- Em entrevista exclusiva, presidente do Uruguai diz que legalizar no mesmo ano maconha, casamento gay e aborto é apenas resposta à realidade
- Mandatário afirmou que seu modo de vida austero é ato de protesto contra distorção dos valores da república por políticos, e que só é visto como modelo por falta de verdadeiros líderes no mundo
MONTEVIDÉU - Todo mundo já sabe, mas se espanta: o presidente do
Uruguai, José (Pepe) Mujica, mora numa casa de 45 metros quadrados com
teto de zinco, cachorro com três patas e cadeiras de fórmica cambetas.
Chega-se a ele sem passar por seguranças ou mostrar documentos: a única
formalidade é cumprida por um guarda, que sai do carro de polícia
estacionado na estrada de terra e vai perguntar se o presidente está
disponível para receber visitas.
A sala é escura, tem infiltrações
nas paredes, um retrato pequeno de Che Guevara, uma estante com livros
desarrumados, uma foto dele com a faixa de presidente, uma caixa de
vinho encostada num canto — um Bouza, o melhor do Uruguai. Quando era
guerrilheiro tupamaro, Mujica assaltava bancos e distribuía comida entre
os pobres.
Agora doa 90% do salário e só vai à residência oficial
da Presidência quando o visitante exige segurança redobrada. Seu estilo
divide opiniões no país, mas sua popularidade é maior agora do que ao
ser eleito, em 2009. Num único ano, 2013, legalizou o aborto, o
casamento gay e a maconha. Virou inspiração para muitos jovens — e não
tão jovens — por seu jeito despojado de fazer e ver a política. “Eu não
sou nada, sou apenas um camponês com senso comum”, afirma.
Mujica é
firme e seguro em suas opiniões: não vai existir um turismo da maconha,
as repúblicas não vieram ao mundo para estabelecer novas cortes, a
política não pode ser uma máfia e tem limitações. O Uruguai — diz até a
oposição — vive um momento de autoestima alta e Mujica — indicam as
pesquisas — deverá eleger seu sucessor em outubro. Mas seu estilo é
único.
Em abril, a lei da maconha estará regulamentada e
em vigor no Uruguai. A maioria da população é contra, o senhor está
preocupado? É um risco político num ano de eleição?
Não
estou preocupado. Não posso estar preocupado por uma coisa que eu mesmo
decidi. Posso ficar preocupado depois que comecemos a praticá-la. É um
risco político sim, mas definitivamente o mundo não teria mudado se só
pensarmos nos riscos eleitorais. Aqui, quando se estabeleceu o divórcio
por vontade da mulher, em 1914 ou 1915, dizia-se que a família iria se
dissolver, a moral da família seria afetada e poderia não resistir.
Quando
o Estado nacional legalizou o álcool e durante 50 anos o vendia às
pessoas, dizia-se que era igual a sovietizar a economia. Sempre que
propomos alguma coisa diferente, a reação é parecida. Na legalização do
aborto, também disseram o mesmo mas agora constatamos que a maioria da
população respalda essa política, entendeu que serviu para salvar vidas,
tanto das mulheres quanto das crianças.
Agora, podemos agir sobre
a psicologia da mulher, podemos atuar diante da solidão da mulher e
fazê-la dar marcha à ré em sua decisão. Isso só é possível porque
legalizamos o aborto. Acho que seguiremos um caminho parecido contra o
narcotráfico.
Mas agora é mais radical. O Uruguai será o primeiro país do mundo onde a maconha será legal.
Queremos
tirar o mercado do narcotráfico, queremos tirar-lhes o motivo
econômico, queremos que o narcotráfico tenha um competidor forte e não
seja o monopolista do mercado. Ao mesmo tempo, tentamos incitar as
pessoas a atuarem do ponto de vista médico.
