O Orçamento Participativo foi uma invenção que tornou Porto Alegre
uma cidade conhecida internacionalmente. Criado a partir da eleição de
Olívio Dutra para a prefeitura da capital gaúcha, em 1988, o OP
enfrentou muitas dificuldades no início, mas logo se tornou uma
experiência de participação popular que é referência até hoje. Uma das
responsáveis pela criação dessa política foi Iria Charão. Militante do
movimento comunitário, em 1988 trabalhava no Hospital da PUC quando foi
convidada por Olívio Dutra para uma tarefa: cuidar da participação
popular. Ela aceitou o desafio e passou a trabalhar na construção do OP.
Em entrevista ao Sul21, Iria Charão fala sobre esse processo de
construção do Orçamento Participativo, dos problemas e da desconfiança
inicial, da criação de uma política pública que se tornou, acima de
tudo, um espaço construtor de cidadania, solidariedade e conhecimento.
Segundo ela, uma experiência que começou praticamente do zero:
Tem muita gente que hoje escreve sobre aquela época e diz que nos
baseamos nisto ou naquilo, na experiência de Pelotas com Bernardo de
Souza, ou na experiência de uma cidade de Santa Catarina. Vou dizer com
toda franqueza: eu não me baseei em absolutamente nada disso. Eu apenas
recebi uma tarefa do partido pra fazer.
Iria Charão segue participando das assembleias do OP em sua região e
vê com preocupação a transformação do espaço em encontros meramente
reivindicatórios. O OP, diz ela, foi uma grande escola popular:
O conhecimento foi fazendo com que as pessoas se abrissem mais,
fossem mais solidárias e enxergassem que outras regiões da cidade
precisavam muito mais do que a sua naquele momento. Esse é um legado
importante que infelizmente está morrendo agora, pois está reinando o
“farinha pouca, o meu pirão primeiro”.
SUL21: Quando e como o Orçamento Participativo entrou na tua vida?
Iria Charão: Em 1988, quando ganhamos a eleição para
a prefeitura de Porto Alegre, tínhamos no programa de governo o
compromisso de que o povo participaria das decisões do governo
municipal, de que haveria participação para a elaboração do orçamento.
Mas não era nada muito desenvolvido. Eram meia dúzia de frases que
falavam da importância da participação do povo, mas nada mais que isso.
Não tínhamos uma fórmula nem um método de como iríamos fazer. Naquela
época, todos nós acreditávamos no socialismo. A gente tinha um grupo
idealista e sonhador que achava que iria mudar o mundo a partir dali.
Ganhamos a eleição e aí o desafio era fazer.
SUL21: O que você fazia na época?
Iria Charão: Eu trabalhava no Hospital da PUC. O
Olívio me chamou para trabalhar no governo e eu disse para ele: o que é
que eu posso fazer, não entendo nada de administração. Ninguém entendia,
na verdade. Era a primeira experiência. Nós fomos cobaias daquela
administração. Ele me disse que me queria cuidando da participação.
Vamos lá, então, eu disse. Era assim mesmo, meio à moda diabo. Eu e o
Gildo Lima fomos trabalhar na coordenação de relações com a comunidade e
a Geci Prates ficou cuidando da parte sindical. Tem muita gente que
hoje escreve sobre aquela época e diz que nos baseamos nisto ou naquilo,
na experiência de Pelotas com Bernardo de Souza, ou na experiência de
uma cidade de Santa Catarina. Vou dizer com toda franqueza: eu não me
baseei em absolutamente nada disso. Eu apenas recebi uma tarefa do
partido pra fazer.
Em 1989, o Clóvis Ilgenfritz era o Secretário do Planejamento e era o
Planejamento que fazia o orçamento municipal. O Clóvis ficou
encarregado disso e eu acompanhei as primeiras tratativas, desde o
início. Como fazer, como começar? Nós reunimos as lideranças
comunitárias para expor a elas qual era a nossa vontade. A gente já
vinha fazendo isso no cotidiano. Havia uma prática na prefeitura até
então, pela qual as lideranças marcavam audiência com o prefeito. Tinha
associação de moradores à revelia. Chegava a ter duas em uma mesma rua.
