Safatle: juventude perdeu o medo do capitalismo
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– on 03/07/2012
Filósofo contesta mitos sobre “geração despolitizada”, propõe
intensificar choque de valores e sugere que é preciso hackear
instituições conservadoras
Entrevista a Beatriz Macruz, Guilherme Zocchio e Rute Pina* | Imagem Racalavaca (flickr)
Que caracteriza o comportamento da geração que, ao chegar à faixa dos
vinte anos, começa a sondar seus papéis políticos? Por que ela não
adere a hábitos valorizados no passado, como o engajamento num partido
ou a leitura de um jornal diário? Como expressa seus desejos de
transformação, que parecem desdobrar-se em múltiplas causas e campanhas,
às vezes fragmentadas? Que atitudes assumirá, no futuro próximo?
O filósofo Vladimir Safatle é um dos que têm dedicado parte de seu
tempo a refletir sobre estas questões. Conhecido de muitos pelas colunas
que publica em “Carta Capital” e “Folha de S.Paulo”, ele é, muito mais
que isso, um estudioso profundo da herança (e presença…) da ditadura
brasileira; e um pensador que, à maneira de Slavoj Zizek, procura
articular marxismo renovado com teoria psicanalítica.
Suas reflexões têm produzido interpretações instigantes sobre a nova
geração. Ele rechaça, é claro, os pontos de vista superficiais, segundo
os quais o fato de não haver “povo saindo às ruas” indicaria uma fase de
despolitização. É preciso ir mais fundo, examinar os valores que
mobilizam e os que já não encantam; a partir deles é que será possível
fazer previsões de longo prazo.
Safatle anima-se, quando se dedica a esta sondagem. Ele destaca que
aspirações como ascender socialmente, ser “bem-sucedido” segundo as
regras e critérios do sistema, “fazer curso de publicidade ou entrar no
departamento de marketing” já não cativam. Há sinais de desconforto
social. Busca-se outros encantos e prazeres: talvez, participar em redes
de colaboração, contribuir para uma distribuição menos desigual das
riquezas produzidas por todos, construir novas relações entre o ser
humano e a natureza.
Mais: segundo o filósofo, já é possível vislumbrar o momento em que
desaparecerá a cultura do medo disseminada pelo capitalismo após a queda
do (mal-)chamado “socialismo real”. Está em xeque, diz ele, a ideia de
que “se quisermos grandes mudanças, provocaremos catástrofes” e “só
estaremos seguros no presente – por mais que o detestemos e o julguemos
insuportável”…
É natural, diz Safatle, que a nova geração busque organizar-se de
forma não-tradicional. “Os grandes partidos já não têm força alguma para
mobilizar as pessoas. E os pequenos, cobram caro pela mobilização: um
tipo de adesão que boa parte dos jovens não está disposta a dar, pelas
melhores razões. Eles não querem virar instrumentos para uma lógica
partidária”.
À falta de instrumentos eficazes para expressar vontades coletivas,
seria o caso de optar exclusivamente pela micropolítica, ou pela ação à
margem das instituições? Safatle pensa que não. Ele rejeita fórmulas
como a de John Holloway, que propõe uma esquerda totalmente afastada do
Estado. Alfineta: “se tal postura prevalecer, os donos do poder irão
atrapalhar todas as nossas tentativas de mudar o mundo: não
conseguiremos fazer nada”.
Mas propõe-se a sondar saídas. “Há algo no meio do caminho [entre as
lutas e as instituições], que você opera pressionando de fora (…) O
Estado, os partidos e o parlamento não vão desaparecer. No entanto, você
pode operar as estruturas políticas em outras chaves. Forçar a
democracia plebiscitária, esvaziar atribuições do parlamento, ativar
processos de democracia direta”. Operar o que outros pensadores chamam
de “hackeamento das instituições”.
Safatle falou sobre todos estes temas numa longa e preciosa
entrevista, feita por três estudantes de jornalismo da PUC – São Paulo.
“Outras Palavras” tem a satisfação de publicá-la a seguir (A.M.)
Você consegue imaginar por que é a geração da juventude de
hoje, e não a que viveu ou ainda pegou o resto da ditadura, que está
promovendo os esculachos contra agentes do regime militar?