Se as pessoas
continuam no mundo clandestino, não podemos trabalhar, pelo menos
trabalhar a tempo, só entramos quando já é muito tarde e quando já
cometeram delitos para ter dinheiro e conseguir a droga. Mas temos que
ter muito cuidado, porque não é uma legalização como as pessoas supõem
no exterior, não vai ter um comércio, os estrangeiros não poderão vir
aqui ao Uruguai para comprar maconha. Não vai existir o turismo da
maconha. A decisão tomada não tem nada que ver com esse mundo boêmio.
Nada que ver..
Nada de revival do paz e amor....
Não,
não tem nada a ver. É uma ferramenta de combate a um delito grave, o
narcotráfico, é para proteger a sociedade. É muito sério.
O senhor em algum momento da vida fumou maconha?
Não,
nunca, sou antigo. Fumei tabaco toda a minha vida, e ainda fumo às
vezes. Fumo tabaco bom. Não sei se é pior que maconha, mas não acho que é
bom.
O senhor rompeu com todos os símbolos do poder. O seu estilo de vida, austero, é uma mensagem política?
Pretende
ser um mini-ato de protesto. As repúblicas não vieram ao mundo para
estabelecer novas cortes, as repúblicas nasceram para dizer que todos
somos iguais. E entre os iguais estão os governantes. Têm uma
responsabilidade implícita e penso que devem viver de forma bastante
similar à maneira de viver da maioria do seu povo.
Têm de tentar
representar a maioria desse povo e não devem deixar os resquícios de
feudalismo e da monarquia dentro da república. Na república é distinto,
ninguém é mais que ninguém, começando pelo governante. Por não ser assim
é que muitíssima gente — especialmente os jovens — não crê na política.
A política não pode ser máfia e tem limitações. Mas se os cidadãos não
creem na ética da política, também não vão perdoar os erros humanos que
inevitavelmente estamos condenados a cometer.
No Uruguai,
os partidos de esquerda conseguiram se unir numa Frente Ampla que dura
40 anos. É um país em que a polarização política não é forte, ainda mais
se comparada com os EUA, a Venezuela e mesmo no Brasil. Não imobiliza o
governo.
Faz muito tempo que na nossa cultura política
se incorporou o diálogo e o intercâmbio como método. Sobrevivem no
Uruguai os dois partidos mais velhos provavelmente do Ocidente, mas
nunca foram partidos exatamente, sempre foram frentes, tinham dentro a
esquerda, o centro e a direita, tudo junto. Quer dizer, tinham de
negociar muito internamente, se não perdiam para o partido adversário.
Acabou
criando-se uma espécie de cultura nacional, a esquerda uruguaia
conseguiu criar a frente por causa desta cultura. Nesta frente, estamos
todos, inclusive os cristãos, os católicos e os marxistas. E cada vez
estamos mais seguros, porque agora já se criou uma tradição: quem sai da
Frente, perde. Se saem desse conglomerado, desaparecem politicamente,
aconteceu assim várias vezes. Internamente há um movimento, muda-se de
partido, mas o bloco continua. Por isso, não podemos ser radicais, somos
uma esquerda moderada, porque a linha real é uma espécie de ponto médio
entre nós.
E isto encarna bem o Uruguai, pouca montanha, pouca selva, todos moderados no Uruguai.
O senhor diz que é moderado mas sua agenda modernizadora botou o país no cenário mundial.
Aplicamos
um princípio muito simples: reconhecer os fatos. Aborto é velho como o
mundo, a mulher na sua solidão, inevitavelmente tem de enfrentar com
este problema. Para nós, a legalização do aborto e os métodos de
contracepção, o trabalho psicológico, significam uma maneira de perder
menos. Aqui a mulher não vai diretamente a uma clínica para fazer
aborto, isto era na época em que era clandestino. Passa pelo psicólogo,
depois é bem atendida.
O casamento homossexual, por favor, é mais
velho que o mundo. Tivemos Julio Cesar, Alexandre O Grande, por favor.
