Fonte: Revista Fórum
Ela
é a primeira mulher a lançar um romance em Moçambique; na juventude foi
militante do Partido Frelimo, que lutou pela independência do país; é
atuante no movimento feminista do país; e possui uma espiritualidade
marcante. Ela é Paulina Chiziane.
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Ela é a primeira mulher a lançar um romance em Moçambique; na
juventude foi militante do Partido Frelimo, que lutou pela
independência do país; é atuante no movimento feminista do país; e
possui uma espiritualidade marcante. Ela é Paulina Chiziane
Por Douglas Freitas e Marcelo Hailer, da Bastião
Tambores vibram no palco da maior universidade privada de Moçambique.
Sentada entre os sete músicos, Paulina Chiziane entoa um cântico
evocando os espíritos dos ex-presidentes Eduardo Mondlane e Samora
Machel. A música tem a intenção de convocar o passado para convencer os
governantes atuais a firmar a paz no presente.
Em um país extremamente formal, batucar dentro de uma instituição é
uma quebra de tabu. Na verdade, lançar o livro “Por que vibram os
tambores do além”, que conta a história do curandeiro Rasta Pita, dá
sequência a uma série de rompimentos de paradigmas que Paulina acumula.
Ela é a primeira mulher a lançar um romance em Moçambique (Balada de
amor ao vento, publicado em 1990); na juventude foi militante do Partido
Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique, partido de esquerda que
lutou pela independência do país); é atuante no movimento feminista do
país; e possui uma espiritualidade marcante. Por alguns, é chamada de
radical. “As pessoas não estão habituadas a questionar. Quando alguém
questiona, dizem logo que é radical”, rebate ela, sem fazer muito caso.
Em uma tarde quente de novembro, Aldino Languana, pintor moçambicano e
documentarista, nos guiou de carro até o subúrbio da capital, Maputo,
onde fica a casa de Paulina. Conseguimos marcar a entrevista após
conhecer Aldino no lançamento do novo livro de Paulina e aceitarmos a
contraproposta de nosso encontro ser filmado – ele está preparando o
primeiro documentário sobre a escritora. Em pouco mais de uma hora, em
um cômodo improvisado na sua sala, Paulina expôs sua visão sobre o
colonialismo ocidental em Moçambique, criticou o ingresso de Igrejas
estrangeiras e de novelas brasileiras no país e expressou a importância
de dar voz à quem normalmente não possui. Tudo de forma serena e sem o
peso das obrigações. “Só os indivíduos eleitos ou nomeados que podem
dizer que têm papéis ou deveres. Eu faço aquilo que posso fazer”.
Para quem tu escreve, Paulina?
No princípio – pois eu já estou na literatura há quase 25 anos –, eu
escrevia pra mim. Lembro-me de ter escrito pequenos poemas em cadernos
de escola, etc. Depois de certa evolução, publico um romance, que tem
muito de íntimo, fruto da minha observação do mundo. E fui evoluindo até
hoje. Chegado esse tempo, achei que chegava de me sufocar, de estar a
pensar em criar, pois em qualquer esquina, em cada lugar, existem
pessoas que têm algo para dar, algo para contar, mas não têm o domínio
da leitura e da escrita, que é o caso do curandeiro Rasta Pita. Ele tem
uma história magnífica para contar, mas é um indivíduo que aprendeu mais
da tradição africana do que propriamente na escola formal. É claro que
ele sabe ler ou escrever o básico, mas não para produzir um livro. Para
mim, é muito mais fácil pegar um gravador, ouvir a história desse homem e
transformar isso em um livro. Foi exatamente essa a tarefa que eu fiz.