Safatle: Porque esta é uma das gerações mais
politizadas que tivemos nos últimos trinta anos. Contrariamente ao que
algumas pessoas querem nos fazer acreditar, não vivemos num processo
irreversível de despolitização juvenil. Acredito exatamente no
contrário. Acho que a geração que hoje tem vinte, vinte e poucos anos, é
muito mais politizada do que a minha, de pessoas que hoje têm quase
quarenta. A minha era de pessoas que tinham como maiores preocupações
ascender socialmente no mercado, fazer curso de publicidade, entrar no
departamento de marketing… As preocupações políticas eram nulas. Existia
todo um discurso de que as ideologias haviam terminado, havíamos
chegado ao fim da história e não havia outra forma de vida possível, a
não ser a institucionalizada pelas sociedades capitalistas avançadas.
A atual, é uma geração que vive a experiência da crise social, de uma
crise econômica mundial (mesmo que o Brasil seja um caso à parte). Há
um esgotamento da confiança na democracia parlamentar, a ascensão da
extrema direita, o retorno do racismo e da xenofobia: são questões de
profunda natureza política. É muito normal que uma parcela de jovens, no
Brasil, volte-se para o que resta da ditadura, seu legado, a
impossibilidade de saber que há um acerto de contas com os crimes do
passado; e que faça mobilizações como as que começamos a enxergar.
Isso também demonstra algo interessante: as sociedades nunca
esquecem. Até hoje, fala-se no genocídio armênio, há mais de cem anos.
As experiências das ditaduras podem ser simbolizadas, quando você
encontra uma inscrição simbólica adequada para este tipo de experiência.
Como isso não existiu no Brasil, dá-se um fenômeno descrito por Lacan: o
que é expulso do simbólico, retorna no real, e de forma violenta. Como
nunca tivemos uma inscrição simbólica da violência da ditadura, ela
volta agora sob a forma do desprezo, que várias parcelas da juventude
têm a figuras que cometeram crimes contra a humanidade. Estamos falando
do uso do aparato do Estado, da tortura, assassinato, estupros,
ocultações de cadáver e coisas desta natureza.
Mas esta manifestação civil não chega em uma instância oficial do Estado. Você acha que ela também pode contribuir para que surja um debate sobre o tema?
Safatle: Acho que demonstra claramente a existência
de um desconforto social – e é o primeiro passo. O argumento de quem
quer esquecer a qualquer custo é que a sociedade já se pacificou e
reconciliou, não haveria nenhuma razão de o Estado intervir em um
processo resolvido. Essas manifestações demonstram que tudo isso é
falso, uma mentira, a reconciliação foi extorquida. A própria Lei da
Anistia é um exemplo claríssimo: foi votada só por membros do partido do
governo. A oposição não se reconhecia de no projeto. Que tipo de acerto
é esse? Conseguiram extorquir a reconciliação, e querem fazer passar a
ideia que ela resultou de ampla negociação por debate. Sem contar que as
instâncias de justiça de transição, no mundo inteiro, são completamente
contrárias à de uma anistia autoconcedida. Os militares concederam
anistia para si mesmos. Isso é, em qualquer situação, uma aberração
jurídica.
Você acha que o fato de isso aparecer no momento que o estado
brasileiro está se organizando para instaurar uma Comissão da Verdade
revela um desconforto?
Safatle: É uma maneira de pressionar o debate,
tentar impedir que a Comissão da Verdade seja uma farsa, como tudo
indica que pode ocorrer. É uma comissão esvaziada, tem apenas sete
membros. Vai operar sem poder de mandar material para a Justiça, pois, a
princípio, sua função é descobrir o que realmente aconteceu. Essa é uma
questão importantíssima: não sabemos o que aconteceu. “Existem
quatrocentos e poucos mortos”. Quem disse que foram quatrocentos e
poucos? Isso foi o que a gente conseguiu descobrir.
Num processo de Comissão da Verdade, os crimes vão aparecendo. Quem
nos garante que não aconteceu no Brasil algo como na Argentina:
sequestro de crianças, essa brutalidade que é, para mim, o pior dos
crimes. Entrega-se os filhos dos torturados para os torturadores.
