conta-nos Anselm Grün, monge
beneditino e grande espiritualista, em seu último livro “Beleza: uma
nova espiritualidade da alegria de viver”(Vier Türme Verlag 2014) que o
grande romancista russo desolocava-se pelo menos uma vez ao ano até
Dresde, na Alemanha, só para contemplar na capela a formosa Madona
Sixtina de Rafael. Permanecia longo tempo em contemplação diante daquela
esplêndida figura. Tal fato é surpreendente, pois seus romances
penetraram nas zonas mais obscuras e até perversas da alma humana. Mas o
que o movia, na verdade, era a busca da beleza pois nos legou a famosa
frase:”A beleza salvará o mundo”dita no livro O Idiota.
No romance Os irmãos Karamazov aprofunda a questão.
Um ateu Ipolit pergunta ao príncipe Mynski como “a beleza salvaria o
mundo”? O príncipe nada diz mas vai junto a um jovem de 18 anos que
agonizava. Aí fica cheio de compaixão e amor até ele morrer. Com isso
nos quis dizer: beleza é o que nos leva ao amor condividido com a dor; o
mundo será salvo hoje e sempre enquanto houver essa atitude.
Para Dostoiewski a contemplação da Madona de Rafael era a sua terapia
pessoal, pois sem ela desesperaria dos homens e de si mesmo, diante de
tantos problemas que vivia. Em seus escritos descreveu pessoas más e
destrutivas e outras que mergulhavam nos abismos do desespero. Mas seu
olhar, que rimava amor com dor compartida, conseguia ver beleza na alma
dos mais perversos personagens. Para ele, o contrário do belo não era o
feio mas o espírito utilitarista e o uso dos outros, roubando-lhe assim a
dignidade.
“Seguramente não podemos viver sem pão,mas também é impossível
existir sem beleza”repetia. Beleza é mais que estética; possui uma
dimensão ética e religiosa. Ele via em Jesus um semeador de beleza. “Ele
foi um exemplo de beleza e a implantou na alma das pessoas para que
através da beleza todos se fizessem irmãos entre si”. Ele não se refere
ao amor ao próximo; a contrário: é a beleza que suscita o amor e nos faz
ver no outro um próximo a amar.
A nossa cultura dominada pelo marketing vê a beleza como uma
construção do corpo e não da totalidade da pessoa. Então surgem métodos e
mais métodos de plásticas e botoxs para tornarem as pessoas mais
“belas”. Por ser construída, é uma beleza sem alma. E se repararmos bem,
nesta estética fabricada, emergem pessoas com uma beleza fria e com uma
aura de artificialidade, incapaz de irradiar. Daí irrompe a vaidade,
não o amor, pois a beleza tem a ver com amor e a comunicação.
Dostoiewski observa, nos Irmãos Karamazov, que um rosto é belo quando
você percebe que nele litigam Deus e o Diabo entorno do bem e do mal.
Quando percebe que o bem venceu, irrompe a beleza expressiva, suave,
natural e irradiante. Qual beleza é maior? A do rosto frio de uma
top-model ou a do rosto enrugado e cheio de irradiação da Irmã Dulce de
Salvador, Bahia, ou a da Madre Tereza de Calcutá? A beleza,
característica transcendental, se revela como irradiação do ser. Nas
duas Irmãs, a irradiação é manifesta, na top-model existe mas é
esmaecida.
O Papa Francisco conferiu especial importância na transmissão da fé
cristã à via pulchritudinis (a via da beleza). Não basta que a mensagem
seja boa e justa. Ela tem que ser bela, pois só assim chega ao coração
das pessoas e suscita o amor que atrái ( Exortação A alegria do
Evangelho, n 167). A Igreja não visa o proselitismo mas a atração que
vem do amor e da beleza da mensagem que causa fascínio e produz
esplendor.
A beleza é um valor em si mesmo. É gratuita e sem interesse. É como a
flor que floresce por florescer pouco importa se a olham ou não, como
diz o místico Angelus Silesius. Quem não se deixa fascinar por uma flor
que sorri gratuitamente ao universo? Assim devemos viver a beleza no
meio de um mundo de interesses, trocas e mercadorias. Então ela realiza
sua origem sânscrita Bet-El-Za que quer dizer:”o lugar onde Deus brilha”. Brilha por tudo e nos faz também brilhar pelo belo que se irradia de nós.
Leonardo Boff escreveu A força da ternura, Editora Mar de Idéias, Rio 2011.
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