domingo, 2 de novembro de 2025

O MASSACRE NO RIO. Por Frei Betto

           Houve um tempo em que o Rio de Janeiro era qualificado de “Cidade Maravilhosa”. Hoje, o apelido soa como ironia amarga diante das chamas que consumiram quase cem ônibus, das ruas sitiadas e do medo que paralisou milhões de pessoas. O Comando Vermelho disseminou o terror, e o Estado respondeu com o mesmo idioma da barbárie: balas, cerco e corpos espalhados. Ao fim, cento e vinte e uma vidas se perderam, entre elas, quatro policiais mortos.  Nenhum dos mortos consta na denúncia do Ministério Público do Rio que motivou a operação. 

           Até a noite de sexta, 109 corpos haviam sido identificados. A maioria pertencia a foragidos e integrantes do CV vindos de outros estados: 78 tinham passagens por tráfico, roubo e assassinato; 43 tinham mandados de prisão; 39 eram de outros estados. Trinta  mortos identificados não tinham sequer passagem pela polícia. Todos, culpados ou não, foram tragados pelo mesmo vendaval de violência que reduz a cidade a zona de guerra. A Gaza dos trópicos!

          Essas mortes não começaram no dia da chacina. Começaram há décadas, quando o abandono foi oficializado como política pública. Começaram quando se privatizou o direito à paz e se terceirizou a segurança às facções. Começaram quando o Estado trocou o cuidado pela guerra, a escola pela prisão, o diálogo pelo fuzil.

          O narcotráfico não brota do nada. Nasce onde o Estado nunca plantou esperança. Cresce na ausência de políticas públicas, floresce entre muros rachados e becos sem saneamento, alimenta-se da desigualdade e da humilhação. As facções são o espelho deformado do capitalismo brasileiro: hierárquico, violento, sedento de lucro e controle. O traficante é o empresário da ruína, e o consumidor dos bairros ricos seu investidor invisível.

          Não há o que celebrar. Uma operação que termina com 121 mortos não é vitória, é derrota civilizatória. O Estado não pode combater o crime reproduzindo sua lógica. A cada incursão policial em que a favela é tratada como campo inimigo, a distância entre o poder público e o povo aumenta. Não se constrói paz sobre o chão ensanguentado da periferia.

          O narcotráfico é, sim, um flagelo. E cresce onde o Estado nunca chegou com segurança aos moradores e políticas públicas. As 1.900 favelas cariocas sofrem a insuficiência de escolas, saneamento, transporte, cultura, atividades esportivas, emprego e perspectiva de vida. As facções ocupam o vazio deixado por décadas de omissão governamental. São o espelho perverso de um sistema que exclui, humilha e depois criminaliza os excluídos. O traficante, muitas vezes, é o produto final de uma política que trocou direitos por fuzis e políticas sociais por operações midiáticas.

          A violência virou rotina, e a brutalidade se institucionalizou. O governo fala em “ação de segurança”, mas que segurança há em metralhar comunidades inteiras? A segurança pública, no Rio, virou gestão de cadáveres. A cada chacina, repete-se o mesmo roteiro: promessas de “investigação rigorosa”, notas frias de gabinete e o silêncio que cobre a cidade quando as câmeras da mídia vão embora.

          Estudiosos do tema são unânimes em admitir que não se destrói facção com fuzil, e sim com políticas públicas. A guerra às drogas fracassa porque não é um combate às drogas, é guerra aos pobres. A cada morte, a favela se torna ainda mais vulnerável, o tráfico se reorganiza, e o ciclo recomeça. O verdadeiro inimigo não é o jovem armado, mas a ausência de Estado que o empurrou para isso.

          O Rio, sitiado e queimado, assiste ao colapso de suas maiores riquezas, como o turismo, a beleza da paisagem, o bom humor do carioca. Nenhuma cidade sobrevive quando a morte se torna rotina e a injustiça persiste. Beleza somente não põe mesa, e o cartão-postal desbota diante da dor.

          Mas há quem resista. Mães que enterram filhos e ainda erguem faixas nas praças. Cidadãos que filmam, denunciam, documentam. Gente que, entre o medo e o luto, ainda acredita na vida. São esses os guardiões do Rio que resta, o Rio que não se rende.

          Os 121 mortos não são apenas números. São o espelho de um país que perdeu o rumo, confunde justiça com vingança, e segurança com extermínio. O Brasil precisa escolher: continuar contabilizando corpos tombados pela violência urbana ou finalmente governar para a vida de todos.

          Só haverá paz quando o Estado for presença de direitos, não de morte. Só haverá futuro quando a favela deixar de ser território inimigo. Só haverá Rio de Janeiro de novo quando a cidade se lembrar de que é feita de gente, e gente não é descartável.

          Por quem choram as mães dos jovens assassinados? Choram ao ver sonhos desfeitos pela letalidade policial e pelo equívoco de se buscar na criminalidade a escalada para uma vida melhor. Choram sobretudo por um país que perdeu o senso de justiça. 

          O axioma “bandido bom é bandido morto” significa barbárie travestida de justiça. Ele nega o Estado de Direito, despreza a dignidade humana e substitui a lei e os direitos por vingança. Ao defender o assassinato em vez de reabilitação e combate às causas do tráfico de drogas e de armas, esse pensamento fortalece a violência que diz combater e fragiliza a própria sociedade civilizada.

 Frei Betto é escritor, autor do romance policial  “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org




RIO EM CORES DE CINEMA

(Chico Queiroga)


“O Rio de Janeiro continua lindo”

A praia de Ipanema, a pele da morena,

Como é bom se ver, como é bom viver,

Como é bom sonhar.


O Rio de Janeiro continua indo

Esconde a violência e mostra um paraíso.

Como é bom viver, como é bom se ver,

Como é bom sonhar.


Mas vejo bandoleiros de carroças atômicas

Índios caras-pálidas

Vejo gaviões em batalhões lançando suas garras.

E o que se passa na cabeça do Cristo Redentor?

Eu vejo o Rio de Janeiro vendo O Salvador

Em cores de cinema.


O Rio de Janeiro continua rindo

Portela na avenida, confetes e serpentinas,

Como é bom se ver, como é bom viver,

Como é bom sonhar.


Ainda o Rio de Janeiro em prosa e poesia

Esconde todo o choro mostrando a alegria

Como é bom viver, como é bom se ver,

Como é bom sonhar.


Mas vejo o carnaval na edição “O Dia”

Adeus toda a folia pra tantos foliões

E nos olhos de Deus, mais longe a harmonia.

E o que se passa na cabeça do Cristo Redentor?

Vendo o Rio de Janeiro O nosso Salvador,

Em cores de cinema.



SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO, por Chico Alencar. (no Instagram) 

Rio, cidade tão castigada e tão bela. A música Sebastian, de Gil e Milton, é um retrato da cidade que ambos escolheram para viver. Essas palavras musicadas não saem da minha cabeça após os acontecimentos dos últimos dias…

SEBASTIAN

(Gilberto Gil/Milton Nascimento)


Sebastian, Sebastião

Diante de tua imagem

Tão castigada e tão bela

penso na tua cidade

Peço que olhes por ela


Cada parte do teu corpo

Cada flecha envenenada

Flechada por pura inveja

é um pedaço de bairro

é uma praça do Rio

Enchendo de horror quem passa


Oô cidade, oô menino

Que me ardem de paixão

Eu prefiro que essas flechas

Saltem pra minha canção

Livrem de dor meus amados


Que na cidade tranqüila

Sarada cada ferida

Tudo se transforme em vida

Canteiro cheio de flores

pra que só chorem, querido,

Tu e a cidade, de amores



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