domingo, 9 de março de 2014

Mujica: ‘aplicamos um princípio simples, reconhecer os fatos’

  • Em entrevista exclusiva, presidente do Uruguai diz que legalizar no mesmo ano maconha, casamento gay e aborto é apenas resposta à realidade
  • Mandatário afirmou que seu modo de vida austero é ato de protesto contra distorção dos valores da república por políticos, e que só é visto como modelo por falta de verdadeiros líderes no mundo
Helena Celestino (Email)
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‘Camponês com senso comum’. O presidente do Uruguai, José Mujica, durante a entrevista no escritório da humilde casa de 45 metros quadrados onde ainda vive em Montevidéu
Foto: Sergio Flaksman

‘Camponês com senso comum’. O presidente do Uruguai, José Mujica, durante a entrevista no escritório da humilde casa de 45 metros quadrados onde ainda vive em Montevidéu Sergio Flaksman
MONTEVIDÉU - Todo mundo já sabe, mas se espanta: o presidente do Uruguai, José (Pepe) Mujica, mora numa casa de 45 metros quadrados com teto de zinco, cachorro com três patas e cadeiras de fórmica cambetas. Chega-se a ele sem passar por seguranças ou mostrar documentos: a única formalidade é cumprida por um guarda, que sai do carro de polícia estacionado na estrada de terra e vai perguntar se o presidente está disponível para receber visitas.
A sala é escura, tem infiltrações nas paredes, um retrato pequeno de Che Guevara, uma estante com livros desarrumados, uma foto dele com a faixa de presidente, uma caixa de vinho encostada num canto — um Bouza, o melhor do Uruguai. Quando era guerrilheiro tupamaro, Mujica assaltava bancos e distribuía comida entre os pobres.
Agora doa 90% do salário e só vai à residência oficial da Presidência quando o visitante exige segurança redobrada. Seu estilo divide opiniões no país, mas sua popularidade é maior agora do que ao ser eleito, em 2009. Num único ano, 2013, legalizou o aborto, o casamento gay e a maconha. Virou inspiração para muitos jovens — e não tão jovens — por seu jeito despojado de fazer e ver a política. “Eu não sou nada, sou apenas um camponês com senso comum”, afirma.
Mujica é firme e seguro em suas opiniões: não vai existir um turismo da maconha, as repúblicas não vieram ao mundo para estabelecer novas cortes, a política não pode ser uma máfia e tem limitações. O Uruguai — diz até a oposição — vive um momento de autoestima alta e Mujica — indicam as pesquisas — deverá eleger seu sucessor em outubro. Mas seu estilo é único.
Em abril, a lei da maconha estará regulamentada e em vigor no Uruguai. A maioria da população é contra, o senhor está preocupado? É um risco político num ano de eleição?
Não estou preocupado. Não posso estar preocupado por uma coisa que eu mesmo decidi. Posso ficar preocupado depois que comecemos a praticá-la. É um risco político sim, mas definitivamente o mundo não teria mudado se só pensarmos nos riscos eleitorais. Aqui, quando se estabeleceu o divórcio por vontade da mulher, em 1914 ou 1915, dizia-se que a família iria se dissolver, a moral da família seria afetada e poderia não resistir.
Quando o Estado nacional legalizou o álcool e durante 50 anos o vendia às pessoas, dizia-se que era igual a sovietizar a economia. Sempre que propomos alguma coisa diferente, a reação é parecida. Na legalização do aborto, também disseram o mesmo mas agora constatamos que a maioria da população respalda essa política, entendeu que serviu para salvar vidas, tanto das mulheres quanto das crianças.
Agora, podemos agir sobre a psicologia da mulher, podemos atuar diante da solidão da mulher e fazê-la dar marcha à ré em sua decisão. Isso só é possível porque legalizamos o aborto. Acho que seguiremos um caminho parecido contra o narcotráfico.
Mas agora é mais radical. O Uruguai será o primeiro país do mundo onde a maconha será legal.
Queremos tirar o mercado do narcotráfico, queremos tirar-lhes o motivo econômico, queremos que o narcotráfico tenha um competidor forte e não seja o monopolista do mercado. Ao mesmo tempo, tentamos incitar as pessoas a atuarem do ponto de vista médico.
Se as pessoas continuam no mundo clandestino, não podemos trabalhar, pelo menos trabalhar a tempo, só entramos quando já é muito tarde e quando já cometeram delitos para ter dinheiro e conseguir a droga. Mas temos que ter muito cuidado, porque não é uma legalização como as pessoas supõem no exterior, não vai ter um comércio, os estrangeiros não poderão vir aqui ao Uruguai para comprar maconha. Não vai existir o turismo da maconha. A decisão tomada não tem nada que ver com esse mundo boêmio. Nada que ver..