Corta-se a possibilidade de memória da dor. Esse lado maquiavélico da
ditadura argentina coincide com a pior experiência do nazismo. Primo
Levi dizia que a pior frase que ouvira, quando estava no campo de
concentração, era a de um oficial nazista: “tudo o que a gente fez é tão
inacreditável, que ninguém vai ouvir ou acreditar no que você disser. E
a gente vai apagar todos os rastros”.
Você percebe uma mudança na forma, na estética dos esculachos para os movimentos na época da ditadura?
Safatle: Com certeza. Você tem a identificação clara
de um indivíduo e uma pressão, um movimento claro de desprezo. É um
recado: “você pode conseguir segurar algumas coisas na imprensa e
escapar de tudo, menos do o desprezo social”. É completamente distinto
das manifestações que ocorreram no período militar, de luta contra um
aparato repressivo. Temos agora consciência de como o reconhecimento
social é central na vida política. Retira-se o reconhecimento social ao
dizer: “Você não pode ser um cidadão de plenos direitos. Você é um
criminoso”.
Você enxerga uma relação entre a mudança de ativismo no Brasil e o movimento Occupy, que propõe uma nova forma de se manifestar?
Safatle: Há algo em comum: todos estes movimentos
são feitos à margem de partidos. As estruturas partidárias – pelo menos
as grandes – não têm mais força alguma parra mobilizar as pessoas. E os
pequenos partidos cobram caro pela mobilização: um tipo de adesão que
acredito que boa parte dos jovens não está disposta a dar, pelas
melhores razões. Eles não querem virar instrumentos para uma lógica
partidária. Essas mobilizações se fazem em torno de temas: você se
organiza para certos objetivos, cria estruturas ou fóruns ligados a
eles; depois, eles se dissolvem. É bem provável que isso seja cada vez
mais utilizado.
O Occupy forneceu um modelo para este tipo de processo. Mas… o que
eles conseguiram? Francamente, não é esta a questão. O ponto de vista
por trás de tal pergunta é muito rasteiro. “ – Deu um resultado logo em
seguida? – Não. – Então, não deu resultado algum”.
Não faz sentido: às vezes os resultados precisam de anos. Um primeiro
movimento produz um desdobramento aqui, outro ali… Lá na frente, anos
depois, você vai enxergar resultados mais concretos. Essa visão de ato e
reflexo, bate aqui e vê se acontece alguma coisa ali, é a antipolítica
por excelência. Acho que os movimentos foram muito bem-sucedidos. Eles
tensionaram um acordo que parecia intocável, forneceram o modelo de um
processo de mobilização e isso não terminou.
No Chile há, até hoje, grandes manifestações sobre a educação, 400
mil pessoas nas ruas contra o governo, por uma escola pública de
qualidade. O processo é mesmo lento, ninguém ache que vai conseguir
modificar o tabuleiro do xadrez do debate político de um dia para a
noite, mas toda grande caminhada começa com um passo – e ele foi dado.
Penso numa frase de Deleuze, segundo a qual os jovens necessitam muito ser motivados. Nossa geração pede isso. Você não acha que falta uma noção maior do que tudo isso representa?
Safatle: Isso é muito normal, porque tivemos um
esgotamento das grandes explicações. Não porque estivessem completamente
erradas, mas estavam parcialmente erradas. Não deram conta de uma série
de processos ocorridos nos últimos vinte, trinta anos. É normal que
você precise reconstruí-las agora, em novas bases. Aquilo que um dia
Jean-François Lyotard chamou das grandes metanarrativas. Tem um lado
certo e um errado, da crítica que fazia. Ele disse que as grandes
metanarrativas, a ascensão proletária, o movimento revolucionário, a
teleologia histórica, isso tudo era um grande equívoco.
Eu diria que não foi um pequeno equívoco. Você não pode abandonar
perspectivas de largo desenvolvimento histórico. Do contrário, os
acontecimentos ficam completamente opacos, você torna-se incapaz de
enxergá-los. Os fatos parecem vir no ritmo do acaso, da completa
contingência.