Mas também não foi só por isso. Eu sou uma pessoa que percebe um pouco
das raízes, da identidade e, portanto, acompanho esse conflito que
existe entre o pensamento ocidental e o pensamento africano. Gosto de
comparar os dois universos e acabei descobrindo que há muitos valores
nossos, africanos, que estão a desaparecer, pois as pessoas que detêm
esse conhecimento não tem o domínio da leitura/escrita. E então decidi,
sobretudo com esse curandeiro, emprestar a minha escrita para alguém
contar a sua história. Se for olhar para o livro, da maneira que está
formado, é uma biografia dele, a sua visão de mundo, mas escrito por
mim. É uma experiência. E mesmo no lançamento, tive a oportunidade de
conversar com alguns curandeiros que se surpreenderam, porque a maior
parte das pessoas que fazem o doutorado, o mestrado, a licenciatura em
áreas como antropologia, para conseguir o seu diploma, vão buscar os
conhecimentos nessas pessoas. São perguntas, são questionários muito
leves, muito superficial, mas a partir do conhecimento dado pelo
curandeiro, o indivíduo da academia europeia consegue o seu diploma. E
essa é a primeira vez, segundo eles, que um escritor coloca um
curandeiro em um patamar de visibilidade. E isso foi muito importante
para eles.
Expor estas histórias tradicionais é uma maneira de combater essa imposição do saber colonialista?
Sim, porque, repara bem, as pessoas de Moçambique não conhecem o
curandeiro. O que se sabe, se lê sobre eles, foi escrito por
antropólogos e sociólogos no tempo colonial. É a visão eurocêntrica
falando sobre um africano. Depois surgiu alguns outros livros um pouco
melhores sobre esse tema, mas ainda são textos de academias ocidentais,
com uma série de estereótipos para descrever esses indivíduos. Nessa
experiência que eu tive, o curandeiro fala por si, em primeira pessoa. O
tipo de mensagem que ele transmite está livre dos preconceitos
ocidentais. É, claro, eu de vez em quando sugeri melhores formas de
expor as ideias dele. Mas eu deixei que espelhasse o seu mundo interior.
O livro começou a circular há três semanas, já tem pessoas que leram e
se surpreenderam. Segundo eles, esse livro ajuda a olharmos para essa
classe de profissionais, há uma contribuição para a mudança de visão de
algumas pessoas sobre a figura do curandeiro. Portanto, quanto mais
livros houver à volta desses indivíduos, – feito por eles ou por alguém
que lhes ajude a expressar, lhes dê voz e lhes dê lugar –, a visão do
mundo vai melhorar. No mínimo, a forma que serão tratados será outra.
É impressionante como muitos moçambicanos frequentam o
curandeiro, usufruem do seu saber, mas escondem ou renegam. Por que a
senhora acha que é importante colocar em pauta esses tabus?
Pois vai ajudar as pessoas a terem segurança em si
mesmas. Para mim, quase todos são a favor. Todos os africanos frequentam
o curandeiro pelo menos uma vez na vida. A razão é bastante simples:
existem soluções que a medicina ocidental não tem. Ao meu ver, a
medicina ocidental é quase mecânica, vai tratar do coração, do pé, do
olho. Enquanto que a medicina tradicional vai muito mais longe.
Portanto, quero até usar as palavras desse curandeiro. Para se tratar um
doente, é preciso ter três níveis: o nível do indivíduo, o da sociedade
e o de deus. Primeiro, ele faz o diagnóstico, lançando conchas ou
pedras e pergunta aos espíritos o que diz o olho dessa pessoa a si
própria, o que diz o olho do mundo e o que diz o olho de deus. O
curandeiro, para tratar do doente, tem a dimensão individual, vai para a
social e também tem a espiritual. A relação doente-curandeiro é
diferente da relação doente-médico. O médico está ali, faz o seu
trabalho perfeito, mas olha apenas pelo lado do indivíduo que está
doente e, de vez em quando, da sociedade que o rodeia. A outra dimensão
espiritual não faz parte do mundo ocidental. Todo o ser humano tem um
quê de religiosidade, porque há momentos na vida em que tudo que nos
rodeia falha, aí necessitamos acreditar em uma força suprema para poder
resistir. Conheço casos de indivíduos que foram diagnosticados com
cancro, por exemplo. Uma doença fatal. Essa pessoa sabe, de antemão, que
a medicina não tem uma solução para ele; que a sociedade não tem uma
solução para ele. Mas, se esse indivíduo tem fé, numa dimensão maior,
consegue resistir melhor, pois tem algo de transcende que o segura. E aí
entra a figura do curandeiro, que é muito forte. No mundo ocidental,
depois do médico, as pessoas vão buscar o padre. Aqui não, quando a
pessoa entra nessa fase, busca-se o curandeiro, que faz o indivíduo
circular nesse mundo além da matéria.
