terça-feira, 20 de setembro de 2011

A Escola fortalecendo a Cidadania Cultural.


* José de Oliveira Santos(Zezito)
Artigo escrito em 2001


Durante alguns anos como dirigente da Associação dos Moradores do Bairro América - AMABA, pude estabelecer contato com setores ligados ao movimento artístico e intelectuais de Aracaju. Esta aproximação se deu em virtude da necessidade de trabalhar aspectos da cultura, objetivando o reforço da auto estima da população daquele bairro, tão discriminado pelos setores dominantes e infelizmente reforçado por uma parcela bastante ampla dos próprios moradores.

A memória escrita e fotográfica deste trabalho confirma a realização de diversas oficinas culturais, exibição de filmes e vídeos e semanas de arte (1987 e 1988). O sucesso crescente dessas iniciativas vem culminar em 1989, com a aprovação de auxilio financeiro por parte de duas agências de fomento a projetos sociais: Cese (Coordenadoria Ecumênica de Serviço) e Visão Mundial ao Projeto Reculturarte.

Este, nasceu da reflexão feita por alguns componentes da AMABA, em conjunto com o Centro Sergipano de Educação Popular (CESEP), grupos de jovens da Igreja São Judas Tadeu e posto de extensão da FEBEM, no bairro América.

Enquanto cidadão (adolescente ainda) me acostumei na freqüencia a espaços culturais. O fato de ter morado durante muitos anos no Rio de Janeiro, mais especificamente na baixada fluminense, favoreceu este hábito. Das melhores coisas me recordo com saudade: das idas inúmeras ao teatro do SESC e teatro João Caetano, da apresentação de musica clássica do projeto aquarius, promovido pelo jornal O Globo, a biblioteca nacional, a cinemateca do MAM, aos shows Primeiro de Maio (inclusive o de 1981 em que uma bomba explodiu no colo de um militar de direita) etc... Isto tudo, mesmo morando na periferia e ser aluno da escola publica.

Nesta ultima situação foram pouco os momentos em que fui estimulado a prática e a apreciação das diversas formas do fazer artístico. A lembrança mais forte é a apresentação de “Cinderela” por um grupo de teatro de bonecos, e de uma aula-espetáculo de um grupo musical, infelizmente não me recordo do gênero.

Como estudante universitário (entrei na Universidade Federal de Sergipe - UFS em 1990), no ano em que as atividades culturais estimuladas por aquela universidade estavam em decadência, ao contrario dos anos anteriores quando o campus foi um celeiro de artistas para a cultura sergipana, ainda pude ter o prazer de me deliciar(antes de entrar na universidade) com a melhor produção da cultura nordestina, através do Festival de Arte de São Cristóvão, uma das iniciativas mais brilhantes da UFS nos anos 70/80.

O resultado disto e mais as leituras de alguns brasileiros, como Darci Ribeiro, apaixonados pelo povo e pela cultura deste país, é que me tornei um cidadão preocupado e disposto a enfatizar os aspectos mais significativos da cultura brasileira, como elemento constitutivo do esforço para a construção de uma sociedade menos desigual. Segundo Darci:

“Não se tem em nenhum lugar do mundo uma nação feita com base na miscigenação.(...) A massa principal dos brasileiros é feita disso. Uma gente de uma beleza extraordinária, que guarda o patrimônio de talentos corporais do índio e do negro, a sabedoria imensa do índio sobre a floresta e que guarda do negro a imensa espiritualidade. Isso dá ao Brasil um élan. É um povo capaz de fazer coisas incríveis.” (Entrevista concedida ao Jornal do Brasil)

O problema é que infelizmente não estamos habituados a valorizar as nossas raízes negras e indígenas, o que contribui enormemente para um sentimento de inferioridade em relação aos países europeus e norte-americanos. Chegamos até a reforçar a idéia de que os motivos do nosso atraso é exatamente esta herança cultural, há quem afirme ainda hoje que se o país fosse colonizado pelos ingleses ou franceses seriamos uma nação desenvolvida, esquecendo que a maioria das ex-colonias inglesas e francesas tanto na África como na Ásia e na própria América, estão em condições semelhantes ou piores que as nossas. È incrível como adoramos falar mal de nós mesmos, segundo o jornalista Fernando Rosseti:

“Talvez nenhum outro país tenha uma falta de auto-estima tão grande. Ignorante, despreparado, analfabeto são adjetivos suaves com que o brasileiro se autoclassifica. O preconceito é ainda mais forte nas classes média e alta, que fazem questão de reafirmar constantemente sua superioridade em relação ao “povão”(...) Se o bate-papo for entre professores ou educadores, o amargor não tem limites: “Os alunos não querem nada”, “Esse povo não se interessa por Educação”. Não faltam críticas nem mesmo aos professores “despreparados”, “desinteressados”.

