08/03/2014
Observador atento aos processos de  transformação da economia
 mundial em contraponto com a brasileira, Celso Furtado, um dos nossos 
melhores nomes em economia política,  escreveu em seu livro Brasil: a construção interrompida:
 “Em meio milênio de história, partindo de uma constelação de feitorias,
 de populações indígenas desgarradas, de escravos transplantados de 
outro continente, de aventureiros europeus e asiáticos em busca de um 
destino melhor, chegamos a um povo de extraordinária polivalência 
cultural, um país sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade
 linguística e religiosa. Mas nos falta a experiência de provas 
cruciais, como as que conheceram outros povos  cuja sobrevivência chegou
 a estar ameaçada. E nos falta também um verdadeiro conhecimento de 
nossas possibilidades e principalmente de nossas debilidades. Mas não 
ignoramos que o tempo histórico se acelera e que a contagem desse tempo 
se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que 
conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que 
se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um 
Estado-nação”  (Paz e Terra, Rio 1993, 35).
A atual sociedade brasileira, há que se reconhecer, conheceu avanços 
significativos sob os governos do Partido dos Trabalhadores. A inclusão 
social realizada e as políticas sociais benéficas para aqueles milhões 
que sempre estiveram à margem, possui uma magnitude histórica cujo 
significado ainda não acabamos de avaliar, especialmente se nos 
confrontarmos com as fases históricas anteriores, hegemonizadas pelas 
elites tradicionais que sempre detiveram o  poder de Estado em seu 
benefício.
Mas estes avanços não são ainda proporcionais à grandeza de nosso 
país e de seu povo. As manifestações de junho de 2013 mostraram que boa 
parte da população, particularmente dos jovens, está insatisfeita. Estes
 manifestantes querem mais. Querem um outro tipo de democracia, a 
participativa, querem uma república não de negociatas mas de caráter 
popular, exigem com razão  transportes que não lhes roube tanto o tempo 
de vida, serviços básicos de saneamento, educação que os habilite a 
entender melhor o mundo e melhorar o tipo de trabalho que escolherem, 
reclamam saúde com um mínimo de decência e qualidade. Cresce em todos a 
convicção de que um povo doente e ignorante jamais dará um salto de 
qualidade rumo a uma sociedade menos desigual e, por isso, como dizia 
Paulo Freire, “menos malvada”. O PT deverá estar à altura desses novos 
desafios, renovar sua agenda a preço de não continuar mais no poder.
Estamos nos aproximando daquilo que Celso Furtado chamava de “provas 
cruciais”. Talvez como nunca antes em nossa história, atingimos este 
estágio  crítico das “provas”. As próximas eleições possuirão, a meu 
ver, uma qualidade singular. Dada a aceleração da história, impulsionada
 pela crise sistêmica mundial, seremos forçados a tomar uma decisão: ou 
aproveitamos as oportunidades que os países centrais em profunda crise 
nos propiciam, reafirmando nossa autonomia e garantindo nosso futuro 
autônomo mas relacionado com a totalidade do mundo ou as desperdiçamos e
 viveremos atrelados ao destino sempre decidido por eles que nos querem 
condenar a sermos apenas os fornecedores dos produtos in natura e assim 
voltam a nos recolonizar.
Não podemos aceitar esta estranha divisão internacional do trabalho. 
Temos que retomar o sonho de alguns de nossos  melhores analistas do 
quilate de Darcy Ribeiro e de Luiz Gonzaga de Souza Lima entre outros 
que propuseram uma reinvenção ou refundacão do Brasil sobre bases 
nossas, gestadas pelo nosso ensaio civilizatório tão enaltecido por 
Celso Furtado.
Esse é o desafio lançado de forma urgente a todas as instâncias 
sociais: ajudam elas na invenção do Brasil como nação soberana, 
repensada nos quadros da  nova consciência plenetária e do destino comum
 da Terra e da Humanidade? Poderão elas ser co-parteiras de uma 
cidadania nova – a co-cidadania e a cidadania terrenal – que articula o 
cidadão com o Estado, o cidadão com o outro cidadão, o nacional com o 
mundial, a cidadania brasileira com a cidadania planetária, ajudando 
assim a moldar o devenir humano? Ou elas se farão cúmplices daquelas 
forças que não estão interessadas  na construção do projeto-Brasil  
porque se propõem inserir o Brasil no projeto-mundo globalizado de forma
 subalterna e dependente, com as vantagens concedidas às classes 
opulentas, beneficiadas com este tipo de aliança?