Dizer que é moderno, por favor, é mais antigo do que nós todos. É um
dado de realidade objetiva, existe. Para nós, não legalizar seria
torturar as pessoas inutilmente.
Nosso critério é fazer só uma
organização dos fatos já existentes. Aqui enxergamos a hipocrisia: em
muitos estados nos Estados Unidos existe um talonário vendido no
comércio para receitas médicas; basta o médico assinar e dizer que
necessitas de maconha para uma dorzinha aqui (aponta o ombro). É hipócrita.
Existe
no mundo uma crise de representatividade das democracias e, ao mesmo
tempo, uma efervescência de protestos por toda a parte. Como o senhor
analisa este este fenômeno?
Acho que existe uma fantasia e
uma incomunicabilidade em relação aos assuntos mais importantes. O
mundo vive uma crise de caráter político, nossa civilização entrou numa
etapa de crise de governança. O mundo está necessitando um conjunto de
acordos de caráter mundial, porque tem problemas que nenhum país sozinho
pode resolver.
A humanidade tem de pensar em governar, não para a
nação ou para o indivíduo, mas para o futuro da espécie. Com este tipo
de civilização que desatamos, não há forma de mitigar os danos ao
meio-ambiente, não estamos resolvendo nada, só acumulando desastres.
Existe um continente de plástico no Pacífico maior do que a Europa.
Que
vai ser da humanidade? E vamos continuar a produzir plástico e atirando
no mar, sem conseguir um acordo mundial por causa da política?
Na ONU, o senhor falou contra o modelo de desenvolvimento.
Falta
uma agenda de grandes problemas que têm o mundo. De um lado, temos uma
economia baseada no hiperconsumo de coisas inúteis: fabricar bagatelas
que durem pouco. Poderíamos seguir movendo a economia mundial com outro
motor e sacar parte da humanidade que está submersas na tristeza e na
pobreza, em lugares que falta água. Isto é um mercado, a solidariedade
levaria à criação de um mercado maior posteriormente.
Temos que
lutar para que todos trabalhem, mas trabalhem menos, todos devemos ter
tempo livre. Para que? Para viver, para fazer o que gostam. Isto é a
liberdade. Agora, se temos de consumir tanta coisa, não temos tempo por
que precisamos ganhar dinheiro para pagar todas essas coisas. Aí vamos
até que pluff, apagamos.
Mas o senhor tem simpatia pelos
movimentos de protesto, como a primavera árabe, o grupo italiano 5
estrelas ou os protestos no Brasil e na Europa?
Tem muito
protesto de intelectual médio, que segue preso à sociedade de consumo e
depois vai enriquecer trabalhando para alguma multinacional, quando
passar a idade dos protestos. Eu simpatizo com os protestos, mas não
levam a lugar nenhum.
Mas derrubaram alguns governos, deram alguns sustos em governantes acomodados.
Sim,
mas não construíram nada. Para construir, há de se criar uma mente
política, coletiva, de longo prazo, com ideias, disciplina, e com
método. E isso é antigo, ou parece antigo. Mas sem interesses coletivos,
é difícil mudar. Não são os grandes homens que mudam as sociedades,
mudam quando os protestos se organizam, disciplinam, têm métodos de
longo prazo.
E isso significa gente que dedique sua vida. Temos de
revalorizar o papel da política. Mas no mundo real, muita gente se mete
na política por que gosta de dinheiro, estes devem ser expulsos porque
prostituem a política. A política tem de ser feita com carinho, a
política tem a ver com a harmonia das contradições que há na sociedade,
tem de lutar para harmonizar este mundo frágil e cheio de contradições
que estamos vivendo.
Estes movimentos de protesto têm a vantagem
do novo, e tentam alguma coisa nova porque desconfiam de todos os
velhos, especialmente os partidos, por que perderam a confiança neles.
Mas as primaveras têm se transformado em inverno por que não sabem onde
ir.