Nós tomamos a decisão de que, ao invés de atender os presidentes de
associações de bairros, nós iríamos ao encontro das pessoas. O meu
trabalho aí foi dizer isso para as pessoas. Em apenas um mês e meio de
trabalho eu tinha recebido umas 250 solicitações de audiências com o
prefeito.
Naquela época, as associações de moradores eram todas registradas na
prefeitura. O prefeito é que assinava a prestação de contas das
associações. Era um absurdo. Nós acabamos com isso e, no início, as
pessoas não gostaram muito. Havia mais de 200 associações de moradores
em Porto Alegre. Nós pedimos que eles reunissem as pessoas que o
prefeito iria falar com elas na comunidade. Com essa medida, muitas
agendas caíram pois havia muita associação de fachada e aqueles que não
conseguiam reunir povo para receber o prefeito. Dissemos então que o
povo iria deliberar sobre o orçamento, que poderia apresentar demandas e
que essa seria uma nova forma de relacionamento do governo com a
população.
A nossa primeira proposta de orçamento foi apresentada na Câmara num
prazo já meio limite. Eu vinha do movimento comunitário, de mobilizações
de ocupações de prédios públicos, essas coisas. Então a gente conhecia
muitas lideranças comunitárias e as chamamos para conversar sobre o
orçamento. Aí apresentamos uma proposta que foi absolutamente detonada
por essas lideranças. Acharam que era uma proposta goela abaixo, que
dissemos que iríamos discutir com o povo e não estávamos fazendo isso…
SUL21: Era uma proposta de orçamento?
Iria Charão: Não, era uma proposta de processo de
discussão do orçamento. Até hoje eu costumo dizer que ele é um processo,
que não tem uma forma pronta e acabada. Ele vai se remodelando no
caminho. O pessoal não gostou muito, mas a gente colocou que havia o
problema do prazo, do tempo, e eles aceitaram, sob a condição de que na
próxima vez seria melhor discutido. Aí nós fomos para as regiões. Na
época, Porto Alegre tinha uma regionalização absurda. As regiões eram
imensas.
Nós preparamos uma forma de apresentar a nossa proposta, comparando o
orçamento público com o orçamento doméstico, o salário com os impostos.
Não era só um processo onde as pessoas iam dizer “quero calçar minha
rua, melhorar minha escola e o transporte”; para nós era uma questão de
entendimento e de protagonismo.
No início, as pessoas chegaram um pouco desconfiadas, pois a relação
com a prefeitura sempre tinha sido clientelista até ali. Era uma relação
direta. Muitos presidentes de associações eram cabos eleitorais. As
pessoas brigavam com o vizinho e fundavam outra associação, ganhavam
“ajuda” do governo, papel, caneta, essas coisas. Era um verdadeiro
balcão de negócios.
Para mudar esse quadro, nós decidimos ir para as ruas e ouvir as
pessoas para montar um processo de participação. Nosso primeiro erro
teve a ver com a nossa vontade imensa de mudar. Nós dissemos para o
povo: vocês vão dizer o que precisam. A periferia naquela época era
completamente abandonada, havia muito esgoto a céu aberto. Na campanha
eleitoral nós dissemos que o transporte seria prioridade. Na verdade,
quando fomos ouvir as pessoas, o transporte não se manifestou como
prioridade. Apareceu em terceiro lugar. A grande prioridade da população
era saneamento básico.
Recebemos uma avalanche de demandas. As pessoas precisavam de tudo e
não tinham muita noção do que era competência municipal, estadual ou
federal. Então as coisas eram muito umbilicais, muito a “minha rua”.
Fomos trabalhando esse conceito, reconhecendo que a rua de cada um é o
lugar mais importante – e eu acredito nisso até hoje -, mas que ela faz
parte de um bairro, que faz parte de uma região, que faz parte de um
Estado, que faz parte de um País, que faz parte de um continente que,
por sua vez, faz parte do planeta. Portanto, precisamos de muitas coisas
no cotidiano, mas temos que pensar que para mudar essas coisas não
podemos fazer isso só na nossa rua, precisamos levar em conta um
contexto mais amplo que envolve questões como a do meio ambiente que
atinge hoje todo o planeta. Na época as pessoas não se importavam muito
com isso.