Uma das lembranças mais fortes do preconceito contra as raízes culturais negras é a das criticas feitas aos cariocas e baianos justamente aqueles que trazem no corpo, nos ritmos, na devoção aos orixás as marcas mais fortes da ancestralidade africana. Lembro da imagem de “irresponsável”, “festeiro”, “malandro” com a qual o baiano é estigmatizado pelo sergipano, da mesma forma como o carioca o é pelo paulista.
Isso se repete também em relação as áreas de moradia, como no Brasil Colonial, a “casa grande” de hoje, que são os bairros da zona sul referem-se aos bairros da “periferia”, que são as senzalas de hoje com os adjetivos mais desqualificados.

No entanto, é da periferia ou das “senzalas” de hoje, que vemos surgir os principais responsáveis pela nossa alegria nas tão aguardadas noites de sábado, quando nos dirigimos para os bares ou casa de shows, ou nas jovens tardes de domingo quando nos sentamos junto ao sofá, para ver o Faustão ou o Gugu ou para ouvir os cds dos grupos de pagode, reggae, rap ou os artistas da MPB.

E a alegria não é só nossa é também dos moradores dos morros, das favelas, das “baixadas fluminenses” espalhada pelo Brasil afora, quando assisto ou ouço o grupo Cidade Negra, como é bom ver gente do lugar onde morei e com o qual me identifico fazendo bonito no Brasil e no mundo. É bom se ver num espelho que apresente os descendentes dos negros e dos índios como seres capazes de criar beleza mostrando a outra cara de um mundo onde dizem, só tem violência e miséria.

E a escola pública, como se tem posicionado diante disto tudo? Muitos professores são originários da classe média, o pensamento de uma parcela significativa reproduz a visão preconceituosa e elitista da classe dominante, o mesmo se sucede com a maioria dos pais e alunos que tem vergonha do que são e do lugar onde moram. Além dos meios de comunicação, outro responsável por tudo isso e a própria escola que tem a sua estrutura de gestão e currículos organizados de forma ultrapassada e não condizente com o atual estagio de desenvolvimento da sociedade.

É bem verdade que alguma coisa mudou, em passado não tão distante, os livros didáticos de Historia apresentavam os índios como preguiçosos pela recusa em se deixar explorar, para o enriquecimentos dos portugueses.

Quanto aos negros, nunca houve e ainda não há preocupação com o estudo sobre o continente africano. Sobre Zumbi e a luta dos quilombos somente há poucos anos é dado algum destaque. A propósito da capoeira, só uma citação como traço de uma herança cultural, estimular e apoiar a prática nem pensar. Se não fosse o movimento de conquista do espaço escolar vindo de fora para dentro da escola, dificilmente teríamos algo semelhante em termos de dança afro dentro das unidades de ensino. O reggae e o rap, duas importantes formas de expressão cultural dos jovens negros da periferia, passam bem distante da preocupação da maioria dos profissionais da educação.

Apesar disso, ainda bem que alguns sinais positivos de uma mudança de caminhos já começam a se fazer notar . Na década de 90, do século passado, a perspectiva de abordagem da escola como um espaço sociocultural e os sujeitos que nela atuam como portadores de diferentes identidades, assume uma dimensão maior. Acredito que desta maneira a escola se encontra em condição de um diálogo mais profícuo e duradouro com aqueles que as freqüentam.

Assumindo com vontade e decisão este papel, aquilo que tem chegado com maior intensidade para dentro da escola que é a violência física, poderá ser atenuada quando as causas forem discutidas e reapresentadas em forma de ações educativa, que certamente terão na arte um canal privilegiado. Uma experiência realizada em Salvador merece ser apresentada para dar uma idéia bem real de como esta mudança pode ser operada:

"Afinal, quem é a escola senão as pessoas que a compõem? Cadeiras e carteiras quebradas. Alunos desinteressados. Paredes riscadas. Professores atrasados, desanimados. Janelas sem vidro. Banheiros sem pias. Este cenário é familiar para você? Provavelmente, sim. É comum para milhares de escolas espalhadas pelo Brasil afora.

Na Bahia também. Lá, porém, esse quadro que mais parece uma praça de guerra depois da batalha, mas que na verdade é uma escola, virou pano de fundo para uma história de amor. A história de Ritinha e Sinval. Ela é representante de classe, boa aluna. Ele, o bagunceiro, da turma do fundão. Os dois, tão diferentes, se apaixonam. E começam a construir um presente diferente: junto aos amigos, aos professores, a cadeiras, carteiras, paredes, janelas, enfim, à escola.

A história de Ritinha e Sinval é ficção. É o enredo da peça Cuida Bem de Mim, a partir do projeto Quem Ama Preserva. O projeto é uma parceria do Liceu de Artes e Ofícios e da Secretaria de Educação da Bahia, que desenvolveu oficinas de teatro com 570 alunos e 310 professores da rede pública de ensino baiana sobre a depredação das escolas.