O senhor, quando tupamaro, pretendia tomar o poder
para mudar o mundo. Chegou lá pelas vias democráticas. Quais são as
limitações do poder de um presidente?
O poder é uma coisa
muita esquiva e muita fragmentada. Há 40 ou 50 anos, achávamos que
chegar ao governo nos permitiria criar uma nova sociedade. Nossa maneira
de pensar era ingênua, uma sociedade é muito mais complexa e o poder
muitíssimo mais complexo.
E limitado?
Limitado
por todos os lados, pelo peso que têm as corporações existentes na
sociedade. Limitado pelo direito e pela Constituição, um limite que tem
de existir. A contradição das corporações e dos distintos interesses, as
dificuldades da realidade. E, sobretudo, toda a política de mudança, a
longo prazo, significa mudança de cultura. E o mais difícil de mudar
numa sociedade é a cultura.
Quando somos jovens, às vezes, não
temos paciência para compreender. E, quando começamos a ficar velhos,
falta força e sobra paciência.
O senhor já disse que Uruguai poderia ser um vagão no trem brasileiro. Ficou aborrecido pela falta de resposta?
Não,
nós sempre vemos muita boa vontade no governo brasileiro, cada vez que
tivemos problemas o governo brasileiro nos deu uma resposta. Mas o
Brasil é uma confederação de estados e as dificuldades no comércio
passam pelos interesses dos Estados.
Lutamos humildemente para que
o Brasil entenda a responsabilidade que tem na América Latina. Por ser o
maior e mais forte, tem mais responsabilidade e tem de se dar conta
desta responsabilidade.
Conta a lenda que Dilma não gosta de política externa.
O
problema é que todo o Brasil tem dificuldade de olhar para a política
externa. Existe uma corrente dentro do Brasil que defende uma integração
interna primeiro, mas já não há tempo para isso.
Isto pode ser
válido mas já não dá tempo porque o mundo caminha assim. As
multinacionais estão formando grupos gigantescos, a Europa tem mais de
600 milhões de pessoas, têm línguas distintas, tradições distintas, mas
esse barco segue navegando apesar de todos os problemas. Os EUA têm seu
espaço, têm o Canadá, uma terra prometida. De outro lado do Pacífico tem
a China, com 40 línguas faladas dentro da China, os que são minorias
são maiores do que qualquer república latino-americama. A Índia é um
espaço multinacional.
Este é o caminho do mundo do futuro e a
discussão vai ser entre eles. Nós, latino-americanos, temos de ter a
sabedoria de tratar de construir acordos para poder pesar neste mundo.
Nós precisamos do Brasil, mas o Brasil necessita de nós todos, porque o
desafio é de continentes. Isto não significa que as nações percam
identidades, pelo contrário, significa que a política do futuro tem
diversos planos — vai seguir existindo o municipal mas há uma agenda do
mundo e temos de participar dela como grande unidade continental e temos
de construí-la.
Mas o Mercosul não tem a capacidade de fazer isso.
Tem
dificuldades. A burguesia paulista, que é a mais competente do
continente, deveria entender que é tempo de juntar aliados, não de
colonizar. Tem de criar sistemas de multinacionais latino-americanas e
uma forma é multiplicar a força juntando-nos. A luta é que os
brasileiros sejam mais latino-americanos, que aprendam a falar
castelhano e nós temos de aprender o português.
Lula declarou que vai lançá-lo para presidente da Unasul.
Lula
tem muita preocupação com o meu futuro e eu com o dele. O Brasil tem a
Amazônia, os grandes rios, reserva petroleiras importantes e deve
recordar que também tem Lula. Tanto privilégio no mundo é difícil.
O
senhor foi chamado de presidente "gente boa" pelo jornal espanhol ‘El
Mundo’, a Foreign Policiy disse que o senhor redefiniu o papel da
esquerda no mundo. O senhor se reconhece em algum desses papeis?