Mas por que ainda há aversão, por que é um tabu? É devido a influência estrangeira, a influência direta de um saber ocidental?
Para mim, começou com a influência do ocidente. E essa pressão
continua! E continua em um país independente, através daqueles que se
julgam conhecedores do saber científico. Então, quem faz maior pressão
hoje são os próprios moçambicanos, e não o colonialismo que já foi. O
colonialismo já se foi há quase 40 anos, mas ainda não tivemos “tempo”
para termos uma conversa um pouco mais aberta sobre a nossa própria
identidade. Nesse momento, as grandes pressões partem das Igrejas, que,
para mim, são centros de superstição, mas também são centros de tabus,
porque são elas que trazem com muita força essa ideia do diabólico, do
satânico. Claro que nas nossas tradições também temos o medo do feitiço,
dos feiticeiros. Nós já possuímos essas superstições nefastas, por que
as igrejas têm que trazer mais?
Você crê que a Igreja Universal, tão presente aqui em Moçambique, tem influência nessa marginalização do curandeiro?
Não só, porque a Universal não é a única. Para mim tudo que são
igrejas de fora, como Assembleia de Deus, Igreja dos Doze Apóstolos,
entre outras, trazem dentro de si uma ideologia colonizante. Só que não
são tão agressivas como a Igreja Universal. Mas todas as igrejas
defendem que tudo que é espírito, toda a espiritualidade africana, tudo
que é cultura africana é diabólica. Todas pensam isso.
Tu acha que a Igreja impede que a sociedade avance, no que
diz respeito, por exemplo, à valorização da mulher e à causa
homossexual?
Para mim, a Igreja tem coisas boas. Não há dúvida. Eu faço críticas
às igrejas em apenas determinados aspectos. Na história da África, na
história de Moçambique, nós encontramos igrejas que dão formação, dão
educação, que amparam os órfãos, que fazem uma série de ações sociais
importantes. Mas, ao mesmo tempo, trazem uma mentalidade colonizante.
Portanto, eles dão, mas fazem com que as pessoas que se beneficiam e as
comunidades em volta deem os seus próprios valores em troca, para olhar
apenas para aquilo que é o pensamento ocidental. Então isso não é muito
bom!
Há um colonialismo do saber entre os próprios moçambicanos?
Eu acho que sim. Um dos casos mais recentes de colonialismo que eu vi
– e que me deixou extremamente chocada – foi quando estive em Chai, em
Cabo Delgado. Chai é o distrito onde começou a luta armada pela
libertação nacional. Portanto, um distrito dos heróis, dos guerreiros,
dos bravos, daqueles que lutam contra a instituição. Foi ali que começou
a guerra que culminou com a independência do país. Fui assistir ao
funeral de um homem. Estava lá trabalhando, um homem morre, todo mundo
vai ao funeral. Como eu estava lá, logicamente também fui. Logo depois
de acabar o funeral, a família do morto começa a insultar a viúva.
Porque ela matou aquele homem, porque ela não poderia voltar mais para
casa dela. Ela tinha que ir embora para a casa dos pais dela a partir
naquele momento. Ora, a senhora tinha quatro filhos, não lhe deram
sequer direito de ficar com os filhos, não lhe deram sequer o direito de
voltar à casa e buscar a roupa que era dela. Saiu do funeral expulsa,
sem nada, para ir recomeçar a vida na casa dos pais. Isso é tradicional.
Não é a lei, é a tradição. Então, esse é um distrito modelo, que luta
contra a injustiça. Eles fizeram a luta contra o colonialismo que vem do
outro, mas o colonialismo doméstico, aquele que vem da tradição, que
cria marcas profundas nas pessoas, é aplaudido porque é tradição. Então,
mesmo no nível da família, esse colonialismo existe, e se expande pela
sociedade e assim por diante. Colonialismo não é mais que relações de
poder de uns sobre os outros. E nesse caso concreto das mulheres maconde
(grupo étnico que vive no nordeste do país) é chocante. Nunca esperei
ver uma coisa dessas na vida. Como é que essas crianças vão crescer
longe da mãe? E aquele tipo morreu porque ele bebia muita cachaça. Ainda
por cima isso. E, no fim, aquela mulher tem que ser expulsa, sem
direito aos filhos gerados pelo próprio ventre.