As próximas eleições vão trazer à luz estes dois projetos. Devemos 
decidir de que lado estaremos.  A situação é urgente pois, como advertia
 pesaroso Celso Furtado: “tudo aponta para a inviabilização do país como
 projeto nacional” (op.cit. 35). Mas não queremos aceitar como fatal 
esta severa advertência. Não devemos  reconhecer as derrotas sem antes 
dar as batalhas como nos ensinava Dom Quixote em sua gaia sabedoria.
Ainda há tempo para mudanças que podem reorientar o país para o seu 
rumo certo, especialmente agora que, com a crise ecológica, se 
transformou num peso decisivo da balança e do equilíbrio buscado pelo 
planeta Terra. Importa crer em nossas virtualidades, diria mais, em 
nossa missão planetária.
Leia este e outros posts de Leonardo Boff, aqui 
O povo brasileiro: um povo místico e religioso
16/03/2014
O povo brasileiro é espritual e místico goste ou não goste a 
intelectualidade secularizada,em geral, sem ou com tênue organicidade 
com os movimentos populares e sociais.
O povo não passou pela escola dos modernos mestres da suspeita que, 
em vão, tentaram desligitimar a religião. Para o povo, Deus não é um 
problema mas uma solução de seus problemas e o sentido derradeiro de seu
 viver e de seu morrer. Ele sente Deus acompanhando seus  passos, 
celebra-o nas expressões do cotidiano como “meu Deus”, “graças a Deus”, 
“Deus lhe pague”, “Deus o acompanhe”, “queira Deus” e “Deus o abençôe”. 
Geralmente muitos ao desligar o telefone se despedem com “fique com 
Deus”. Se nao tivesse Deus em sua vida, certamente, não teria resistido 
com tanta fortaleza, humor e sentido de luta  aos séculos de ostracismo 
social.
O cristianismo ajudou a formar a identidade dos brasileiros. No tempo
 da Colônia e do Império ele entrou pela via da missão (igreja 
institucional) e da devoção aos santos e santas (cristianismo popular). 
Modernamente está entrando pela vida da libertação (círculos bíblicos, 
comunidades de base e pastorais sociais) e pelo carismatismo (encontros 
de oração e de cura, grandes shows-celebrações dos padres 
mediáticos).     Fundamentalmente o cristianismo colonial e imperial 
educou as classes senhoriais sem questionar-lhes o projeto de dominação e
 domesticou as classes populares para se ajustarem ao lugar que lhes 
cabia na marginalidade. Por isso a função do cristianismo foi 
extremamente ambigua mas sempre funcional ao status quo desigual e 
injusto. Raramente foi profético. No caso da escravidão foi francamente 
legitimador de uma ordem iniqua.
Somente a partir dos anos 50 do século passado, setores importantes 
de sua institucionalidade (bispos, padres e religiosos e religiosas, 
leigos e leigas) começaram um processo de deslocamento de seu lugar 
social  no centro, rumo à periferia onde o povo pobre vivia. Surgiu o 
discurso da promoção humana integral e da libertação sócio-histórica 
cuja centralidade é ocupada pelos oprimidos que já não aceitam mais sua 
condição de oprimidos. Pelo fato de serem simultaneamente pobres e 
religiosos, tiraram de sua religião as inspirações para a resistência e 
para a libertação rumo a uma sociedade com mais participação popular e 
mais justiça. Emerge um cristianismo novo, profético, libertador  e 
comprometido com as mudanças necessárias.
Mas a maior criação cultural feita no Brasil é representada pelo 
cristiansimo popular. Colocados à margem do sistema político e 
religioso, os pobres, indígenas e negros deram corpo a sua experiência 
espiritual no código da cultura popular que se rege mais pela lógica do 
inconsciente e do emocional do que do racional e do doutrinário. 
Elaboraram assim uma rica simbologia, as festas aos seus santos e santas
 fortes, uma arte colorida e uma música carregada de sentimento 
associada à noble tristesse. Ele não significa decadência do 
cristianismo oficial, mas uma forma diferente, popular e sincrética de 
expressar o essencial da mensagem cristã.
