O filósofo francês Edgar Morin esteve no Fronteiras do Pensamento
duas vezes. Na primeira (2008 - POA), apresentou um tecido entre as
revoluções de 1960 e a crise global que se manifestava em 2008. Em sua
segunda passagem pelo curso (2011 - POA e SP), Morin trouxe conclusões
de sua primeira fala, abordando “a via” para o futuro da humanidade. No
texto a seguir, extraído da primeira conferência, Morin traça análises
comparativas entre a crise contemporânea e a crise de 1968, trazendo à
luz uma compreensão histórica fundamental para entendermos o que está
acontecendo no mundo.
Edgar Morin | 1968-2008: o mundo que eu vi e vivi
O que é 1968? É uma revolta plurinacional, multinacional, de estudantes
que acontece em países tão diferentes quanto os Estados Unidos, a
Alemanha, o Egito, a Polônia, e, de certo modo, no mundo todo vê-se,
pois esse movimento estudantil, já nos anos 1960, na Califórnia, se
manifestava por meio de uma cultura que viria a se chamar contracultura,
tentativa dos jovens de fazer uma cultura diferente da do mundo em que
viviam, criando comunidades.
Em compensação, na França, será sobretudo uma explosão que vai durar
pouco mais de um mês e durante a qual acontecerá toda uma série de
fenômenos importantes. Interessa também saber qual é a característica
comum a todas essas revoltas em países tão diferentes uns dos outros.
A característica comum é, evidentemente, a revolta contra a autoridade,
quer seja a autoridade dos mestres, quer seja a autoridade do Estado,
quer seja a autoridade da família tradicional. Mesmo assim, o curioso é
que, embora haja uma defasagem histórica, quando se pensa na revolução
cultural na China, essa revolução, embora iniciada por Mao Tsé-Tung
contra seu comitê central, foi realizada por estudantes e colegiais que
então manifestavam uma violência incrível, inclusive por meio de
assassinatos e da humilhação dos professores, mas ainda aí vemos a
característica de revolta do adolescente. E por que os adolescentes se
revoltam contra as autoridades, por mais diversas que sejam?
Inicialmente, é preciso dizer que, durante os anos 1960, produziu-se um
fenômeno histórico extremamente importante: a autonomização da
adolescência. O que é adolescência? É uma categoria que se pode situar
entre o fim da infância amparada, quando se está protegido no casulo
familiar, e a entrada no mundo da vida adulta, com uma carreira, uma
profissão, o casamento, etc. Esse intervalo não existe sociologicamente
nas sociedades tradicionais. Numa sociedade tradicional, ainda hoje, em
numerosos países, as crianças são postas para trabalhar em tenra idade. A
adolescência é eliminada. Em sociedades ainda mais antigas, não havia
adolescência, mas cerimônias de iniciação que faziam a criança passar à
categoria homem.
No
nosso caso, a adolescência se desenvolve como um corpo autônomo e se
constitui numa cultura. Essa cultura não é apenas o rock, nem apenas
agrupamentos em torno de uma música, mas também um modo comum de se
vestir, hábitos comuns, quase as mesmas buscas, as mesmas aspirações. E,
de certo modo, pode-se dizer que 1968, com as revoltas estudantis,
marca a irrupção, na vida política e social, de um novo tipo de classe
que não é uma classe social, mas, digamos, uma bioclasse. É uma classe
que tem caráter biológico e que, tornada autônoma, aspira a se libertar e
mostra algumas de suas aspirações profundas. Que aspirações são essas?
Mais autonomia e mais comunidade. Duas coisas que parecem
contraditórias: de um lado, o desejo de ser livre; do outro, o desejo de
uma comunidade calorosa. Essas aspirações são vividas simultaneamente,
porque existe, ao mesmo tempo, o sentimento de que não há mais
comunidade numa sociedade atomizada, reduzida ao individualismo,
reduzida a formas, à procura do lucro, e o sentimento de que as
liberdades foram reduzidas.
Então, essa aspiração que aparece nas revoltas é encorajada, de certa
forma, pelas revoltas que acontecem no mundo. Por exemplo: o Vietnã que
se revolta contra o Ocidente, em especial contra a presença
norte-americana. Che Guevara, que também manifesta uma revolta contra
esse mundo. Na realidade, esses exemplos estão aí para dizer que a
própria juventude deve se revoltar. Além do mais, o que aconteceu na
Alemanha, na Itália e na França foi que essa aspiração, no início
espontânea, em determinado momento, na França, foi animada por
libertários como Daniel Cohn-Bendit,
os trotskistas, os maoístas. Eles diziam aos adolescentes: “suas
aspirações, mas somos nós que vamos realizá-las, fazendo a revolução e
fazendo o socialismo.” E se certamente confiscaram o movimento de 1968
em alguns países, sua ideologia exprimia essas aspirações de um mundo de
harmonia, fraternidade e liberdade.
É preciso dizer que a sociedade industrial moderna, quando democrática,
ao mesmo tempo em que introduziu liberdades que inexistiam nas
sociedades autoritárias e escravagistas, trouxe suas próprias coerções: a
aplicação de uma visão determinista e mecanicista do indivíduo, a
lógica do trabalho controlando toda a vida social e humana, o que na
França se chamava de métro-boulot-dodo [metrô, trabalho, dormir], ou
seja, uma vida cada vez mais anônima.
Evidentemente, ao passo que em nossa sociedade há essa coerção que os
adolescentes recusam-se a aceitar, no mundo adulto tenta-se encontrar
escapatórias. O que fazem as pessoas quando podem? Tiram férias e são
donas do próprio tempo, vestem-se como querem, vivem entre amigos ou em
família, procuram o lazer. Festas, futebol, paixões encontram-se aos
pequenos bocados, “pedaços” de harmonia, no cotidiano, instantes de
poesia na vida.