Esse processo de participação era também uma grande escola popular,
de aprendizado, protagonismo e de construção de uma grande rede de
solidariedade entre as pessoas. O conhecimento foi fazendo com que as
pessoas se abrissem mais, fossem mais solidárias e enxergassem que
outras regiões da cidade precisavam muito mais do que a sua naquele
momento. Esse é um legado importante que infelizmente está morrendo
agora, pois está reinando o “farinha pouca, o meu pirão primeiro”.
Aquela rede de solidariedade que se formou nos primeiros anos está um
pouco esquecida.
SUL21: Então, no início, havia uma certa desconfiança entre a população que rapidamente evoluiu para a confiança?
Iria Charão: Na verdade, a credibilidade do
Orçamento Participativo só virá no segundo semestre de 1990. É bom não
esquecer que estamos falando da aplicação de 1%, 2% do orçamento do
município, o que é uma gota d’água no oceano. Só para dar um exemplo,
quando tratamos da pavimentação, na hora de dividir os recursos
disponíveis dava 500 metros de pavimento para cada região. Aí foi
preciso definir prioridades. Vamos pavimentar onde? E as pessoas
começaram a escolher: de frente à parada do ônibus, pois senão o ônibus
não sobe em dia de chuva; na frente da escola ou na frente do posto de
saúde e assim por diante. As pessoas começaram a entender que não tinha
dinheiro pra tudo. Isso foi muito explicado no primeiro ano. De onde vem
o orçamento municipal, quais os impostos, por que era importante pagar
imposto. O IPTU representava cerca de 8% da arrecadação do município.
Então aos poucos fomos trabalhando essa questão do conhecimento,
falando como era importante a participação da população para ajudar a
criar novas políticas. Nós estimulamos muito o movimento organizado
neste período, as associações de moradores e alguns conselhos populares
que já existiam. A partir dali as pessoas multiplicavam o que recebiam
de conhecimento e de novas informações. O esquema que funcionava até
então era assim: o líder, que às vezes não era tão líder assim, detinha
toda informação, sabia como tramitar uma questão na prefeitura ou nos
gabinetes de vereadores, e não abria muito para outras pessoas se
apropriarem desse conhecimento. Havia algumas exceções, mas essa era a
regra. Com o Orçamento Participativo, as pessoas começaram a participar
de um novo processo que envolvia decisão coletiva.
Quando o nosso primeiro orçamento foi entregue, em 1989, as pessoas
foram para a Câmara para evitar que os vereadores fizessem emendas e
destruíssem o que elas tinham construído junto com o governo municipal.
Aí houve uma polêmica que, para nós, já era uma questão vencida
envolvendo a relação entre a democracia representativa e a democracia
participativa.
SUL21: Os vereadores não gostaram muito da novidade…
Iria Charão: Os vereadores berraram. Na época, o
Olívio foi para a Câmara antes de iniciar o processo do OP e convidou
todos os vereadores a participar do mesmo. Mas nós tínhamos oposição até
interna, dentro do PT, o que mais tarde iria se repetir também em nível
estadual e federal. O processo das conferências das cidades, que eu
coordenei em nível federal, também enfrentou essa resistência interna.
De qualquer maneira, alguns vereadores do PT ajudaram bastante dentro de
suas comunidades. Outros que eram contra no início foram mudando de
posição. As pessoas começaram a se perguntar: como é que um cara do PT
vai ser contra o Orçamento Participativo?
SUL21: Desde o início esse processo foi batizado de Orçamento Participativo?
Iria Charão: Sim. Hoje, eu prefiro trabalhar esse
processo como participação popular nas políticas públicas do governo,
pois se criaram políticas públicas com a participação popular. Se
batizamos só como “orçamento” isso restringe o processo à pavimentação
de ruas, a instalação de esgoto e a outras obras, quando, na verdade,
trata-se de algo muito mais amplo. O OP criou e estimulou cidadania, não
foi só um processo de escolha de obras na minha rua. As pessoas foram
se modificando, criaram-se novos hábitos na relação da população com o
governo municipal. O que ajudou muito é que o prefeito acreditava muito
nessa ideia, e segue acreditando. Quando as pessoas vinham até ele por
outros meios para tentar conseguir coisas “por fora”, ele dizia que
havia um processo de discussão do orçamento e que era preciso ir até às
assembleias para fazer essa discussão. Então, o que eu falava para a
população era a mesma coisa que o prefeito dizia para as pessoas com
quem tinha contato em audiências. Havia uma grande sintonia e ele não
abria mão disso. Acho que isso ajudou bastante.