E por vezes a família materna a rejeita também.
A rejeita. E para onde vai essa mulher? Já há leis que resguardam a
mulher viúva, mas ainda é pouco aplicada fora do centro urbano. Talvez
por medo das próprias mulheres de irem atrás dos seus direitos… Nas
zonas rurais a tradição é muito mais poderosa. É impressionante viajar
para o campo e descobrir que o meu país tem um outro país dentro dele.
Até parece que é uma legislação para as cidades e outra para o campo. É
claro que a questão das guerras, a questão da pobreza influenciam
bastante porque os serviços públicos não conseguem chegar a essas
localidades. As pessoas vivem de acordo com as regras dos seus
ancestrais, que é uma coisa horrível.
A senhora viu algum avanço da luta feminista no rompimento de algumas dessas tradições?
As coisas estão a melhorar, não posso negar. E falando da minha
experiência, quando eu tinha 18 anos, o sonho de uma mulher era casar e
ter filhos; ter um empregozinho, casar e ter filhos; fazer um enxoval e
noivar. Ficar sentada à espera que apareça um noivo. Esse foi o meu
tempo de 18 anos. Passados cerca de 40 anos, a situação mudou muito. As
mulheres já partem para uma situação melhor, para um profissão melhor.
Lutam pela sua própria autonomia. Mesmo nas zonas rurais, em que a
tradição é muito forte, se hoje se pergunta a uma mãe o que sonha para a
sua filha, ela vai dizer que queria que fosse à escola para ter um
emprego amanhã. O que é diferente de 20 anos atrás, que a mãe dizia que
agora que a filha cresceu tem que iniciar os rituais para achar marido e
arrumar a vida. Hoje a visão mudou. Portanto, é lento, mas há mudanças.
Me impressionou muito o racismo interno de Moçambique, essa supervalorização do branco.
Isso é uma questão econômica, que tem a ver com toda a estrutura de
vida que foi deixada pelo sistema colonial. Portanto, vai levar-se um
tempo para se apagar, por isso mesmo é necessário continuar a dialogar a
volta desses assuntos. Aqui não se vê isso. Eu trabalhei na Zambézia
(província a 1600 km da capital), onde a realidade é bem mais crua. Os
melhores postos de trabalho, as melhores posições, casas, são de
mestiços e dos negros. E eu escrevi um livro, O alegre canto da perdiz,
que fala muito sobre isso, que me chocou profundamente. Porque a questão
do racismo, muitas vezes nós olhamos como alguma coisa que vem do
branco. Não é verdade. O livro que escrevi fala de uma mulher negra que
teve dois maridos: o primeiro negro, com quem teve dois filhos, e o
segundo, branco, com quem teve dois filhos. Portanto, ela tem 4 filhos:
dois negros e dois mulatos. E o que ela faz? Transforma os dois filhos
negros em subalternos dos mestiços. E ela dizia: “Os filhos mestiços são
especiais, os negros não”. Porque o pai branco oferece rendas e sedas,
pão e queijo, enquanto que o pai negro só oferece bananas e cocos. É uma
questão econômica. E isso não é fantasia, eu encontrei uma família
assim. Os filhos mulatos são proprietários de bombas de combustíveis, de
empresas, são pessoas ricas, enquanto os negros são serventes dos
mulatos. E quem faz a gestão da vida é a mãe negra, que é mais escura
que os próprios filhos. Então a atitude dos próprios filhos não tem a
ver com o individuo, é uma questão de poder. Se nós recebêssemos por
igual – pretos e brancos – não haveria isso que vocês viram. Claro, o
moço que está a trabalhar sabe que ao servir um branco vai receber uma
gorjeta, e ao servir um negro não recebe nada. É só por isso.
Na década de 1980, você foi uma grande militante jovem e
feminista da Frelimo. Qual a sua avaliação da conjuntura atual do
partido?
