Para viver não basta existir. Batatas simplesmente nascem crescem e apodrecem. Homens diferentemente das batatas, viram-se, esforçam-se constantemente. É o cúmulo da obviedade? Para muitos não.
Dentre as alternativas que o artista tem para existir citam-se: subviver, sobreviver e viver plenamente. Nem sempre a opção decorre da livre escolha. Quando possível, para a boa escolha precisa se ter percepção, criar oportunidades quando elas não surgem; abrir alas e ocupar espaços. O contrário disto é se acomodar; delegar aos outros, sempre de forma amadorística, a própria iniciativa; e ainda procurar alguém para culpar pelo próprio insucesso.
Não é produtivo caçar sempre alguém para culpar, ao invés de se procurar uma solução, porém, cabe dizer que a falta de iniciativa dos artistas se origina, na maioria das vezes, da relação que os meios sociais estabelecem com o potencial talento. Querer ser artista ainda é correr todos os riscos de enveredar pela marginalidade social. Esta afirmativa parece estapafúrdia. A verdade é que só se veem os artistas, mesmo, quando a trajetória ascendente virou história e eles estão no alto do estrelato, estágio em que fama é sinônimo de popularidade e riqueza aparente.
O talento que desponta pode enfrentar os primeiros obstáculos no próprio seio familiar. “Para qualquer um tudo bem, ser artista é bonito, mas para o meu filho eu não quero isto”. Ouve-se muito de pais reticentes. A família positivista quer o sucesso imediato, com duração vitalícia e validade hereditária. O sucesso financeiro e econômico do indivíduo deve, além de garantir o seu próprio conforto até a velhice, deixar bens materiais para os demais que justifiquem a sua – respeitável - presença na família. Este tipo de exigência se baseia na máxima ”vale-se pelo que se tem não pelo que se é”. Ignoram muitos o quanto o sucesso propiciado pela arte é lento e doloroso, salvo raras exceções; o investimento é oneroso, e, se incompreendido, o artista se torna um fardo.
As estruturas sociais tendem a afunilar o sucesso para alguns eleitos. E não é caso isolado do Brasil. Certa vez foi perguntado ao maestro Tom Jobim se viver de arte no Brasil era difícil. Ele disse ser difícil em qualquer parte do mundo.
As sociedades humanas reproduzem como espectro a seleção das espécies. Têm seus sistemas imaginados, arquitetados e reproduzidos para selecionar uma elite de “capazes” a comandar bandos de “desvalidos, obedientes e desmiolados”. No mundo artístico, a contragosto, isto se reproduz em versão mais complexa, pois não é como o mundo do trabalho convencional, aonde a instrução básica e uns treinamentos específicos habilitam qualquer um para a plenitude profissional.
Falar em sobreviver, neste caso, é em referência aos artistas que atuam longe do diletantismo, aqueles que vivem o bafafá da suarenta dificuldade diária de conciliar o profissionalismo primoroso com a remuneração merecida. A maioria dos artistas plásticos em qualquer local em que viva, desenvolve uma atividade socialmente importante que para ele equivale a de subsistência, podendo ser: professor de arte; desenhista industrial, gráfico ou de interior (pelas nossas dores de eternos colonizados, agora todos são designers); produtor cultural; ou arquiteto. Até acontecerem as compensações advindas exclusivamente da sua produção artística. E elas poderão nunca vir a contento.
Os tempos românticos se foram. Não vale mais morrer de tuberculose, cirrose ou de constante depressão resultantes das investidas malsucedidas. Atualmente não dá para ser um Vicent van Gough ou um Gouguim, que, em nome da arte genialmente original se deixem morrer aos poucos para, num futuro distante, os especuladores lucrarem milhões pelas obras-primas daqueles, antes rejeitados, dadas às incompreensões das pessoas do seu entorno. Neste caso, constitui-se ironia cruel até homenagens com busto em praça ou nome de rua, a pedido da família e dos amigos que não reconheceram na justa medida o talento em vida. Só depois de ter se livrado de um exótico e incômodo exemplar da espécie membro-familiar-estorvo que subvivia da arte que produzia.
Ainda que não concorde, o artista plástico contemporâneo compreendendo o que se passa, deve ser um elemento ativo, e nunca um mero contemplador das coisas e do tempo, para no mínimo sobreviver. Ao optar por “tirar o sustento” somente do que produz, o artista é sacrificado ao se conduzir perigosamente para a subvalorização da sua obra transformando-a em artesanato. Sem qualquer demérito para o artesanato. Isto significa o artista ter de produzir à exaustão, como um fabricante de objetos em série, e ainda, se não tiver consistência artística, desfigurará seu trabalho se repetindo, fazendo reprodução das reproduções.
Afugentar a autopiedade é uma tarefa íntima salutar, sem que isto signifique se conduzir ao extremado culto do egocentrismo. A auto-estima deve ser cultivada em nome de algo que se chama dignidade. Associações, sindicatos, cooperativas e clubes artísticos podem ser saídas para quem se sente isolado e sem apoio. Há também os dispositivos federais de incentivo à cultura que os artistas devem usufruir se estruturando profissionalmente. O desafio é permanente. Encarar e ir à luta, não apenas por questão de status, mas para dar validade a tudo que a arte representa para o próprio indivíduo praticante e às sociedades ao longo da história como atividade de vanguarda em vários aspectos.