Quando saiu o nosso primeiro orçamento, o investimento era mínimo, em
torno de 2%, se não me engano. Não era nada. Era só vontade mesmo.
Muitíssima vontade e pouquíssimo dinheiro. Em função disso, é claro que
não conseguimos começar nada no ano seguinte. As pessoas começaram a
participar no início do ano e achavam que até o fim do ano suas demandas
estariam atendidas. Até entenderem que estavam discutindo um orçamento
que seria para o ano seguinte levou um tempo. As pessoas tinham pressa,
pois a demanda represada era muito grande. Como consequência dessa
demora, o processo do OP em 1990 foi um fracasso total de público. As
pessoas não foram e disseram que aquilo era uma enganação, que nada do
que tinham discutido estava sendo feito, etc. Quando houve a condição de
investimento, o governo buscou as demandas de 1989 que tinham sido
definidas pelas comunidades. Aí a situação se reverteu completamente. As
pessoas viram que o que tinham discutido estava começando a se tornar
realidade. Aí explodiu o processo. As pessoas passaram a acreditar, de
fato, no OP.
Na verdade, nem a população nem os militantes sociais que participam
de um processo como este, se dão conta do que está acontecendo no
momento. Só vão se dar conta depois que estão fazendo história. O que
nós estávamos fazendo era redesenhar a cidade. Se olharmos para essa
região aqui (rua Manoel Elias, perto da FAPA), a Protásio Alves era uma
faixinha, a Antônio de Carvalho idem, a Manoel Elias era o fim do mundo,
ninguém queria vir morar aqui, a faixa preta da Cavalhada também era
uma faixinha. Essas eram demandas do poder público. A gente discutia e
disputava com a população. A nossa obrigação era pensar a cidade
estrategicamente também, pensar a mobilidade urbana que na época não era
um tema muito discutido. Nós dizíamos era importante calçar as ruas,
mas também era importante garantir fluxo de trânsito. Assim, nós fizemos
o alargamento da Antônio de Carvalho, da Protásio, da Manoel Elias, a
Terceira Perimetral, a reforma do Mercado Público (já na gestão do
Raul). Tudo isso teve início lá no OP, onde discutimos que as demandas
que as pessoas traziam eram importantes, mas que algumas grandes obras
também eram.
Quando nós propusemos o aumento do IPTU, em 1990, as pessoas foram
para a Câmara de Vereadores defender o aumento. Naquele ano, a cidade
ganhou uma nova planta de valores e nós fizemos uma grande discussão
sobre a questão do IPTU. O Verle (João Verle) era o secretário da
Fazenda e foi para as assembleias explicar para a população como se
formava o orçamento, por que era preciso aumentar o IPTU e por que
muitas pessoas nem iam pagar o imposto. Porto Alegre era muito irregular
em termos de regularização fundiária. Ainda é, aliás, mas era muito
mais. Cerca de um terço da cidade era irregular e não pagava imposto.
Criou-se uma consciência entre grande parte das pessoas que participam
das assembleias que era necessário pagar imposto para ter a retribuição
nos serviços da cidade.
Para mim, o grande legado do Orçamento Participativo foi a
consciência que as pessoas adquiriram de que a cidade é sua, de se
apropriarem da cidade. Alguns hábitos mudaram. Até o governo Collares,
ninguém sentava nas escadarias da prefeitura na hora do almoço ou no
final de tarde. Tinha sempre guarda ali ou a prefeitura estava fechada e
não havia acesso livre. As pessoas começaram a se apropriar do espaço
que virou um “point” de final de tarde. Até chimarrão iam tomar ali.
Foram novos hábitos de apropriação da cidade que a participação trouxe.
Eu costumo dizer que os primeiros quatro anos do OP foram um trabalho
de terraplanagem, de preparo do terreno para plantar as sementes. A
gente sabia que nem todo mundo iria participar. Seria uma ilusão achar
que a cidade inteira iria se mobilizar para isso. Mas era importante que
as pessoas soubessem que esse processo estava acontecendo na cidade. O
próprio fato desse processo não ser institucionalizado por meio de uma
lei nos deu liberdade de promover mudanças e melhorias a cada ano.