Não sei, eu às vezes não me dou ao tempo de analisar. É como uma
recusa de fazer esse tipo de análise, por causa do desencanto que eu
sinto. Eu fiz parte dos grupos, das confusões revolucionárias da época,
do tipo colar cartazes nas ruas, organizar greves. Eu fiz isso. Tinha um
grande sonho, que era ver um país melhor, um país justo, etc. Mas o
andar do tempo demonstrou novas realidades. Muitas pessoas que estão no
poder hoje fizeram parte deste movimento contra o colonialismo, contra o
capitalismo, contra a corrupção. E hoje são os mesmos que praticam
aquilo que ontem combatiam. Então isso dá um desencanto. Tanta gente que
sofreu, tanta gente que morreu… Falando dos que estão no poder: estamos
hoje em meio a um conflito armado. Há todo um discurso da oposição, que
diz que trouxe a democracia a Moçambique, há toda uma fala de um desejo
de paz. Queremos a paz. Mas, contrariamente, vão para o mato e começam a
guerrear com os militares. Então isso também é outro desencanto. O
movimento da oposição foi aquele que trouxe a maior instabilidade do
país. Quando tudo parecia estar bem, eis que voltam para o mato. Não sei
porque razões e nem sei se estou interessada em conhecer as razões
deles. A única coisa que me interessa é que há um povo que sofre, há um
povo que morre. Então esses indivíduos, tanto do lado da oposição,
quanto pelo lado dos que estão no poder, estão a trair os seus próprios
ideais. Enquanto uns lutavam contra o capitalismo, para criar uma
sociedade igual para todos, tornavam-se eles os capitalistas. Os outros
dizem que são os pais da democracia são os mesmos que violam a paz e
criam distúrbios pelo país.
Como você vê a organização da sociedade civil em Moçambique?
Como em qualquer parte do mundo, eu acho que a atuação da sociedade
civil é muito importante, é de extrema importância, mas eu tenho as
minhas críticas em relação a sociedade civil moçambicana. Eu já
trabalhei muito com movimentos da sociedade civil. Uma sociedade civil,
para ser forte, tem de ser autônoma, financeira e politicamente, mas o
que acontece com a maior parte das organizações não governamentais
(ONGs) em Moçambique não é isso. As nossas ONGs dependem do
financiamento estrangeiro, portanto, qualquer posicionamento de um
indivíduo dependente vai sempre tender para agradar àquele que paga. Por
isso que digo: não existe sociedade civil em Moçambique. Ainda não
existe. Existirá. O que temos são grupos de pessoas que são financiadas
por organizações estrangeiras. Que, de certa maneira, fazem diferença,
porque conseguem trazer uma nova visão e conseguem dinamizar um pouco
aquilo que é o país. A atuação da maior parte das ONGs em Moçambique em
relação ao governo é uma atuação quase de concorrência. É como se as
ONGs pudessem suprimir o governo. Ora, isso não pode acontecer, não
pode. Então são várias questões que se podem levantar na volta desse
assunto. A minha apreciação é que, de fato, o trabalho das ONGS é bom,
mas a sociedade civil moçambicana ainda precisa de muitos anos para se
afirmar. É uma sociedade dependente. Uma pessoa dependente nunca pode
ter um bom desempenho.
Tanto o investimento estrangeiro quanto a intervenção
cultural são muito fortes aqui em Moçambique. A senhora acha que isso
acaba influenciando muito nos rumos que o país toma?
Exatamente. Eu não acredito muito nos doadores. Se eles dão, é para
tirar alguma coisa. Não sei o que lhes encoraja a dar, porque não há
ninguém que dá para nada. Esse país é conhecido há muitos anos e sempre
se soube o potencial que Moçambique tem. A partir dos anos 1940, dos
anos 1950, sabe-se que o nosso país é rico em petróleo. Sabe-se. É
verdade que os estudos anteriores não eram tão desenvolvidos como os
estudos que hoje se fazem. Então, os indivíduos ou as instituições que
doam é porque sabem que amanhã poderão tirar benefícios. Estão a comprar
o país.