Mas o que quero dizer é que, se eu quisesse falar hoje de sentido
profundo, do sentido antropológico, seria exatamente desse movimento,
dessa aspiração tão profunda da humanidade, que os adultos esquecem,
abandonam, por conformismo; seria exatamente dessa aspiração que
desperta e que eu acredito que ainda vai se exprimir de um novo modo no
futuro próximo.
Maio de 68 foi a revelação de uma falha da civilização ocidental. Estou
falando de todo o mundo ocidental. Ela mostrou que onde havia
abundância de bens materiais, onde havia abundância de bens de consumo,
bem-estar material, não havia bem-estar moral, não havia bem-estar
psicológico; havia, ao contrário, infelicidade, insuficiências tratadas
privadamente, quer dizer, recorrendo-se aos soníferos, às drogas, ao
psiquiatra, etc. Há um novo mal-estar, produzido pela nossa civilização
que, no entanto, produziu virtudes e qualidade, mas que gera cada vez
mais essas características negativas que, de certo modo, Maio de 68
aponta. E se falou justamente de crise de civilização, da insuficiência
dessas civilizações e, repito, de aspiração a outra vida.
Falou-se
ainda em mostrar que, enquanto muitos teóricos de antes de 1968
pensavam que a civilização, nossa civilização ocidental, iria cada vez
mais resolver os problemas mais graves da humanidade, a desigualdade, o
desemprego, o mal-estar, a infelicidade, etc., percebia-se que, ao
contrário, esses males tinham se agravado. Percebeu-se que nossa
civilização era uma superfície, uma camada sobre um subsolo que estava
cada vez mais minado.
Mas o solo não desabou porque, de algum modo, houve o restabelecimento,
depois de explosões diversas, da antiga ordem. Pode-se dizer que tudo
mudou. Pode-se dizer, de preferência, que nada mudou, embora tudo tenha
se modificado. O que se pode dizer é que, durante a década de 1960,
vê-se o fim de uma esperança e o fim de um desespero. É o fim de uma
esperança, ou seja, havia algo, uma fórmula, um mundo que estava
transformando a humanidade, criando um homem novo, uma sociedade nova.
Isso desaba, percebe-se que o sistema criou uma nova dominação, uma nova
servidão, e chegou a uma série de impasses econômicos. Logo, é o fim de
um desespero e de uma esperança; é o fim do desespero de populações que
viviam nesse sistema ou que eram oprimidas, ainda que o fim desse
desespero não se traduza no nascimento de uma esperança.
Assim, assistimos à expansão da economia liberal e, ao mesmo tempo, o
que é um fenômeno dos anos 1990, ao extraordinário desenvolvimento das
tecnologias de comunicação, que permitem conectar instantaneamente um
ponto a outro do planeta, por telefone móvel, fax, correio eletrônico e
tudo mais que a internet trouxe. Temos, então, a globalização técnica,
econômica, que se espalha no mundo, mas, também, uma segunda
globalização mais fraca, mas real, uma globalização de democratização e
dos direitos do homem. Então, o que é preciso observar é que a
globalização se traduz por uma unificação técnica, econômica, um tipo de
ocidentalização. Temos, portanto, quase por toda parte, a reivindicação
de uma identidade que, com ou sem motivo, teme ser sufocada. Mas, temos
um segundo elemento que explica tudo isso: a perda do futuro.
Por quê? Porque o mundo viveu com a ideia de que o progresso era uma
lei histórica, que o amanhã seria melhor do que o hoje. E talvez
houvesse algumas perturbações, mas essa lei era certa. A partir dos anos
1970, 1980, 1990 evidencia-se não apenas que este progresso não é
certo, mas como seus motores são ambivalentes. Então, a crise do futuro,
a crise do progresso; quando se perde a esperança do futuro se
instauram a angústia e a neurose. A crise do futuro provoca um
recolhimento no presente. A vida no presente, um dia de cada vez. E
quando toda uma parte do mundo ocidental vive um dia de cada vez, quando
a política se faz um dia de cada vez, quando não se pensa mais no
futuro, não há mais perspectiva, ou melhor, quando o presente é ruim e
infeliz, o que resta?
Tudo
confirma a ideia de que este mundo se unifica apenas tecnicamente,
economicamente, mas não se unifica política, cultural e humanamente.
Portanto, temos este mundo em explosão. E o que significa o termo
“crise”? Uma crise significa perigo e oportunidade. Pode provocar
desintegrações e até mesmo regressões. Mas, uma crise também pode levar a
novas soluções. Quando um sistema não pode mais tratar de seus
problemas vitais, o que acontece?
Ou o sistema se desintegra ou dá origem em si a outro sistema mais
rico, capaz de tratar de suas questões fundamentais. Disse o poeta T.S.
Eliot: “No meu fim está o meu começo”. Isso quer dizer que talvez não
seja o fim do mundo, talvez seja o fim de um mundo e o começo de outro,
porque, numa época como a nossa, vemos muitas forças de destruição que
agem como a lagarta que se autodestrói, mas não vemos as forças de
criação que, talvez, já estejam em movimento por aí. Logo, em meu fim,
talvez, esteja o meu começo. E o filósofo Heidegger diz: “A origem não
está atrás de nós, ela está diante de nós”.
Então, o mundo que morre seria simplesmente um mundo que morre para que
outro nasça. Não é uma profecia, mas é o que se pode concluir do exame
desses 40 anos que transformaram o mundo.
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