O artista se entendendo como um revolucionário, e querendo viver plenamente, que o faça com um pé no mundo imaginário, outro no chão firme. Na arte dá para fazer gênero: ser boêmio, gênio marginal, artista maldito, rebelde ou qualquer tipo visto de lado pelos conservadores. Na vida real, no entanto, a cruenta severidade da sobrevivência das espécies não tolera vacilo.
*Artista Plástico
Antônio da Cruz
Desvalorização Sintomática
Sim, nós temos nossa maneira peculiar de ser e aceitar o quê somos, o quê temos, porque e como nos valorizamos.
Nossa conduta e forma de apreciação são marcantes quando o assunto trata de arte e cultura sergipanas. É fato que há uma frase bem sergipana fundamental para se entender porque outras frases, também conhecidas, fazem tanto sucesso na avaliação do universo artístico/cultural. Logo de início, basta citar que, “Eu, hem! Quem nunca viu isso!” corrobora com “Santo de casa não faz milagre”.
Este é um assunto comezinho e piegas, mas, inescapavelmente a emblemática expressão “Eu, hem! Quem nunca viu isso?” é, em retumbante tom, a repressão, ora ostensiva, ora velada a tudo que seja criativo. Funciona assim: se alguém apresenta uma novidade, outro alguém próximo logo saca esta frase para inibir a ousadia. No entanto, caso em outro lugar distante um desconhecido tenha a coragem do mesmo ato e ganhe adeptos próximos, ao chegar por essas plagas aquilo se fixa como a “tendência do momento”. Resumindo o pastiche: copiar é muito mais importante do que criar.
Aqui neste texto o termo inventar é propositadamente um valor, por si, pois uma frase coadjuvante da primeira frase é: “-Deixa de invencionice besta”. Quem se coloca como mestre e por ciúme diz isto a uma criança, além de torná-la tímida quanto ao processo criativo ela reproduzirá para outras crianças estas toscas “pérolas” verbais. Inseridas num pacote de valores estéticos e morais carcomidos pelo tempo, comporão fórmula eficaz de formar gerações de pessoas insensíveis ao novo.
Bitolado pela arte imitativa, o cidadão mediano rejeita o novo por vê-lo como afronta incompreensível. Não há contradição entre preservar saudáveis valores culturais e apresentar o novo na arte. Se a questão é frase de efeito, cabe também dizer que: - Ora, se cultura é o que aí está, na arte a gente inventa.
Em geral o sergipano reafirma a sua visão demeritória quando, por exemplo, diante de um trabalho excelente de um artista inovador faz a pergunta com ares entre curiosos e céticos, de chofre: Você é de onde? A resposta mais inesperada - e indesejável – é: - “Eu sou sergipano da cidade tal”. O curioso perde o interesse como num passe de mágica. Esta frustração que se apossa dele não poderia lhe ser mais devastadora. Ora bolas... Quem haveria de se interessar por aquela pessoa anônima, e por isto desimportante, daquela cidadezinha do interior, fazendo algo, ainda que lhe pareça ser extraordinário? O curioso perde assim o interesse pela proeza do conterrâneo, que não é nem de longe seu parente, nem amigo próximo. Daí é só esquecer o assunto mudando de pensamento.
Ao criar, o sujeito se expõe; corre o risco de ser ridículo. Fugir das convenções, para o mundo conservador acostumado a determinar as regras é abominável; é quebrar a rotina; é desmoralizar o estabelecido.
Outro aspecto desta mesma questão é a crença segundo a qual somente os mestres podem criar. Esta visão está intensamente associada à forma hierarquizada da sociedade. Quem mestre de fato o é, impõe-se pela maestria, nunca pelo ciúme ou por fazer desmerecer o discípulo. A pequenez do ciúme reduz o mestre a aspirante de aprendiz, pois ele pode ter conhecimento e habilidade, mas, se lhe falta sabedoria para lidar com tudo isto, nunca domará o orgulho de ser o que é, ou acha que é. Admitir que pessoas outras, que não mestres, sejam criativas é sinal de inteligência. Na esteira deste raciocínio pode-se dizer que a valorização dos artistas locais, por parte de cada indivíduo da sua sociedade, devolve para esta mesma sociedade a maestria na apreciação dos seus valores. Aplica-se isto à sociedade sergipana e a qualquer outra.
Ridículo é copiar e apresentar o embuste como novo; é censurar quem é criativo. No fazer artístico certamente há carência de zelo e orientação técnica. Isto não quer dizer que, sob o ponto de vista da visibilidade que merecem artista e obra, reforcem-se a depreciação e a descrença até o aniquilamento dos dois.
Esperança para curar tal sintoma de má formação cultural, somente muitos milagres.
É bem verdade que o artista não precisa de endeusamento pessoal para sobreviver. Precisa de reconhecimento do seu trabalho.
Ao final, cabe enfatizar: o artista sergipano é aquele que, também como qualquer outro, sendo capaz de um feito artístico precisa deixar de ser visto como o santo de casa que não faz milagre. Em Sergipe não há santos, mas, na busca constante pela invenção artística, a arte é um milagre que acontece todo santo dia. Oxalá, a sociedade sergipana percebendo uma superdose miraculosa de arte e cultura cure esta indolência para com os seus artistas. E que indolência! Eu, hem! Quem nunca viu isso?
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