Bem, seguindo nesse ponto. Hoje se fala muito sobre as ricas
reservas de petróleo de Moçambique, que vão ser intensamente exploradas
em breve e que vão fazer o país crescer muito. A senhora acredita que,
apesar de entrar muito dinheiro no país, essa riqueza seguirá indo para
as mãos dos mesmos?
Eu não sei o que posso dizer sobre isso. O que eu estou a dizer é que
aqueles que estão a dar estão a comprar alguma coisa. Eu não olho paras
as ditas doações feliz. Quem dá, quer tirar alguma coisa. Então, estão a
comprar o país. E, sobre a história dos recursos naturais, confesso que
percebo muito pouco sobre esse assunto. Não entendo nem a mineração,
nem nada disso. Mas o que eu já vi acontecer em outras partes do mundo
me faz creer que isso vai a se replicar aqui. Conflitos, os conflitos
amardos que vão continuar, a desestabilização que vai continuar. Nós não
temos capacidade técnica nem mão de obra para controlar petróleo, nem
gás, nem ouro, nem nada. Não temos nada disso. E os que vêm explorar,
vêm, extraem e vão-se embora. A gente não sabe o que tiram, o que fazem.
Então, não sei.
Como você vê a aproximação do Brasil e de Moçambique – assim como com outros países da África?
Eu acho uma aproximação essencial. O Brasil não seria Brasil se a
África não existisse. Ah, isso está claro. Nós estamos ligados. Eu não
estou a falar das questões políticas, pois entendo muito pouco desse
mundo. Ou melhor, também não estou lá muito interessada. Mas essa é uma
aproximação essencial, porque o negro que foi ao Brasil, que hoje talvez
se calhar já não seja negro, devido a miscegenação, veio da África.
Então é muito importante essa relação. Há um cordão umbilical entre o
Brasil e a África, e aqui não falo só de Moçambique. Eu acho que essa
parceria tinha que ser para sempre. Quanto às empresas brasileiras, eu
não conheço muito as atuações delas, então não vou dizer muito, mas às
vezes é bom fazer essas críticas, que é para prevenir os problemas que
podem vir no futuro. Ora, o Brasil é uma potência, o Brasil é forte e
quando chega a um país como o nosso pode haver tendências para
colonizar, pois a colonização não está restrita à Europa, é uma questão
humana. O indivíduo tem tendências de suprimir o outro. E isso é algo
que se tem que prevenir.
Como as novelas brasileiras chegam em Moçambique e como elas
influenciam na criação de um imaginário da sociedade, principalmente dos
jovens?
Acho que vocês estão aqui há algum tempo e devem ter observado as
novelas que aqui passam. O gerente da empresa, na novela, o milionário, o
cientista são brancos. O carregador, o matador são pretos. Há uma
mudança nos últimos tempos, não sei a partir de que ano, mas agora, por
exemplo, há uma novela em que uma branca tem uma amiga mestiça. E
passeiam juntas, vão a festas, vão a lugares públicos juntos. Isso não
se via nas primeiras novelas que apareciam aqui. A negra ou a mulata
faziam as limpezas. Era bem isso, a mulata na prostituição, nas drogas. A
negra a varrer, o negro a carregar, a cozinhar, a servir. E o branco em
um status muito mais alto. Há uma tendência para a mudança, há um
pincelamento nas últimas novelas, mas muito pouco mesmo. Portanto, a
imagem que se passa é realmente a de um Brasil branco e poderoso. Isso
cria um estereótipo de um Brasil diferente. E achei muito interessante
essa abertura com o Brasil que permite que nós, com muito mais
facilidade do que antes, nos desloquemos até lá e nos comuniquemos com
os brasileiros, porque nós conseguimos captar a imagem do verdadeiro
Brasil. Antes não era possível, nós criávamos a imagem de um Brasil
parecido com a Europa. Quando, afinal, as coisas não são assim.
O que você acha que é mais difícil da sociedade Moçambicana:
se libertar desse colonialismo estrangeiro ou de questões ligadas à
tradição, como o patriarcado?