Nada de revival do paz e amor....
Não, não tem nada a ver. É uma ferramenta de combate a um delito grave, o narcotráfico, é para proteger a sociedade. É muito sério.
O senhor em algum momento da vida fumou maconha?
Não, nunca, sou antigo. Fumei tabaco toda a minha vida, e ainda fumo às vezes. Fumo tabaco bom. Não sei se é pior que maconha, mas não acho que é bom.
O senhor rompeu com todos os símbolos do poder. O seu estilo de vida, austero, é uma mensagem política?
Pretende ser um mini-ato de protesto. As repúblicas não vieram ao mundo para estabelecer novas cortes, as repúblicas nasceram para dizer que todos somos iguais. E entre os iguais estão os governantes. Têm uma responsabilidade implícita e penso que devem viver de forma bastante similar à maneira de viver da maioria do seu povo.
Têm de tentar representar a maioria desse povo e não devem deixar os resquícios de feudalismo e da monarquia dentro da república. Na república é distinto, ninguém é mais que ninguém, começando pelo governante. Por não ser assim é que muitíssima gente — especialmente os jovens — não crê na política. A política não pode ser máfia e tem limitações. Mas se os cidadãos não creem na ética da política, também não vão perdoar os erros humanos que inevitavelmente estamos condenados a cometer.
No Uruguai, os partidos de esquerda conseguiram se unir numa Frente Ampla que dura 40 anos. É um país em que a polarização política não é forte, ainda mais se comparada com os EUA, a Venezuela e mesmo no Brasil. Não imobiliza o governo.
Faz muito tempo que na nossa cultura política se incorporou o diálogo e o intercâmbio como método. Sobrevivem no Uruguai os dois partidos mais velhos provavelmente do Ocidente, mas nunca foram partidos exatamente, sempre foram frentes, tinham dentro a esquerda, o centro e a direita, tudo junto. Quer dizer, tinham de negociar muito internamente, se não perdiam para o partido adversário.
Acabou criando-se uma espécie de cultura nacional, a esquerda uruguaia conseguiu criar a frente por causa desta cultura. Nesta frente, estamos todos, inclusive os cristãos, os católicos e os marxistas. E cada vez estamos mais seguros, porque agora já se criou uma tradição: quem sai da Frente, perde. Se saem desse conglomerado, desaparecem politicamente, aconteceu assim várias vezes. Internamente há um movimento, muda-se de partido, mas o bloco continua. Por isso, não podemos ser radicais, somos uma esquerda moderada, porque a linha real é uma espécie de ponto médio entre nós.
E isto encarna bem o Uruguai, pouca montanha, pouca selva, todos moderados no Uruguai.
O senhor diz que é moderado mas sua agenda modernizadora botou o país no cenário mundial.
Aplicamos um princípio muito simples: reconhecer os fatos. Aborto é velho como o mundo, a mulher na sua solidão, inevitavelmente tem de enfrentar com este problema. Para nós, a legalização do aborto e os métodos de contracepção, o trabalho psicológico, significam uma maneira de perder menos. Aqui a mulher não vai diretamente a uma clínica para fazer aborto, isto era na época em que era clandestino. Passa pelo psicólogo, depois é bem atendida.
O casamento homossexual, por favor, é mais velho que o mundo. Tivemos Julio Cesar, Alexandre O Grande, por favor. Dizer que é moderno, por favor, é mais antigo do que nós todos. É um dado de realidade objetiva, existe. Para nós, não legalizar seria torturar as pessoas inutilmente.
Nosso critério é fazer só uma organização dos fatos já existentes. Aqui enxergamos a hipocrisia: em muitos estados nos Estados Unidos existe um talonário vendido no comércio para receitas médicas; basta o médico assinar e dizer que necessitas de maconha para uma dorzinha aqui (aponta o ombro). É hipócrita.
Existe no mundo uma crise de representatividade das democracias e, ao mesmo tempo, uma efervescência de protestos por toda a parte. Como o senhor analisa este este fenômeno?
Acho que existe uma fantasia e uma incomunicabilidade em relação aos assuntos mais importantes. O mundo vive uma crise de caráter político, nossa civilização entrou numa etapa de crise de governança. O mundo está necessitando um conjunto de acordos de caráter mundial, porque tem problemas que nenhum país sozinho pode resolver.