Depois do trabalho com estudantes e educadores, foi escrito o texto da peça. Os autores Luiz Marfuz e Filinto Coelho têm longa experiência em teatro.
Marfuz conta que, antes das oficinas, sua idéia de escola se resumia ao espaço físico das salas de aula e corredores. Com a experiência, percebeu que o problema era mais profundo. Incluía a destruição institucional da escola, das relações pessoais, dos papéis mal desempenhados por diretores que não dirigem, professores que não ensinam e alunos que não aprendem.

È uma situação que se repete em cada sala de aula do Distrito Federal, no Rio, em São Paulo, em Minas, no Rio Grande do Sul, no Ceará, no Pará e na Bahia falta então transformar a história de Ritinha e Sinval em realidade. Falta fazer baile, fazer música, fazer teatro, fazer arte, fazer jornal na escola. Fazer do quebra-quebra, do descaso, do desinteresse uma história de amor. Quem se habilita?”

Sem dúvida o processo de mudanças desencadeado por esta postura levará a transformação da visão do mundo de todos os sujeitos envolvidos. Inclusive o preconceito contra a população da periferia e a baixa auto-estima dos moradores. Da mesma forma como o comportamento dos alunos também será afetado de forma positiva, assumindo posturas de maior diálogo e cooperação com colegas e professores com reflexos, inclusive, na melhoria dos indicadores de aprendizagem. Embora o caminho para chegar até lá seja árduo e longo.

Lorene dos Santos, em sua dissertação de mestrado sobre a mudança do currículo de História, na perspectiva abordada acima, destaca o seguinte:

“A idéia de que a história deveria promover um diálogo entre diferentes culturas / temporalidades, num contraponto permanente entre presente / passado, também parte da perspectiva de que é pela contraposição com a diferença que se constrói a identidade. Além disso, a idéia de se trabalhar com a realidade vivenciada cotidianamente, problematizando-a, buscando compreendê-la a partir de sua historicidade, seria uma forma de resgatar as várias dimensões de identidade das quais os sujeitos da aprendizagem são portadores. Nesse sentido, questões relativas a gênero, etnia, faixa etária e tantas outras, parecem encontrar, no ensino da história, um campo fértil para a sua problematização.”

No entanto, existe um sério obstáculo para isso se tornar possível, citando outro autor Lorene dos Santos apresenta a seguinte questão:

“...os professores alegam pouco preparo para abordar questões que tratam de discriminação, preconceito, diferenças culturais, em sala de aula. Uma pesquisa, efetuada com docentes da área de História, Estudos Sociais, mostrou que a falta de formação e informação é apontada como um dos principais obstáculos para abordar esses temas. (PINTO, 1993: 44)”

Embora a citação privilegie a disciplina História, por se tratar de um estudo sobre o ensino desta matéria na rede escolar de Belo Horizonte, é evidente que todos os aspectos relacionadas a questão da identidade (gênero, etnia, faixa etária, religião) diz respeito a todas as outras disciplinas.

Para o professor e/ou estudante interessados em tornar a escola um espaço de criação e liberdade, lugar onde a diferença seja conhecida e valorizada, as alianças para tornar realidade este desejo parecem fortalecidas. Digo “parecem” porque, infelizmente, na maioria das vezes, aquilo que representa um avanço em termos de legislação e de documentos oficiais não é assumido de forma efetiva pelos estratos mais baixos da hierarquia do poder. Basta lembrar da ausência de uma proposta permanente de atualização, para os professores da rede publica de ensino em nosso estado, visando suprir as demandas colocadas que colocamos em destaque A Lei de Diretrizes e Bases, entre outros exemplos, destacamos o Art. 26 § 4º.

“O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.”

Este ponto de vista é fortalecido pelo tema transversal “Pluralidade Cultural” contido nos documentos dos PCNs:

“Para viver democraticamente em uma sociedade plural é preciso respeitar e valorizar a diversidade étnica e cultural que a constitui. Por sua formação histórica, a sociedade brasileira é marcada pela presença de diferentes etnias, grupos culturais, descendentes de diversas nacionalidades, religiões e línguas.(...) Essa diversidade etnocultural freqüentemente é alvo de preconceito e discriminação, atingindo a escola e reproduzindo-se em seu interior. A desigualdade que não se confunde com a diversidade, também está presente em nosso país como resultado da injustiça social. Ambas as posturas exigem ações efetivas de superação”.

E é neste sentido que propomos o projeto “Circuito Cultural Arte e Cidadania nas Escolas” que objetiva formar núcleos de cultura e cidadania para contribuir para que os anseios de uma escola mais inclusiva, plural e prazerosa se torne realidade, contribuindo para que as distancias entre as palavras e os atos sejam abreviadas o mais rapidamente possível, para o bem de todos e felicidade geral da nação.

* É Professor de Historia e Educador Popular

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