Eu referi que havia colonialismo dos dois lados, tanto na tradição
quanto no mundo europeu. O mais difícil de mudar é a mentalidade, seja
ela tradicional, seja ela da supremacia ocidental. Porque tudo trata-se
sempre de mentalidade. É muito difícil fazer a mudança. Até as mudanças
acontecerem, ó, meu deus… eu ainda me lembro, foi, talvez, há uns dez
anos: eu tinha minha vida tranquila, econômica e financeira minimamente
estabilizada na altura e houve uma reunião de familia em que os mais
velhos queriam tomar decisões em relação a aspectos familiares. Então
estava o avô, o tio-avô e os outros tios-avôs a volta, e eles que eram
os dirigentes do encontro. De acordo com as normas patriarcais, as
mulheres corriam por fora, não podem entrar, porque as decisões são
masculinas. Tomaram as decisões, que incluíam o pagamento de
determinadas despesas, então saem os homens da reunião e chamam a todos
para dizer que tem que pagar. Eu disse “não, eu não vou pagar por uma
coisa que eu não sei do que se trata”. “Ah, não! Tens que pagar porque
os mais velhos decidiram”. Foi quando eu comecei a perceber que ali não
se tratava de imposição, mas o sistema que estava a ser usado, sistema
familiar e patriarcal que não reconhecia a mulher com direito à palavra.
Deu uma confusão muito grande, porque nós todas dissemos: “Ok, os
homens decidiram sozinhos fazer das suas, então eles que paguem.” Pra
ver o quão difícil é a mudança e isso só acontece ao longo das gerações.
Você acha que tem um papel influenciador frente à juventude moçambicana?
Eu não diria que tenho um “papel”, porque essa história de papéis
está ligada às instituições. Só os indivíduos eleitos ou nomeados que
podem dizer que têm o seu papel ou a minha responsabilidade. Eu faço
aquilo que posso fazer. Eu dou a minha contribuição de acordo com as
minhas capacidades. Voluntária, desinteressada… E a minha idade, o meu
percurso me dizem que devo, de vez em quando, transmitir algum legado a
alguém. É por isso que eu faço determinadas coisas. Não porque eu sinta
que eu tenha um dever, um papel, uma responsabilidade. Socialmente eu
não tenho responsabilidade nenhuma. Hoje eu não estou a trabalhar em
instituição nenhuma, decidi ficar em casa por um tempo para escrever as
coisas que me agradam, não estou ligada nem às ONGs, nem ao governo, nem
à política, sou a cidadã mais independente do mundo. Portanto, não
tenho papel nenhum, faço aquilo que eu posso. Pronto!
Como foi ser a primeira mulher a lançar um romance aqui em
Moçambique? A senhora sofreu muito rechaço? Foi muito difícil lançar o
livro?
Havia outras mulheres escritoras com seus livros… recordo-me agora de
uma portuguesa, Glória de Sant’Anna, ela lançou contos; Clotilde Silva,
que fazia poesia; Lilia Mompé, que fazia contos; Lina Magaia, que fazia
crônicas. Então eu apareço a lancar um romance. Pra mim foi acidental,
não tinha a menor ideia, nem sabia o que era isso. Fui escrevendo e a
coisa ganhou volume. Publiquei. Muito longe de imaginar que estava a ser
a primeira mulher a publicar um romance. Anos mais tarde, quando me
aproximei disso, achei engraçado até, porque entre mim e as outras
mulheres que já tinham feito suas publicações, eu não via a menor
diferença. Hoje eu reconheço que, afinal, eu dei um passo especial.
Agora, as lutas sempre houve, e as minhas lutas estão relacionadas com a
raça e com o sexo. Vou explicar: Glória de Sant’Anna era branca, mais
velha ela foi pra Portugal – não sei muito bem. Clotilde Silva era
branca. Portanto, fazem parte das pessoas que tinham direito à educação.
Depois surge a Lilia Mompé, que é mestiça e, portanto, também faz parte
das pessoas que tinham acesso à educação depois dos brancos. Depois
surge a Lina Magaia, que estava ligada à revolução e vinha de um status
social mais elevado que o meu. Ela era negra. A primeira negra que
publicou depois das mulheres que eu mencionei foi a Lina Magaia. Depois
vem eu, que vem de lugar nenhum. Quando eu chego com a minha proposta de
trabalho, junto daqueles que já escreviam, acharam isso muito estranho e
olharam pra mim querendo saber quem é ela e donde que ela vem.