A humanidade tem de pensar em governar, não para a nação ou para o indivíduo, mas para o futuro da espécie. Com este tipo de civilização que desatamos, não há forma de mitigar os danos ao meio-ambiente, não estamos resolvendo nada, só acumulando desastres. Existe um continente de plástico no Pacífico maior do que a Europa.
Que vai ser da humanidade? E vamos continuar a produzir plástico e atirando no mar, sem conseguir um acordo mundial por causa da política?
Na ONU, o senhor falou contra o modelo de desenvolvimento.
Falta uma agenda de grandes problemas que têm o mundo. De um lado, temos uma economia baseada no hiperconsumo de coisas inúteis: fabricar bagatelas que durem pouco. Poderíamos seguir movendo a economia mundial com outro motor e sacar parte da humanidade que está submersas na tristeza e na pobreza, em lugares que falta água. Isto é um mercado, a solidariedade levaria à criação de um mercado maior posteriormente.
Temos que lutar para que todos trabalhem, mas trabalhem menos, todos devemos ter tempo livre. Para que? Para viver, para fazer o que gostam. Isto é a liberdade. Agora, se temos de consumir tanta coisa, não temos tempo por que precisamos ganhar dinheiro para pagar todas essas coisas. Aí vamos até que pluff, apagamos.
Mas o senhor tem simpatia pelos movimentos de protesto, como a primavera árabe, o grupo italiano 5 estrelas ou os protestos no Brasil e na Europa?
Tem muito protesto de intelectual médio, que segue preso à sociedade de consumo e depois vai enriquecer trabalhando para alguma multinacional, quando passar a idade dos protestos. Eu simpatizo com os protestos, mas não levam a lugar nenhum.
Mas derrubaram alguns governos, deram alguns sustos em governantes acomodados.
Sim, mas não construíram nada. Para construir, há de se criar uma mente política, coletiva, de longo prazo, com ideias, disciplina, e com método. E isso é antigo, ou parece antigo. Mas sem interesses coletivos, é difícil mudar. Não são os grandes homens que mudam as sociedades, mudam quando os protestos se organizam, disciplinam, têm métodos de longo prazo.
E isso significa gente que dedique sua vida. Temos de revalorizar o papel da política. Mas no mundo real, muita gente se mete na política por que gosta de dinheiro, estes devem ser expulsos porque prostituem a política. A política tem de ser feita com carinho, a política tem a ver com a harmonia das contradições que há na sociedade, tem de lutar para harmonizar este mundo frágil e cheio de contradições que estamos vivendo.
Estes movimentos de protesto têm a vantagem do novo, e tentam alguma coisa nova porque desconfiam de todos os velhos, especialmente os partidos, por que perderam a confiança neles. Mas as primaveras têm se transformado em inverno por que não sabem onde ir.
O senhor, quando tupamaro, pretendia tomar o poder para mudar o mundo. Chegou lá pelas vias democráticas. Quais são as limitações do poder de um presidente?
O poder é uma coisa muita esquiva e muita fragmentada. Há 40 ou 50 anos, achávamos que chegar ao governo nos permitiria criar uma nova sociedade. Nossa maneira de pensar era ingênua, uma sociedade é muito mais complexa e o poder muitíssimo mais complexo.
E limitado?
Limitado por todos os lados, pelo peso que têm as corporações existentes na sociedade. Limitado pelo direito e pela Constituição, um limite que tem de existir. A contradição das corporações e dos distintos interesses, as dificuldades da realidade. E, sobretudo, toda a política de mudança, a longo prazo, significa mudança de cultura. E o mais difícil de mudar numa sociedade é a cultura.
Quando somos jovens, às vezes, não temos paciência para compreender. E, quando começamos a ficar velhos, falta força e sobra paciência.
O senhor já disse que Uruguai poderia ser um vagão no trem brasileiro. Ficou aborrecido pela falta de resposta?
Não, nós sempre vemos muita boa vontade no governo brasileiro, cada vez que tivemos problemas o governo brasileiro nos deu uma resposta. Mas o Brasil é uma confederação de estados e as dificuldades no comércio passam pelos interesses dos Estados.
Lutamos humildemente para que o Brasil entenda a responsabilidade que tem na América Latina. Por ser o maior e mais forte, tem mais responsabilidade e tem de se dar conta desta responsabilidade.