No entanto, existe o espaço da contingência. Ou seja, há
acontecimentos completamente imprevisíveis, que exigem uma reformulação
ampla dessa perspectiva de análise histórica. Isso não aconteceu. Eu
diria que uma tarefa atual é compreender o lugar da contingência no
interior de uma dinâmica onde a necessidade vai se construindo. Ninguém
enxerga muito bem o que está acontecendo, isso só é possível depois. Em
certos momentos da história, algumas pessoas conseguem mobilizar mais e
dizer: “vejam, existe uma abertura, um desfiladeiro. A gente consegue
passar por aqui”.
Falta acreditar que os processos abertos não necessariamente terminam
em catástrofe. A gente absorveu muito essa ideia: se quisermos grandes
mudanças, provocaremos catástrofes. Segundo tal lógica, só estaríamos
seguros no presente – por mais que o detestemos e o julguemos
insuportável. Espero que esse raciocínio desapareça o mais rápido
possível. Ele expressa a cultura do medo: você não projeta nada para
frente. Você se rende ao presente.
Nos momentos de crise, há tanto busca de novos referenciais, quanto retorno do autoritarismo. Num país como o Brasil, em que as correntes conservadoras são muito fortes, não há risco de que esta segunda posição prevaleça?
Safatle: Essa é uma luta que existe no Brasil hoje.
Nosso debate político é hoje cultural. Os projetos econômicos são mais
ou menos iguais. Existem distinções, mas não são enormes, reais. Ninguém
prega grandes reformas. Nenhum partido importante sugere: “vamos fazer
uma democracia plebiscitária”. Há um grande consenso.
Onde está o debate político? Está no campo da cultura, dos costumes,
dos hábitos. O aborto virou um dos temas mais importantes do Brasil.
Casamento homossexual, todos os outros problemas ligados à modernização
dos costumes.
Isso tem um lado bom. A gente está brigando por formas de vida
distintas. Mas isso também demonstra que o debate centrado na cultura
sempre tocou muito mais os jovens e sempre é um debate da esquerda.
Hoje, há uma direita cultural, um pensamento cultural de direita forte,
conservador, que consegue mobilizar camadas da juventude. Julgo isso
algo muito grave, mas lembro que é característica de todos os processos
históricos ricos: a juventude dividindo-se ao meio. Há uma ala
conservadora, outra progressista. Na época da ditadura militar, esse
processo era muito claro.
A França viveu uma eleição agora. Um partido de extrema-direita ficou
em terceiro lugar – e em primeiro, nos votos dos jovens entre 18 e 25
anos. Por que? Eles trazem questões culturais: imigração; nossos
valores; nossa forma de vida; nossa religião contra a religião
“atrasada” dos “outros. São debates que estão, de uma maneira ou de
outra, chegando no Brasil. A gente precisa se preparar para isso,
também. Para uma divisão que vai ocorrer, de maneira cada vez mais
forte. Não há como escapar dela.
Você conseguiria apontar quais são alguns agentes dessa direita cultural?
Safatle: Existe uma proliferação de blogues de
extrema-direita no Brasil, que a juventude lê. São colunistas de jornal,
que se assumem claramente como conservadores. Isso não deve ser
negligenciado: é um fenômeno que veio para ficar.
Significa o quê? Que o debate cultural deve ser feito com toda a
força. A discussão sobre a memória é um aspecto decisivo. Que tipo de
sociedade queremos? Uma sociedade que acredita que, esquecendo crimes do
passado, você tem um presente melhor? Uma sociedade que tem medo de
fazer memória? Onde você publica um artigo sobre a ditadura na internet,
e surgem 150 pessoas comentando como era fantástica a vida naquele
tempo, como pelo menos não tinha corrupção?
Há um preceito liberal que se chama “Direito de Resistência”. Não
está em Lênin, mas em Locke, que era a favor do tiranicídio. Dizia: “se
um tirano usurpa os seus direitos, as liberdades individuais e as
liberdades sociais, ele merece a morte”. Isso está também no Rousseau –
ou seja, na tradição liberal do pensamento político. Se algumas pessoas
têm a coragem de usar a famosa teoria dos dois demônios,segundo a qual
havia terroristas de esquerda e de direita, elas colocam-se aquém da
perspectiva liberal de política.