Assim, aos poucos, fomos criando mecanismos de aprimoramento. Foi uma
criação praticamente do zero. Eu não conhecia nenhum modelo anterior. A
única coisa que eu sabia é que recebi a tarefa de cuidar da participação
popular.
Nós fomos criando a partir das necessidades que surgiam. Um exemplo
disso foram os ônibus com os conselheiros. Nós colocamos os conselheiros
do OP em ônibus e fomos conhecer a cidade. Por incrível que pareça, as
pessoas não conhecem a cidade onde moram. Elas conhecem a zona onde
moram e algumas áreas mais próximas. Eu fiz a proposta que foi aceita. A
gente dedicava um dia inteiro para isso. Um conselheiro da zona norte
falava dos problemas desta área para conselheiros da zona sul e assim
por diante. Foi aí que começou a rede da solidariedade. As pessoas
começaram a ver os problemas do outro e se dar conta que, muitas vezes,
era mais grave que o seu. Assim, abriam mão da sua demanda para aquele
ano e deixavam para o ano seguinte, para que outra demanda mais urgente
fosse atendida. Foi um processo de conhecimento da cidade e de
construção de uma rede de solidariedade. Isso não foi fácil. Houve muito
conflito. Não foi um processo cor de rosa.
SUL21: Hoje, você está trabalhando com alguma política de
participação popular? Qual sua avaliação sobre o atual estágio do
Orçamento Participativo?
Iria Charão: Eu participo do conselho local da
unidade de saúde do meu bairro e do conselho distrital de saúde. Eu vou
nas assembleias do OP na minha região. Sinto muita diferença. Eu tenho
reclamado pro pessoal do próprio movimento porque virou uma coisa muito
guetizada. Falei isso recentemente num painel da UFRGS para o qual fui
chamada. Estão criando regras que eliminam as pessoas e estão eliminando
a universalidade da participação.
SUL21: Que tipo de regras?
Iria Charão: Por exemplo, eu fui numa assembleia bem
cedo pois queria me inscrever para falar sobre a saúde. Quando cheguei
lá não consegui me inscrever, pois as inscrições tinham sido feitas 15
dias antes no fórum de delegados. Eu não participo do fórum de
delegados. Logo, quem não participa desse fórum não pode se inscrever
para falar na assembleia. Eu acho que essa regra encerra as pessoas em
guetos e impede que outras pessoas se interessem em participar e renovem
assim o processo todo. Não é possível que as pessoas vão para as
assembleias só para bater palma. Um dia desses, uma mulher veio pedir a
minha cédula para dizer em que eu tinha que votar. Fiquei muito
indignada. Pediu para a pessoa errada.
Enfim, as assembleias se tornaram uma coisa só reivindicativa. Tenho
acompanhado as assembleias da região Nordeste. Até tem bastante gente,
mas sempre são os mesmos que falam. Eu acredito que uma das coisas mais
importantes do processo do Orçamento Participativo é que as pessoas
possam ir lá e expor suas ideias, dizer o que pensam, abrir os seus
horizontes. Pelo que tenho visto, virou só uma coisa reivindicativa.
Neste sentido, ele retrocedeu. Desde o início, trabalhou-se muito para
ampliar o horizonte das pessoas, para que elas tivessem uma consciência
da cidade. Hoje o que vejo são as mesmas pessoas, cobrando e cobrando. É
um desfile de lamúrias. Isso acaba com o espírito do conhecimento, da
troca de experiência, o que ameaça acabar com todo o processo.
Tags: democracia participativa, Íria Charão, Olívio Dutra, OP, Orçamento Participativo, Porto Alegre
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Certa feita, conversando com um amigo educador/artista, que
reside na cidade de Olinda, em Pernambuco, sobre o modo de a esquerda
governar, ele externou para mim algumas preocupações referentes ao
modelo de gestão de muitas administrações progressistas que ele conheceu
e que se moldam facilmente à cultura política das oligarquias locais e
realizam, mesmo que de forma mais eficiente, uma gestão cuja prioridade
são apenas as grandes obras, os programas assistenciais e os shows com
grandes artistas ligados à cultura de massa, o que acaba lembrando uma
canção do Cazuza: “Um museu de grandes novidades” ou parafraseando Belchior: “Minha dor é perceber que apesar de tudo que fizemos, ainda somos os mesmos, “pensamos” e administramos a coisa pública como os velhos coronéis.”