As religiões afrobrasileiras, o  sincretismo urdido de elementos 
cristãos, afro-brasileiros e indígenas, representam outra criação 
relevante da cultura popular. Abstraindo de algum fundamentalismo 
evangélico, o povo em geral não é dogmático, nem obsecado em suas 
crenças. É tolerante, pois crê que Deus está em todos e todos os 
caminhos terminam nele. Por isso é multiconfessional e não se envergonha
 de ter várias pertenças religiosas. A síntese é feita dentro de seu 
coração em sua espiritualidade profunda.  A partir daí compõe o rico 
tecido religioso. O antropólogo Roberto da Matta o exprimiu 
acertadamente: “No caminho para Deus posso juntar muita coisa. Nele, 
posso ser católico e umbandista, devoto de Ogum e de São Jorge. A 
linguagem religiosa de nosso pais é, pois, uma linguagem de relação e da
 ligação. Um idioma que busca o meio-termo, o meio caminho, a 
possibilidade de salvar todo o mundo e de em todos os locais encontrar 
alguma coisa boa e digna”( O que faz o brasil Brasil, Rocco, Rio de 
Janeiro 1984,117).
Especialmente importante é a contribuição civilizatória trazida pelas
 religiões afro (nagô, camdonblé, macumba, umbanda e outras) que aqui a 
partir de suas próprias matrizes africanas elaboraram rico sincretismo. 
Cada ser humano pode ser um incorporador eventual da divindade em 
benefício dos outros. Negados socialmente, desprezados politicamente, 
perseguidos religiosamente, as religiões afro-brasileiras devolveram 
auto-estima à população negra, ao afirmar que os orixás africanos os 
enviaram a estas terras para ajudar os necessitados e para impregnar de 
axé (energia cósmica e sagrada) os ares do Brasil. Apesar de escravos 
cumpriam uma missão transcendente e de grande signficação histórica.
Foram os negros e os indígenas que conferiram e conferem uma marca 
mística à alma brasileira. Todos se sabem acompanhados pelos santos e 
santas fortes, pelos orixás,p pelo Preto Velho (umbanda) e pela mão 
providente de Deus que não deixa que tudo se perca e se frustre 
definitivamente. Para tudo há jeito e existe uma saída benfazeja. Por 
isso há leveza, humor, sentido de festa em todas as manifestações 
populares.
O futuro religioso do Brasil não será, provavelmente, o seu passado 
católico. Será, possivelmente, a criação sincrética original de uma nova
 espiritualidade ecumênica que conviverá com as diferenças (a tradição 
evangélica em ascenso, o pentecostalismo,o kardecismo e outras religiões
 orientais) mas na unidade da mesma percepção do Divino e do Sagrado que
 impregna o  cosmos, a história humana e a vida de cada pessoa.
“todo-o-mundo é louco. O
senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente da
religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara a loucura. No
geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço!  Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. 
Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, 
talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito
 as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, 
quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a 
gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos
 deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas
 é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não 
me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável.” Guimarães Rosa
    
O povo brasileiro ainda não acabou de nascer. Vindos de 60 
países diferentes, aqui estão se mesclando representantes destes povos 
num processo aberto, todos contribuindo na gestação de um povo novo que 
um dia acabará de nascer.
O que herdamos da Colônia foi um Estado altamente seletivo, uma elite excludente e uma imensa massa de destituídos e descendentes de escravos. O cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima na sua original interpretação do Brasil nos diz que nascemos como Empresa Tranacionalizada, condenada a ser até hoje fornecedora de produtos in natura para o mercado mundial (cf. A refundação do Brasil, 2011).
Mas apesar deste constrangimento histórico-social, no meio desta massa enorme maduraram lentamente lideranças e movimentos que propiciaram o surgimento de todo tipo de comunidades, associações, grupos de ação e de reflexão que vão das quebradeiras de côco do Maranhão, aos povos da floresta do Acre, dos sem-terra do sul e do nordeste, das comunidades de base, aos sindicatos do ABC paulista.
Do exercício democrático no interior destes movimentos nasceram cidadãos ativos; da articulação entre eles, cada um mantendo sua autonomia, está nascendo uma energia geradora do povo brasileiro que lentamente chega à consciência de sua história e projeta um futuro diferente e melhor para todos.
Nenhum processo desta magnitude se faz sem aliados, sem a ligação orgânica daqueles que manejam um saber especializado com os movimentos sociais comprometidos. É aqui que a universidade é desafiada a alargar o seu horizonte. Importa que os mestres e alunos frequentem a escola viva do povo, como praticava Paulo Freire, e permitir que gente do povo possa entrar nas salas de aula e escutar os professores na matérias relevantes para eles como eu mesmo fazia nos meus cursos na UERJ do Rio de Janeiro.