Reconheço
a tragédia do mundo atual. Este reconhecimento tão generoso é o outro
lado do que está acontecendo no mundo de hoje. Não é que me achem tão
excepcional, me usam como uma maneira de criticar os outros. A última
vez que estive na ONU escutei discursos de um presidente de um país
europeu pelo qual temos um respeito enorme pela cultura, por suas
tradições, pelo que significou no mundo. Fiquei assustado, porque
parecia um discurso neo-colonialista
Era o presidente da França?
Foi
um terror, um presidente de esquerda, da república francesa, a
pátria-mãe das revoluções. Se olhamos a política italiana, é um terror.
Eu não sou nada, sou um camponês com senso comum. Sem dúvida, estou
vivendo uma peripécia. Talvez, se não tivesse passado tantos anos presos
com tempo para pensar, fosse diferente.
O Uruguai foi
responsável por um grande trauma brasileiro em 50, quando derrotou o
Brasil no Maracanã. Esta história pode se repetir?
Muito
difícil, isto foi uma coisa excepcional. Mas tinha antecedentes, o
Uruguai tinha passado por uma grande greve de jogadores, assim que
acabou teve de se montar uma seleção para jogar com o Brasil. E esta
seleção ganhou. O futebol na época estava mais equilibrado na região:
agora é quase impossível para o Uruguai – um país de 3 milhões de
pessoas - ganhar um Campeonato do mundo.
Ano passado estive na
Espanha, o presidente do Real Madrid me contou que o orçamento do clube é
de US$ 400 milhões por ano, nenhum clube do Uruguai gastou isso em toda
a sua vida. Mas ninguém pode nos proibir de sonhar. O futebol tem
milagres e isto é interessante. Estão dizendo que o estádio está
atrasado, mas sempre se termina no último momento, uma semana antes o
Maracanã estava cheio de tapumes.
Brasil vai fazer um campeonato
do mundo lindo. Brasil deve apreciar o melhor que tem, não é a Amazônia
nem o petróleo, é o experimento social de ser o país mais mestiço do
mundo. E tem uma grande alegria de viver, mesmo com as dificuldades e
isso deve ã África. Por isso, a luta é que brasileiros sejam mais
latino-americanos.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/mundo/mujica-aplicamos-um-principio-simples-reconhecer-os-fatos-11827657#ixzz2uef60qBC
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Mujica, teórico da transição pós-capitalista?
Fonte: Outras Palavras
Em entrevista inédita no Brasil, presidente uruguaio debate
causas do fracasso do “socialismo real” e afirma: para superar sistema, é
preciso começar pelo choque de valores
Por Outras Palavras
Cada vez mais popular tanto nas redes sociais como na mídia tradicional, o presidente do Uruguai, Pepe Mujica, arrisca-se a sofrer um processo de diluição de imagem semelhante ao que atingiu Nelson Mandela. Aos poucos, cultua-se o mito, esvaziado de sentidos — e se esquecem suas ideias e batalhas. Por isso, vale ler o diálogo que Pepe manteve, no final do ano passado, com o jornalista catalão Antoni Traveria. Publicada no site argentino El Puercoespín, a entrevista revela um presidente que vai muito além do simpático bonachão que despreza cerimônias e luxos.