E o meu amigo fez o questionamento porque, ocorrendo o término do mandato (sem reeleição), uma outra administração ligada a partidos conservadores, com inteligência e perspicácia pode fazer a mesma coisa: realizar grandes obras, investir em programas sociais e prosseguir na organização dos mega shows e, conseqüentemente, passar para a população a idéia de que não haverá necessidade de se votar na esquerda novamente.
Se na época não consegui imaginar isso como uma possibilidade real, decorridos alguns anos dessa conversa, reconheço que essa opinião é pertinente e esse texto foi escrito para ajudar na reflexão sobre o assunto, na linha de que tudo que é sólido se desmancha no ar e de que o que é novidade facilmente torna-se comum, e por isso todo indivíduo ou organização que deseja ser sempre considerada e reconhecida deve continuadamente buscar se aprimorar naquilo para que foi criada e facilitar as coisas para que novas descobertas e novas invenções possam ter lugar.
E isso só acontece num ambiente de autonomia e que favoreça condições e oportunidades para a construção e reconstrução subjetiva dos indivíduos .
Nesse sentido, considero duas questões primordiais. Em primeiro lugar, atenção especial para a mudança de valores e práticas de relacionamento político pautado nos antigos procedimentos da elite dominante, como o clientelismo, o paternalismo, o autoritarismo etc...
Em segundo lugar, atenção especial àquilo que aponta para a criação de sujeitos mais solidários, mais livres, mais ousados, àquilo que cria e dá sentido à realização plena das pessoas (refiro- me aqui à produção artístico/ cultural).
No primeiro caso se faz necessário (re)construir, fortalecer ou criar estruturas formais e informais de participação “real” da população nas decisões sobre os rumos do governo, como os conselhos, as conferências, as câmaras setoriais, os fóruns e as redes, além do incentivo e apoio à organização da sociedade civil através das ongs, e cooperativas. Assim, se viabilizaria um ambiente favorável à gestação de novas idéias e recursos para resolver ou atenuar velhos problemas, o que também pode garantir a criação de um antídoto para evitar o retrocesso de condução antidemocrática das decisões, a partir da eleição de partidos ligados às velhas elites dirigentes, após suceder-se um governo de esquerda.
No segundo caso, democratizar o acesso aos meios de produção artística e dos meios de produção e difusão da informação, com orçamento decente e gestores comprometidos, preparados e que saibam ouvir os interessados no assunto, o que resultará em diretrizes e ações que garantirão à maioria da população a possibilidade de se expressar de maneira que não fiquem apenas se comportando como meros consumidores de um bocado de lixo que é comercializado como produto cultural e cujos conteúdos -- carregados de intolerância (inclusive religiosa), vulgarização do sexo, preconceitos vários, individualismo exacerbado, banalização da violência, etc., -- vão na direção contrária de tudo aquilo que defendemos, formando o “caldo” da cultura que conduz ao retorno e sustentação da nova/ velha direita.
E isso é tudo que muita gente que ousa lutar e acreditar em outro país menos deseja, mas que será inevitável, caso opiniões como a nossa não sejam levadas em consideração a tempo.
P.S.: Segundo o pensador italiano Norberto Bobbio a esquerda orienta-se por um sentimento igualitário e a direita aceita a desigualdade como natural. Embora no Brasil seja praticamente impossível perceber a diferença através dos discursos e propaganda em época de campanha eleitoral.
Quanto as questões que apresento no texto acima percebo que o modelo de gestão do Ministério da Cultura aponta para o que escrevi acima. Apesar da necessidade de aumento do orçamento e da capacitação técnica e redução da burocracia para o acesso dos pequenos empreendedores culturais do interior e das periferias aos editais. Em Recife, em visitas a comunidades periféricas e em conversas com artistas e arte-educadores populares e também com o Secretário de Cultura, João Roberto Peixe, que nos concedeu audiência de quase duas horas no ano de 2004, pude perceber que muito daquilo que queremos/sonhamos já é realidade. Na oportunidade, o secretário me entregou cópias do relatório de gestão 2000/2004 e da I Conferência Municipal de Cultura do Recife, da qual tive a honra de participar.
José de Oliveira Santos - “Zezito” Professor de história e ativista cultural – e-mail.: zezito2002@ig.com.br
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OUTRO BRASIL? SOMENTE COM PARTICIPAÇÃO E ARTE.