Que tipo de sociedade essas pessoas procuram realizar no presente?
Penso que não é mais possível admitir mais esse tipo de situação. Eles
querem dizer que, mesmo numa ditadura, a violência contra o Estado não é
aceitável. Para mim, é uma das proposições mais antidemocráticas que se
possa imaginar. Na década de 1920, greve era um crime. Mas foi graças a
esse crime que os direitos trabalhistas foram universalizados.
Uma esquerda mais clássica, organizada em partidos, fala numa
disputa entre hegemonia e contra-hegemonia – e sugere disputar
instituições como a mídia, o governo, o parlamento. Este tipo de opinião
pode enfraquecer os movimentos da juventude que procuram uma saída
não-institucional e novas formas de política?
Safatle: Acho que não – e é um ótimo tema. Há
momentos em que você precisa saber como se organizar institucionalmente.
A Primavera Árabe demonstra isso claramente. Começou, sempre, com
movimentos jovens: na Tunísia, diplomados desempregados; no Egito, o
movimento 6 de Abril, composto por jovens de várias tendências
políticas. Conseguiram resultados imediatos mas, na hora de gerir o
processo, não existia uma estrutura institucional, uma organização. Quem
colheu todos os frutos do processo foram os partidos islâmicos, mais
organizados e com capilaridade popular.
Qual o modelo de organização para grupos que não admitem o partido
como a figura clássica de organização? Uma nova estrutura política?
Frentes mais flexíveis? É algo que precisaremos, em algum momento,
responder. Do contrário, todas as estruturas institucionais serão
dominadas por aqueles que já sabem operá-las. E elas não vão desparecer.
O Estado, as eleições, os sindicatos não vão desaparecer.
Novas instituições poderiam superar as que existem agora?
Poderíamos imaginar a fundação de um novo Estado e uma nova forma
sociedade? Ou é muita pretensão?
Safatle: Sempre fui firmemente contrário ao slogan
“mudar o mundo sem tomar o poder”, de John Holloway. Os donos do poder
agradecem: se tal postura prevalecer, irão atrapalhar todas as nossas
tentativas de mudar o mundo: não conseguiremos fazer nada.
Não existe política completamente à margem da estrutura
institucional, da mesma maneira como não se pode fazê-la só dentro das
instituições. Há uma região limítrofe, que é necessário saber operar.
Precisamos ir além do pensamento binário, do “ou totalmente fora, ou
totalmente dentro”. Há algo no meio do caminho, que você opera
pressionando de fora. Isso, ainda não conseguiu constituir. Só há um
grupo que conseguiu fazer isso: os lobistas. Os lobbies estão
semi-institucionalizados. Operam de fora, forçando a estrutura
institucional. É necessário uma espécie de lobby popular, que seja
contraponto ao lobby econômico.
Pensei no texto “O que é ser contemporâneo?”, do Giorgio
Agamben. Ele sugere reconhecer a época em que vivemos, assumir que ela
tem instituições, e ao mesmo tempo negá-la, querer deixá-la. É isso que
inspira a juventude?
Safatle: Sim, com certeza existe essa região
limítrofe que é necessário saber operar. Volto a insistir: o Estado, os
partidos e o parlamento não vão desparecer. No entanto, você pode operar
as estruturas políticas em outras chaves. Forçar a democracia
plebiscitária, esvaziar atribuições do parlamento, transferir decisões
para a população, ativando processos de democracia direta.
Qual é a estratégia de desmobilização? É dizer: “ou você está dentro
do Estado de Direito, ou você está fora; ou aceita a estrutura
institucional tal como ela é hoje, ou está completamente fora e portanto
faz apologia da ditadura”. Não existe isso.
Você pode perfeitamente admitir que algumas estruturas vão continuar
e, ao mesmo tempo, construir processos de transferência direta de poder.