Conta a lenda que Dilma não gosta de política externa.
O problema é que todo o Brasil tem dificuldade de olhar para a política externa. Existe uma corrente dentro do Brasil que defende uma integração interna primeiro, mas já não há tempo para isso.
Isto pode ser válido mas já não dá tempo porque o mundo caminha assim. As multinacionais estão formando grupos gigantescos, a Europa tem mais de 600 milhões de pessoas, têm línguas distintas, tradições distintas, mas esse barco segue navegando apesar de todos os problemas. Os EUA têm seu espaço, têm o Canadá, uma terra prometida. De outro lado do Pacífico tem a China, com 40 línguas faladas dentro da China, os que são minorias são maiores do que qualquer república latino-americama. A Índia é um espaço multinacional.
Este é o caminho do mundo do futuro e a discussão vai ser entre eles. Nós, latino-americanos, temos de ter a sabedoria de tratar de construir acordos para poder pesar neste mundo. Nós precisamos do Brasil, mas o Brasil necessita de nós todos, porque o desafio é de continentes. Isto não significa que as nações percam identidades, pelo contrário, significa que a política do futuro tem diversos planos — vai seguir existindo o municipal mas há uma agenda do mundo e temos de participar dela como grande unidade continental e temos de construí-la.
Mas o Mercosul não tem a capacidade de fazer isso.
Tem dificuldades. A burguesia paulista, que é a mais competente do continente, deveria entender que é tempo de juntar aliados, não de colonizar. Tem de criar sistemas de multinacionais latino-americanas e uma forma é multiplicar a força juntando-nos. A luta é que os brasileiros sejam mais latino-americanos, que aprendam a falar castelhano e nós temos de aprender o português.
Lula declarou que vai lançá-lo para presidente da Unasul.
Lula tem muita preocupação com o meu futuro e eu com o dele. O Brasil tem a Amazônia, os grandes rios, reserva petroleiras importantes e deve recordar que também tem Lula. Tanto privilégio no mundo é difícil.
O senhor foi chamado de presidente "gente boa" pelo jornal espanhol ‘El Mundo’, a Foreign Policiy disse que o senhor redefiniu o papel da esquerda no mundo. O senhor se reconhece em algum desses papeis?
Reconheço a tragédia do mundo atual. Este reconhecimento tão generoso é o outro lado do que está acontecendo no mundo de hoje. Não é que me achem tão excepcional, me usam como uma maneira de criticar os outros. A última vez que estive na ONU escutei discursos de um presidente de um país europeu pelo qual temos um respeito enorme pela cultura, por suas tradições, pelo que significou no mundo. Fiquei assustado, porque parecia um discurso neo-colonialista
Era o presidente da França?
Foi um terror, um presidente de esquerda, da república francesa, a pátria-mãe das revoluções. Se olhamos a política italiana, é um terror. Eu não sou nada, sou um camponês com senso comum. Sem dúvida, estou vivendo uma peripécia. Talvez, se não tivesse passado tantos anos presos com tempo para pensar, fosse diferente.
O Uruguai foi responsável por um grande trauma brasileiro em 50, quando derrotou o Brasil no Maracanã. Esta história pode se repetir?
Muito difícil, isto foi uma coisa excepcional. Mas tinha antecedentes, o Uruguai tinha passado por uma grande greve de jogadores, assim que acabou teve de se montar uma seleção para jogar com o Brasil. E esta seleção ganhou. O futebol na época estava mais equilibrado na região: agora é quase impossível para o Uruguai – um país de 3 milhões de pessoas - ganhar um Campeonato do mundo.
Ano passado estive na Espanha, o presidente do Real Madrid me contou que o orçamento do clube é de US$ 400 milhões por ano, nenhum clube do Uruguai gastou isso em toda a sua vida. Mas ninguém pode nos proibir de sonhar. O futebol tem milagres e isto é interessante. Estão dizendo que o estádio está atrasado, mas sempre se termina no último momento, uma semana antes o Maracanã estava cheio de tapumes.
Brasil vai fazer um campeonato do mundo lindo. Brasil deve apreciar o melhor que tem, não é a Amazônia nem o petróleo, é o experimento social de ser o país mais mestiço do mundo. E tem uma grande alegria de viver, mesmo com as dificuldades e isso deve ã África. Por isso, a luta é que brasileiros sejam mais latino-americanos.