Mujica, que viveu a luta armada e compartilhou os projetos da esquerda leninista, parece um crítico arguto das experiências socialistas do século XX. Coloca em xeque, em especial, uma crença trágica que marcou a União Soviética e os países que nela se inspiraram: a ideia de que o essencial, para construir uma nova sociedade, era alterar as bases materiais da produção de riquezas. ”Não se constrói socialismo com pedreiros, capatazes e mestres de obra capitalistas”, ironiza o presidente. Não se trata de uma constatação lastimosa sobre o passado ou de um desalento. Mujica mantém-se convicto de que o sistema em que estamos mergulhados precisa e pode ser superado. Mas será um processo lento, como toda a mudança de mentalidades, e precisa priorizar o choque de valores: tornar cada vez mais clara a mediocridade da vida burguesa e apontar modos alternativos de convívio e produção. Leia a seguir, alguns dos trechos centrais da entrevista:
“A batalha agora é muito mais longa. As mudanças materiais, as relações de propriedade, nem sequer são o mais importante. O fundamental são as mudanças culturais e estas transformações exigem muitíssimo tempo. Mesmo nós, que não podemos aceitar filosoficamente o capitalismo, estamos cercados de capitalismo em todos os usos e costumes de nossas vidas, de nossas sociedades. Ninguém escapa à densa malha do mercado, a sua tirania. Estamos em luta pela igualdade e para amortecer por todos os meios as vergonhas sociais. Temos que aplicar políticas fiscais que ajudem a repartir — ainda que seja uma parte do excedente — em favor dos desfavorecidos. Os setores proprietários dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar as pessoas a pescar; mas quando destroçamos seu barco, roubamos sua vara e tiramos seus anzóis, é preciso começar dando-lhes o peixe”.
“A vida é muito bela e é preciso procurar fazer as coisas enquanto a sociedade real funciona, ainda que seja capitalista. Tenho que cobrar impostos para mitigar as enormes dificuldades sociais; ao mesmo tempo, não posso cair no conformismo crônico de pensar que reformando o capitalismo vou a algum lado. Não podemos substituir as forças produtivas da noite para o dia, nem em dez anos. São processos que precisam de coparticipação e inteligência. Ao mesmo tempo em que lutamos para transformar o futuro, é preciso fazer funcionar o velho, porque as pessoas têm de viver. É uma equação difícil. O desafio é bravo. Há quem siga com o mesmo que dizíamos nos anos 1950. Não se deram conta do que ocorreu no mundo e por quê ocorreu. Sinto como minhas as derrotas do movimento socialista. Me ensinam o que não devo fazer. Mas isso não significa que vá engolir a pastilha do capitalismo, nesta altura de minha vida”.
“Não sei se vão me dar bola, mas digo aos jovens de hoje que aprendemos mais com o fracasso e a dor que com a bonança. Na vida pessoal e na coletiva pode-se cair uma, duas, muitas vezes, mas a questão é voltar a começar. E é preciso criar mundos de felicidade com poucas coisas, com sobriedade. Refiro-me a viver com bagagem leve, a não viver escravizado pela renovação consumista permanente que é uma febre e obriga a trabalhar, trabalhar e trabalhar para pagar contas que nunca terminam. Não se trata de uma apologia da pobreza, mas de um elogio à sobriedade — não quero usar a palavra austeridade, porque na Europa está sendo muito prostituída, quando se deixa as pessoas sem trabalho em nome do ‘austero’”.
“Em toda a história do Uruguai, o presidente repartia as licenças de rádio e TV com o dedo. Tivemos a ideia de abrir consultas e processos democráticos baseados em méritos. Pensamos e realizamos! O que certa imprensa diga não me preocupa. Já os conheço. O problema que o diário [uruguaio] El País pode me criticar e se, algum dia, estiver de acordo e me elogiar. Seria sinal de que ando mal”.
[Para ler, na íntegra (em castelhano) a entrevista com Pepe Mujica, clique aqui]
----------------------------------------------------------------------------Por Outras Palavras
Cada vez mais popular tanto nas redes sociais como na mídia tradicional, o presidente do Uruguai, Pepe Mujica, arrisca-se a sofrer um processo de diluição de imagem semelhante ao que atingiu Nelson Mandela. Aos poucos, cultua-se o mito, esvaziado de sentidos — e se esquecem suas ideias e batalhas. Por isso, vale ler o diálogo que Pepe manteve, no final do ano passado, com o jornalista catalão Antoni Traveria. Publicada no site argentino El Puercoespín, a entrevista revela um presidente que vai muito além do simpático bonachão que despreza cerimônias e luxos.