E o meu amigo fez o questionamento porque, ocorrendo o término do mandato (sem reeleição), uma outra administração ligada a partidos conservadores, com inteligência e perspicácia pode fazer a mesma coisa: realizar grandes obras, investir em programas sociais e prosseguir na organização dos mega shows e, conseqüentemente, passar para a população a idéia de que não haverá necessidade de se votar na esquerda novamente.
Se na época não consegui imaginar isso como uma possibilidade real, decorridos alguns anos dessa conversa, reconheço que essa opinião é pertinente e esse texto foi escrito para ajudar na reflexão sobre o assunto, na linha de que tudo que é sólido se desmancha no ar e de que o que é novidade facilmente torna-se comum, e por isso todo indivíduo ou organização que deseja ser sempre considerada e reconhecida deve continuadamente buscar se aprimorar naquilo para que foi criada e facilitar as coisas para que novas descobertas e novas invenções possam ter lugar.
E isso só acontece num ambiente de autonomia e que favoreça condições e oportunidades para a construção e reconstrução subjetiva dos indivíduos .
Nesse sentido, considero duas questões primordiais. Em primeiro lugar, atenção especial para a mudança de valores e práticas de relacionamento político pautado nos antigos procedimentos da elite dominante, como o clientelismo, o paternalismo, o autoritarismo etc...
Em segundo lugar, atenção especial àquilo que aponta para a criação de sujeitos mais solidários, mais livres, mais ousados, àquilo que cria e dá sentido à realização plena das pessoas (refiro- me aqui à produção artístico/ cultural).
No primeiro caso se faz necessário (re)construir, fortalecer ou criar estruturas formais e informais de participação “real” da população nas decisões sobre os rumos do governo, como os conselhos, as conferências, as câmaras setoriais, os fóruns e as redes, além do incentivo e apoio à organização da sociedade civil através das ongs, e cooperativas. Assim, se viabilizaria um ambiente favorável à gestação de novas idéias e recursos para resolver ou atenuar velhos problemas, o que também pode garantir a criação de um antídoto para evitar o retrocesso de condução antidemocrática das decisões, a partir da eleição de partidos ligados às velhas elites dirigentes, após suceder-se um governo de esquerda.
No segundo caso, democratizar o acesso aos meios de produção artística e dos meios de produção e difusão da informação, com orçamento decente e gestores comprometidos, preparados e que saibam ouvir os interessados no assunto, o que resultará em diretrizes e ações que garantirão à maioria da população a possibilidade de se expressar de maneira que não fiquem apenas se comportando como meros consumidores de um bocado de lixo que é comercializado como produto cultural e cujos conteúdos -- carregados de intolerância (inclusive religiosa), vulgarização do sexo, preconceitos vários, individualismo exacerbado, banalização da violência, etc., -- vão na direção contrária de tudo aquilo que defendemos, formando o “caldo” da cultura que conduz ao retorno e sustentação da nova/ velha direita.
E isso é tudo que muita gente que ousa lutar e acreditar em outro país menos deseja, mas que será inevitável, caso opiniões como a nossa não sejam levadas em consideração a tempo.
P.S.: Segundo o pensador italiano Norberto Bobbio a esquerda orienta-se por um sentimento igualitário e a direita aceita a desigualdade como natural. Embora no Brasil seja praticamente impossível perceber a diferença através dos discursos e propaganda em época de campanha eleitoral.
Quanto as questões que apresento no texto acima percebo que o modelo de gestão do Ministério da Cultura aponta para o que escrevi acima. Apesar da necessidade de aumento do orçamento e da capacitação técnica e redução da burocracia para o acesso dos pequenos empreendedores culturais do interior e das periferias aos editais. Em Recife, em visitas a comunidades periféricas e em conversas com artistas e arte-educadores populares e também com o Secretário de Cultura, João Roberto Peixe, que nos concedeu audiência de quase duas horas no ano de 2004, pude perceber que muito daquilo que queremos/sonhamos já é realidade. Na oportunidade, o secretário me entregou cópias do relatório de gestão 2000/2004 e da I Conferência Municipal de Cultura do Recife, da qual tive a honra de participar.
José de Oliveira Santos - “Zezito” Professor de história e ativista cultural – e-mail.: zezito2002@ig.com.br
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