A gente veio conversando sobre o documentário que estão
fazendo sobre a senhora. Poderia comentar sobre a segunda parte do
filme, que vai retratar o momento mais espiritual, em que a senhora
estava doente?
Ah, eu acho que não tem nada de outro mundo. Isso é, os escritores
são sempre aqueles indivíduos que buscam a evasão e a abstração. Não sei
o que aconteceu comigo, porque eu estava a trabalhar. Naquele momento
de maior concentração em que eu buscava essa evasão, essa abstração, a
busca de uma ideia brilhante, a minha cabeça viajou (risos). Fui e não
voltei (risos). Deu uma crise terrível! Porque crise mesmo tive a
primeira e não se sabia exatamente o que era, depois a assistência que
eu tive não foi das melhores, o diagnóstico não era claro. Depois fiquei
hospitalizada durante uma semana e de lá para cá eu fiquei em
tratamento. Então as explicações que podem ser dadas… Como escritora eu
sei – aliás, os escritores e a maior parte dos artistas de vez em quando
têm umas viagens ao desconhecido (risos) – e durante a viagem para o
desconhecido eu me encontro com entidades que fazem parte de mim mesma.
Eu encontro com meu pai falecido ou com meus tios ou com minha mãe. Eram
pessoas que eu via e com elas convivia normalmente. O que me levou à
psiquiatria foi exatamente isso: meu pai vinha e conversava comigo e eu
ficava a conversar com ele animadamente e toda gente dizia: “A Paulina
tá a falar sozinha”, e eu não falava sozinha, tava a falar com ele. É
claro que com o tempo e com o tratamento que eu fui tendo, essas
imagens, manifestações, foram se apagando. A medicina deu uma explicação
ao meu estado, que é esta que estou a dar agora. A tradição dá outra
explicação sobre o assunto. As religiões dão outra. Vou ser muito clara:
as religiões dizem que isso é diabólico, como se meu pai fosse um diabo
alguma vez – esse é o grande insulto que eles podem dar a dignidade de
um ser humano. Os médicos têm lá as suas razões lógicas, pois atuam de
acordo com a lógica. E a tradição é muito clara: diz que tive um momento
de encontro com meus antepassados, com os espíritos deles.
A senhora acredita em alguma?
Acredito em duas, menos numa. Acredito nos médicos, naquilo que a
medicina diz, porque é lógico e coerente, e acredito na minha tradição.
Agora na Igreja… Deus me livre!
Este momento ajudou a senhora a produzir?
O que posso dizer é que ajudou-me a ter uma nova visão, isso sim. De
acordo com aquilo que eu pude ver e o que posso dizer sobre este momento
é isso. A morte não existe, existe, sim, uma mudança de mundo. Então, a
partir do momento em que eu vivi aquela situação… a morte é uma mudança
de mundo. Então a vida ficou mais prática e mais tranquila.
Já que a senhora acha que a morte é só uma passagem de mundo,
o que acha que deve deixar aqui – se é que precisa deixar algo aqui?
(Risos) Acho que a esperança de vida em Moçambique são uns 35 anos
[de fato, segundo o Banco Mundial, a expectativa de vida é de 49,5 anos
(2011)], eu tenho 58 então já estou fora do prazo (risos). Estou no
lucro, então acho que fiz o que pude fazer. O que eu deixo não sei. Não
sei se aquilo que andei a fazer tem algum valor. Mas tenho essa
preocupação de deixar alguma coisa.
Algumas pessoas aqui em Moçambique te taxam de radical. O que você acha disso?
Ah, deixa-os. (risos) As pessoas estão muito acomodadas e aceitam
tudo que é dado a elas, sem questionar. Isso acontece na maior parte das
academias, das instituições públicas ou privadas. As pessoas não estão
habituadas a questionar. Então, quando veem alguém que questiona, dizem
logo que é radical.
Fora escrever e pensar novos projetos, o que você gosta de fazer?
Sentar na minha varanda, olhar o vazio e tomar o meu copo de cerveja. (risos)
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