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/mundo/mujica-aplicamos-um-principio-simples-reconhecer-os-fatos-11827657#ixzz2uef60qBC
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Mujica, teórico da transição pós-capitalista?

 Fonte: Outras Palavras

By Redação janeiro 6, 2014 17:58 Updated
Mujica, teórico da transição pós-capitalista?
Em entrevista inédita no Brasil, presidente uruguaio debate causas do fracasso do “socialismo real” e afirma: para superar sistema, é preciso começar pelo choque de valores
Por Outras Palavras

Cada vez mais popular tanto nas redes sociais como na mídia tradicional, o presidente do Uruguai, Pepe Mujica, arrisca-se a sofrer um processo de diluição de imagem semelhante ao que atingiu Nelson Mandela. Aos poucos, cultua-se o mito, esvaziado de sentidos — e se esquecem suas ideias e batalhas. Por isso, vale ler o diálogo que Pepe manteve, no final do ano passado, com o jornalista catalão Antoni Traveria. Publicada no site argentino El Puercoespínentrevista revela um presidente que vai muito além do simpático bonachão que despreza cerimônias e luxos.
Mujica, que viveu a luta armada e compartilhou os projetos da esquerda leninista, parece um crítico arguto das experiências socialistas do século XX. Coloca em xeque, em especial, uma crença trágica que marcou a União Soviética e os países que nela se inspiraram: a ideia de que o essencial, para construir uma nova sociedade, era alterar as bases materiais da produção de riquezas. ”Não se constrói socialismo com pedreiros, capatazes e mestres de obra capitalistas”, ironiza o presidente. Não se trata de uma constatação lastimosa sobre o passado ou de um desalento. Mujica mantém-se convicto de que o sistema em que estamos mergulhados precisa e pode ser superado. Mas será um processo lento, como toda a mudança de mentalidades, e precisa priorizar o choque de valores: tornar cada vez mais clara a mediocridade da vida burguesa e apontar modos alternativos de convívio e produção. Leia a seguir, alguns dos trechos centrais da entrevista:

“A batalha agora é muito mais longa. As mudanças materiais, as relações de propriedade, nem sequer são o mais importante. O fundamental são as mudanças culturais e estas transformações exigem muitíssimo tempo. Mesmo nós, que não podemos aceitar filosoficamente o capitalismo, estamos cercados de capitalismo em todos os usos e costumes de nossas vidas, de nossas sociedades. Ninguém escapa à densa malha do mercado, a sua tirania. Estamos em luta pela igualdade e para amortecer por todos os meios as vergonhas sociais. Temos que aplicar políticas fiscais que ajudem a repartir — ainda que seja uma parte do excedente — em favor dos desfavorecidos. Os setores proprietários dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar as pessoas a pescar; mas quando destroçamos seu barco, roubamos sua vara e tiramos seus anzóis, é preciso começar dando-lhes o peixe”.
“A vida é muito bela e é preciso procurar fazer as coisas enquanto a sociedade real funciona, ainda que seja capitalista. Tenho que cobrar impostos para mitigar as enormes dificuldades sociais; ao mesmo tempo, não posso cair no conformismo crônico de pensar que reformando o capitalismo vou a algum lado. Não podemos substituir as forças produtivas da noite para o dia, nem em dez anos. São processos que precisam de coparticipação e inteligência. Ao mesmo tempo em que lutamos para transformar o futuro, é preciso fazer funcionar o velho, porque as pessoas têm de viver. É uma equação difícil. O desafio é bravo. Há quem siga com o mesmo que dizíamos nos anos 1950. Não se deram conta do que ocorreu no mundo e por quê ocorreu. Sinto como minhas as derrotas do movimento socialista. Me ensinam o que não devo fazer. Mas isso não significa que vá engolir a pastilha do capitalismo, nesta altura de minha vida”.
“Não sei se vão me dar bola, mas digo aos jovens de hoje que aprendemos mais com o fracasso e a dor que com a bonança. Na vida pessoal e na coletiva pode-se cair uma, duas, muitas vezes, mas a questão é voltar a começar. E é preciso criar mundos de felicidade com poucas coisas, com sobriedade. Refiro-me a viver com bagagem leve, a não viver escravizado pela renovação consumista permanente que é uma febre e obriga a trabalhar, trabalhar e trabalhar para pagar contas que nunca terminam. Não se trata de uma apologia da pobreza, mas de um elogio à sobriedade — não quero usar a palavra austeridade, porque na Europa está sendo muito prostituída, quando se deixa as pessoas sem trabalho em nome do ‘austero’”.
“Em toda a história do Uruguai, o presidente repartia as licenças de rádio e TV com o dedo. Tivemos a ideia de abrir consultas e processos democráticos baseados em méritos. Pensamos e realizamos! O que certa imprensa diga não me preocupa. Já os conheço. O problema que o diário [uruguaio] El País pode me criticar e se, algum dia, estiver de acordo e me elogiar. Seria sinal de que ando mal”.
[Para ler, na íntegra (em castelhano) a entrevista com Pepe Mujica, clique aqui]

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