Esse me parece o grande desafio ao pensamento político atual. Como a
gente constrói, como dá figura para as demandas de democracia real? Há
muitos exemplos. Um deles: a Islândia foi um dos primeiros países a
mergulhar na crise econômica europeia. Bancos islandeses tomaram
dinheiro emprestado nos Países Baixos e Inglaterra. Quando quebraram, a
Inglaterra e os Países Baixos apresentaram a conta ao governo islandês:
os bancos eram privados, mas a conta foi para o Estado. O parlamento se
dobrou, aceitando a conta bilionária. A população – pequena, em torno de
250 mil habitantes – teria de pagar durante cinquenta anos a dívida dos
bancos.
Bem, havia um presidente, um pouco mais sensato, que lembrou uma
regra da Constituição islandesa, segundo a qual os presidentes têm o
direito de consultar a sociedade, antes de promulgar leis. Convocou-se
um plebiscito: o povo foi chamado a votar se queria ou não pagar a
dívida. Pode-se imaginar o terrorismo: em caso de não-pagamento,
dizia-se, o país iria converter-se em pária internacional.
Mas o povo disse não. Hoje, a Islândia está melhor do que todos os
outros países que entraram na crise à mesma época: Portugal, Espanha,
Grécia, Irlanda. Isso ensina que é possível politizar a economia, tirar
poderes indevidos. Alegar que um parlamento sozinho não pode decidir uma
questão tão central como essa. Um parlamento é composto de pessoas que
têm as eleições pagas por bancos… O parlamentar deve para o banco: há
uma nova eleição daqui a quatro anos e ele sabe que, se votar contra,
não tem mais financiamento, não vai ser reeleito. Como uma pessoa dessas
pode tomar esse tipo de decisão?
Mas no caso da Espanha, por exemplo, os indignados não conseguiram construir alternativas como essa. O movimento caminha nessa direção?
Safatle: Na Islândia, já havia o mecanismo
institucional. Tiveram a sorte de contar com um presidente um pouco mais
sensato, que deu realidade ao processo. Mas é um dado extremamente
interessante, porque pode ser transformado em bandeira: “quero que na
Espanha a lei islandesa seja aplicada”. É possível fazer o mesmo em
várias outras situações. Você tensiona o debate. Os conservadores
reagirão: “a população não pode decidir sobre essas coisas, são muito
complexas, só tecnocratas têm que decidir”.
“Mas, então, fala, fala na nossa frente: só tecnocrata de banco vai
decidir o que vão fazer com o nosso dinheiro?” Vamos ver o que vai
acontecer. Este é um recurso muito importante: você obriga o poder a
falar os seus absurdos, que ele normalmente não tematiza. Todo mundo
sabe que quem decide é tecnocrata, mas ninguém fala. Quando certas
coisas são ditas, algo acontece, mesmo que exista um acordo tácito entre
as pessoas. Por isso, uma questão política central é obrigar o poder a
falar, colocá-lo contra a parede.
*Estudantes de jornalismo da PUC-SP e colaboradores de Outras Palavras
Leia também:
Jovens vão às ruas e nos mostram que desaprendemos a sonhar. AQUI
Edgar Morin | 1968-2008: o mundo que eu vi e vivi AQUI
Sopro de primavera antes da festa da Fifa
A história se repete. Em Porto Alegre, a primeira reação da parcela
graúda da imprensa foi desqualificar os protestos contra o aumento da
passagem de ônibus e inflacionar os episódios de vandalismo, ignorando a
motivação dos que se manifestavam. Só que a cada novo ato havia mais
gente na rua, mesmo com o aumento da repressão policial. Até que a
parcela graúda da imprensa resolveu tentar entender por que os jovens
estavam se manifestando, para não ficar falando sozinha. Já era um pouco
tarde.
Em São Paulo, na noite desta quinta-feira, vivia-se ainda a fase em
que a parcela graúda da imprensa fala sozinha e mostra que não enxerga
um palmo a frente do nariz. A Polícia Militar instala o caos, prende
pessoas por porte de vinagre, agride jornalistas, atira balas de
borracha contra quem está ajoelhado pedindo calma. Mijam sobre as
pessoas e a imprensa diz que é chuva. Mas o protesto foi maior, a
população se indignou com a violência e a cobertura já mudou.