Essa visão supõe a criação de uma aliança entre a inteligência acadêmica com a miséria popular. Todas as universidades, especialmente após a reforma de seu estatuto por Humboldt em 1809 em Berlim que permitiu as ciências modernas ganharem sua cidadania acadêmica ao lado da reflexão humanística que criou outrora a universidade, se tornaram o lugar clássico da problematização da cultura, da vida, do homem, de seu destino e de Deus. As duas culturas – a humanística e a científica – mais e mais se intercomunicam no sentido de pensar o todo, o destino do próprio projeto científico-técnico face àss intervenções que faz na natureza e sua responsabilidade pelo futuro comum da nação e da Terra. Tal desafio exige um novo modo de pensar que não segue uma lógica do simples e linear mas do complexo e do dialógico.
As universidades são urgidas a buscar um enraizamento orgânico nas periferias, nas bases populares e nos setores ligados diretamente à produção. Aqui pode se estabelecer uma fecunda troca de saberes, entre o saber popular, de experiências feito, e o saber acadêmico, constituído pelo espírito crítico; dessa aliança surgirão seguramente novas temáticas teóricas nascidas do confronto com a anti-realidade popular e da valorização da riqueza incomensurável do povo na sua capacidade de encontrar, sozinho, saídas para os seus problemas. Aqui se dá a troca de saberes, uns completando os outros, no estilo proposto pelo prêmio Nobel de Química (1977) Ilya Prigorine (cf.A nova aliança, UNB 1984).
Deste casamento, se acelera a gênese de um povo; permite um novo tipo de cidadania, baseada na con-cidadania dos representantes da sociedade civil e acadêmica e das bases populares que tomam iniciativas por si mesmos e submetem o Estado a um controle democrático, cobrando-lhe os serviços básicos especialmente para as grande populações periféricas.
Nestas iniciativas populares, com suas várias frentes (casa, saúde, educação, direitos humanos, transporte coletivo etc), os movimentos sociais sentem necessidade de um saber profissional. É onde a universidade pode e deve entrar, socializando o saber, oferencendo encaminhamentos para soluções originais e abrindo perspectivas às vezes insuspeitadas por quem é condenado a lutar só para sobreviver.
Deste ir-e-vir fecundo entre pensamento universitário e saber popular pode surgir o bioregionalismo com um desenvolvimento adequado àquele ecossistema e à cultura local. A partir desta prática, a universidade pública resgatará seu caráter público, será realmente a servidora da sociedade. E a universidade privada realizará sua função social, já que em grande parte é refém dos interesses privados das classes proprietárias e feita chocadeira de sua reprodução social.
Esse processo dinâmico e contraditório só prosperará se estiver imbuído de um grande sonho: de ser um povo novo, autônomo livre e orgulhoso de sua terra. O antropólogo Roberto da Matta bem enfatizou que o povo brasileiro criou um patrimônio realmente invejável: “toda essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar, reconciliar, criando com isso zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança” (Porque o brasil é Brasil, 1986,121).
Apesar de todas tribulações históricas, apesar de ter sido considerado, tantas vezes, jeca-tatu e joão-ninguém, o povo brasileiro nunca perdeu sua auto- estima e o encantamento do mundo. É um povo de grandes sonhos, de esperanças inarredáveis e utopias generosas, um povo que se sente tão imbuído pelas energias divinas que estima ser Deus brasileiro.
Talvez seja esta visão encantada do mundo, uma das maiores contribuições que nós brasileiro podemos dar à cultura mundial emergente, tão pouco mágica e tão pouco sensível ao jogo, ao humor e à convivência dos contrários.
A gestação do povo brasileiro, a universidade e o saber popular
01/03/2014
O que herdamos da Colônia foi um Estado altamente seletivo, uma elite excludente e uma imensa massa de destituídos e descendentes de escravos. O cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima na sua original interpretação do Brasil nos diz que nascemos como Empresa Tranacionalizada, condenada a ser até hoje fornecedora de produtos in natura para o mercado mundial (cf. A refundação do Brasil, 2011).
Mas apesar deste constrangimento histórico-social, no meio desta massa enorme maduraram lentamente lideranças e movimentos que propiciaram o surgimento de todo tipo de comunidades, associações, grupos de ação e de reflexão que vão das quebradeiras de côco do Maranhão, aos povos da floresta do Acre, dos sem-terra do sul e do nordeste, das comunidades de base, aos sindicatos do ABC paulista.