Mujica, que viveu a luta armada e compartilhou os projetos da esquerda leninista, parece um crítico arguto das experiências socialistas do século XX. Coloca em xeque, em especial, uma crença trágica que marcou a União Soviética e os países que nela se inspiraram: a ideia de que o essencial, para construir uma nova sociedade, era alterar as bases materiais da produção de riquezas. ”Não se constrói socialismo com pedreiros, capatazes e mestres de obra capitalistas”, ironiza o presidente. Não se trata de uma constatação lastimosa sobre o passado ou de um desalento. Mujica mantém-se convicto de que o sistema em que estamos mergulhados precisa e pode ser superado. Mas será um processo lento, como toda a mudança de mentalidades, e precisa priorizar o choque de valores: tornar cada vez mais clara a mediocridade da vida burguesa e apontar modos alternativos de convívio e produção. Leia a seguir, alguns dos trechos centrais da entrevista:
“A batalha agora é muito mais longa. As mudanças materiais, as relações de propriedade, nem sequer são o mais importante. O fundamental são as mudanças culturais e estas transformações exigem muitíssimo tempo. Mesmo nós, que não podemos aceitar filosoficamente o capitalismo, estamos cercados de capitalismo em todos os usos e costumes de nossas vidas, de nossas sociedades. Ninguém escapa à densa malha do mercado, a sua tirania. Estamos em luta pela igualdade e para amortecer por todos os meios as vergonhas sociais. Temos que aplicar políticas fiscais que ajudem a repartir — ainda que seja uma parte do excedente — em favor dos desfavorecidos. Os setores proprietários dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar as pessoas a pescar; mas quando destroçamos seu barco, roubamos sua vara e tiramos seus anzóis, é preciso começar dando-lhes o peixe”.
“A vida é muito bela e é preciso procurar fazer as coisas enquanto a sociedade real funciona, ainda que seja capitalista. Tenho que cobrar impostos para mitigar as enormes dificuldades sociais; ao mesmo tempo, não posso cair no conformismo crônico de pensar que reformando o capitalismo vou a algum lado. Não podemos substituir as forças produtivas da noite para o dia, nem em dez anos. São processos que precisam de coparticipação e inteligência. Ao mesmo tempo em que lutamos para transformar o futuro, é preciso fazer funcionar o velho, porque as pessoas têm de viver. É uma equação difícil. O desafio é bravo. Há quem siga com o mesmo que dizíamos nos anos 1950. Não se deram conta do que ocorreu no mundo e por quê ocorreu. Sinto como minhas as derrotas do movimento socialista. Me ensinam o que não devo fazer. Mas isso não significa que vá engolir a pastilha do capitalismo, nesta altura de minha vida”.
“Não sei se vão me dar bola, mas digo aos jovens de hoje que aprendemos mais com o fracasso e a dor que com a bonança. Na vida pessoal e na coletiva pode-se cair uma, duas, muitas vezes, mas a questão é voltar a começar. E é preciso criar mundos de felicidade com poucas coisas, com sobriedade. Refiro-me a viver com bagagem leve, a não viver escravizado pela renovação consumista permanente que é uma febre e obriga a trabalhar, trabalhar e trabalhar para pagar contas que nunca terminam. Não se trata de uma apologia da pobreza, mas de um elogio à sobriedade — não quero usar a palavra austeridade, porque na Europa está sendo muito prostituída, quando se deixa as pessoas sem trabalho em nome do ‘austero’”.
“Em toda a história do Uruguai, o presidente repartia as licenças de rádio e TV com o dedo. Tivemos a ideia de abrir consultas e processos democráticos baseados em méritos. Pensamos e realizamos! O que certa imprensa diga não me preocupa. Já os conheço. O problema que o diário [uruguaio] El País pode me criticar e se, algum dia, estiver de acordo e me elogiar. Seria sinal de que ando mal”.
[Para ler, na íntegra (em castelhano) a entrevista com Pepe Mujica, clique aqui]
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