Os discursos foram parecidos, repetiram-se as polêmicas sobre os
limites dos protestos, como se fosse possível organizá-los como se
organiza uma quermesse. Em Porto Alegre, a Justiça acabou determinando a
suspensão do aumento, a prefeitura acatou a decisão e as manifestações,
em parte, arrefeceram. Em São Paulo pode acontecer o mesmo, mas isso já
não é mais importante. O alto custo e a má qualidade do transporte
coletivo nas grandes cidades viraram mero detalhe nessa história.
As manifestações, que se iniciaram pela causa específica do aumento
da tarifa do transporte coletivo, têm como pano de fundo esse processo
que vai tornando as cidades cada vez mais hostis para as pessoas.
Gentrificação, elitização, higienização, cada um nome dá o nome que
quiser. As cidades estão se tornando lugares onde trafegam carros, se
erguem empreendimentos imobiliários, os pobres são mandados para longe e
tudo o mais é proibido. As pessoas estão se sentindo sufocadas e a
reação óbvia é que cada vez mais estão indo para as ruas – a maior
arquibancada do Brasil.
A truculência com que agiu a Polícia Militar de São Paulo veio
mostrar que o Estado de exceção não é um exagero ideológico. Ele ficou
escancarado, como se fosse preciso, na detenção e agressão
desavergonhada contra jornalistas (em tese, a polícia teria mais pudores
em agredir a imprensa, mas não). Esse Estado de exceção faz,
inclusive, com que as manifestações ganhem novo significado. E tudo isso
tem a ver com a Copa do Mundo e com a Copa das Confederações, que
começa neste fim de semana.
Porque a organização brasileira para estes megaeventos esportivos não
é nada mais do que um catalisador deste processo de exclusão violenta
que vem ocorrendo nas grandes cidades e sufocando as pessoas. E que vem
sendo utilizada como pretexto para a limpeza social e para a
implementação de várias medidas que devem ser chamadas pelo que são:
autoritárias.
A tentativa de proibir o acarajé e as festas juninas foi uma
brincadeira de criança. Há coisas muito mais graves avançando a passos
largos em esferas oficiais. Deve ser votado até agosto deste ano um projeto de lei que pode tipificar ações de movimentos sociais como terrorismo – vinagre, então, será considerado arma química. Outra proposta em tramitação no Senado
quer definir alguns tipos de crimes que não poderão ser cometidos
especialmente durante o período da Copa, incluindo “limitações ao
exercício do direito de greve”. Em Minas Gerais, a Justiça já proibiu a realização de dois sindicatos nestes dias de Copa das Confederações. Tudo para o país ficar pronto para a “Copa de todos”.
Por isso, não enxerga um palmo à frente do nariz quem continua
achando que os manifestantes que estão aparecendo nas capitais
brasileiras são vândalos sem nada melhor para fazer ou que estão
simplesmente protestando pela redução na tarifa do transporte coletivo.
As manifestações já não são mais – se é que um dia foram – só por causa
da passagem. O que já foi chacota hoje é virtude: protesta-se contra
tudo que aí está. Seja na Avenida Paulista, seja nas vilas removidas.
Contra o aumento, contra remoções forçadas, contra a derrubada de
árvores. As pessoas estão se manifestando, basicamente, pelo direito de
viver na cidade. E quase sempre alheias aos partidos, que, assim como a
parcela graúda da imprensa, não sabem o que acontece nem na própria rua.
Qualquer semelhança com o que ocorre em outras partes do mundo não é
coincidência. A indignação, sobretudo da juventude, aumenta na proporção
inversa da falência da política tradicional, que virou uma despachante
de interesses privados incapaz de responder aos problemas da
população. Há um sopro de primavera no Brasil. E até a Copa, tenham
certeza, vai ser maior.
Daniel Cassol
Foto: Mídia Ninja
PM reprime com violência manifestação contra aumento dos transportes públicos
por
publicado
14/06/2013 13:28
O
analista político Paulo Vannuchi, membro da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, da OEA, fala sobre as manifestações contra o aumento
do transporte público que se espalhou pelo Brasil.
OUÇA AQUI
"Se é verdade que o Brasil melhorou, não resta dúvida, quem quiser comparar estatísticas e mesmo pesquisas qualitativas encontrará as razões e como isto aconteceu e acontece.