Do exercício democrático no interior destes movimentos nasceram cidadãos ativos; da articulação entre eles, cada um mantendo sua autonomia, está nascendo uma energia geradora do povo brasileiro que lentamente chega à consciência de sua história e projeta um futuro diferente e melhor para todos.
Nenhum processo desta magnitude se faz sem aliados, sem a ligação orgânica daqueles que manejam um saber especializado com os movimentos sociais comprometidos. É aqui que a universidade é desafiada a alargar o seu horizonte. Importa que os mestres e alunos frequentem a escola viva do povo, como praticava Paulo Freire, e permitir que gente do povo possa entrar nas salas de aula e escutar os professores na matérias relevantes para eles como eu mesmo fazia nos meus cursos na UERJ do Rio de Janeiro.
Essa visão supõe a criação de uma aliança entre a inteligência acadêmica com a miséria popular. Todas as universidades, especialmente após a reforma de seu estatuto por Humboldt em 1809 em Berlim que permitiu as ciências modernas ganharem sua cidadania acadêmica ao lado da reflexão humanística que criou outrora a universidade, se tornaram o lugar clássico da problematização da cultura, da vida, do homem, de seu destino e de Deus. As duas culturas – a humanística e a científica – mais e mais se intercomunicam no sentido de pensar o todo, o destino do próprio projeto científico-técnico face àss intervenções que faz na natureza e sua responsabilidade pelo futuro comum da nação e da Terra. Tal desafio exige um novo modo de pensar que não segue uma lógica do simples e linear mas do complexo e do dialógico.
As universidades são urgidas a buscar um enraizamento orgânico nas periferias, nas bases populares e nos setores ligados diretamente à produção. Aqui pode se estabelecer uma fecunda troca de saberes, entre o saber popular, de experiências feito, e o saber acadêmico, constituído pelo espírito crítico; dessa aliança surgirão seguramente novas temáticas teóricas nascidas do confronto com a anti-realidade popular e da valorização da riqueza incomensurável do povo na sua capacidade de encontrar, sozinho, saídas para os seus problemas. Aqui se dá a troca de saberes, uns completando os outros, no estilo proposto pelo prêmio Nobel de Química (1977) Ilya Prigorine (cf.A nova aliança, UNB 1984).
Deste casamento, se acelera a gênese de um povo; permite um novo tipo de cidadania, baseada na con-cidadania dos representantes da sociedade civil e acadêmica e das bases populares que tomam iniciativas por si mesmos e submetem o Estado a um controle democrático, cobrando-lhe os serviços básicos especialmente para as grande populações periféricas.
Nestas iniciativas populares, com suas várias frentes (casa, saúde, educação, direitos humanos, transporte coletivo etc), os movimentos sociais sentem necessidade de um saber profissional. É onde a universidade pode e deve entrar, socializando o saber, oferencendo encaminhamentos para soluções originais e abrindo perspectivas às vezes insuspeitadas por quem é condenado a lutar só para sobreviver.
Deste ir-e-vir fecundo entre pensamento universitário e saber popular pode surgir o bioregionalismo com um desenvolvimento adequado àquele ecossistema e à cultura local. A partir desta prática, a universidade pública resgatará seu caráter público, será realmente a servidora da sociedade. E a universidade privada realizará sua função social, já que em grande parte é refém dos interesses privados das classes proprietárias e feita chocadeira de sua reprodução social.
Esse processo dinâmico e contraditório só prosperará se estiver imbuído de um grande sonho: de ser um povo novo, autônomo livre e orgulhoso de sua terra. O antropólogo Roberto da Matta bem enfatizou que o povo brasileiro criou um patrimônio realmente invejável: “toda essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar, reconciliar, criando com isso zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança” (Porque o brasil é Brasil, 1986,121).
Apesar de todas tribulações históricas, apesar de ter sido considerado, tantas vezes, jeca-tatu e joão-ninguém, o povo brasileiro nunca perdeu sua auto- estima e o encantamento do mundo. É um povo de grandes sonhos, de esperanças inarredáveis e utopias generosas, um povo que se sente tão imbuído pelas energias divinas que estima ser Deus brasileiro.
Talvez seja esta visão encantada do mundo, uma das maiores contribuições que nós brasileiro podemos dar à cultura mundial emergente, tão pouco mágica e tão pouco sensível ao jogo, ao humor e à convivência dos contrários.
 
 
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