OUÇA AQUI
"Se é verdade que o Brasil melhorou, não resta dúvida, quem quiser comparar estatísticas e mesmo pesquisas qualitativas encontrará as razões e como isto aconteceu e acontece.
A questão é a que preço, as
custas de quem e de como os efeitos colaterais do atual modelo de
desenvolvimento e os limites do crescimento penaliza os mais pobres, como
também negros, idosos e até mesmo a juventude.
Querem um exemplo neste último
caso, a quantidade de jovens que estão saindo das faculdades particulares sem
um melhor preparo e sem empregos qualificados a vista, além dos limites
estruturais do atual sistema capitalista cuja base de lucro, está cada vez mais ancorada no aumento da
tecnologia e na consequente diminuição de postos de trabalho.
Para muitos, esta questão não incomoda porque estão com seus empregos e
bem estar garantidos. Trago o exemplo de uma pessoa conhecida que trabalha na
floresta amazônica, em uma das grandes empresas da construção civil e é contra as manifestações contrárias a usina
de Belo Monte, por razões óbvias.
Todavia, há aqueles que não estão
empregados nestas condições ou mesmo aqueles que estão, mas que não concordam
com os rumos que este novo ciclo de desenvolvimento do Brasil está tomando,
inclusive repetindo erros do passado.
O caso do incentivo a produção e
aquisição do automóvel é exemplar, se gera empregos e impostos a curto prazo, a
médio e longo prazo gera o caos e a violência no trânsito, além do prejuízo a
qualidade do meio ambiente.
Não é um desafio fácil para
governantes e legisladores, em especial os de esquerda , porque se
exige mais visão e ação sistêmica e menos truculência para equacionar
as
pressões de setores mais imediatista da sociedade que reclamam soluções
urgentes como
emprego, por exemplo, ao mesmo tempo que se tem que lidar com as
pressões de
setores excluídos e marginalizados que sentem o peso de um
desenvolvimento
desigual e que solicitam outras forma de organizar a sociedade ou
outros mundos possíveis.
Sobre “Outros Mundos Possiveis”, a
história está mostrando que conferências, rodas de diálogo, oficinas e
etc, realizadas nos espaços do Fórum Mundial e em outros, são insuficientes, e aí,
as manifestações de rua se mostram
necessárias.
Por outro lado, o desafio maior
mesmo e dar respostas a questões que nem mesmo manifestações de rua dão
conta, tal a complexidade do emaranhado de interesse em jogo, ás vezes
em conflito, ás vezes paradoxalmente convergentes.
A conclusão é, problemas ou tempos difíceis, exigem mais de nós, de todos nós."
(Zezito de Oliveira)
"É bom, perceber a capacidade de setores da população em identificar
e se manifestar contra outros atores que
sustentam o atual modelo de desenvolvimento injusto, excludente e predador, além daqueles mais visíveis
e evidentes.
O debate que demoniza os “políticos” é pobre, reducionista,
limitado, meio-verdadeiro, já que os “políticos”
são eleitos pelo povo e este pensamento acaba
alimentando projetos políticos fascistas ou nazistas.
A maiorias dos programas jornalísticos,
inclusive a maioria dos programas
policiais de rádio e tv, são responsáveis pela força de idéias que sustentam
muitos mandatos de gente com pensamentos e atitudes bem próximo ao fascismo ou ao
nazismo.
Conceitos e atitudes da velha idade média, contam com o beneplácito da mídia comercial e religiosa,
daí a expressão “nova idade mídia”.
Com isso, quero dizer que sou
contra a liberdade de imprensa, nananinanão. Pelo contrário, sou a favor da
mais ampla liberdade, com a abertura de concessões de rádio e tv para quem
pensa e constrói outros mundos ou outras possibilidades de ser e conviver.
Desde, é claro, que considerem alguns princípios éticos e
democráticos elementares, os quais nem sempre, são respeitados por muitos programas de rádio
e TV. Ao contrário do que muitos afirmam , o que queremos é mais democracia, democracia de
muitos para muitos e não de poucos para muitos."
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