terça-feira, 14 de dezembro de 2021

O que seria de Sergipe sem Frei Enoque e seus companheiros da Diocese de Propriá?

 Zezito de Oliveira


Fiquei muito chateado quando, em 1981/1982, meu pai resolveu retornar da viagem que fez ao Rio de Janeiro no ano de 1969.

Isso porque, naqueles tempos de abertura ou de redemocratização, o Rio de Janeiro era um dos principais epicentros desse movimento nacional que atravessa toda a década de 1980.

Como abordo em um dos capítulos do primeiro livro que estou lançando, intitulado AMABA: O esquecido círculo de cultura da Aracaju dos anos de 1980, nessa década os trabalhadores perdem na economia, mas ganham na organização política.

A culminância é a chegada de Lula ao segundo turno nas eleições de 1989. De novo? É, a ponte para o passado regrediu tanto que poderemos ter Lula novamente candidato, e vencedor nas eleições de 2022, se não ocorrer um cataclisma, inclusive um atentado (não fake) contra o candidato.

Mas voltando ao Rio de Janeiro das décadas de 1970 e 1980, a  despeito da forte  presença de uma direita fisiológica e conservadora representada pelo velho Chagas Freitas e seu jornal  O DIA, o Rio de Janeiro tinha uma esquerda forte e em ascensão, tanto que em 1982 elegeu Brizola governador, não obstante tentativa de fraude — que contou com a participação das organizações Globo, a velha empresa  golpista dos Marinho, já na  época do presidente  Getúlio Vargas.

Quem quiser pode conferir isso em detalhes no documentário recém lançado, A fantástica fábrica de golpes, ainda inédito no Brasil, o qual, pode ser obtido mais informações  no   site do Catarse https://www.catarse.me/fabricadegolpesOs jornalistas brasileiros Victor Fraga e Valnei Nunes, residentes em Londres, se uniram ao produtor britânico John Ellis para fazer a continuação do documentário “Muito Além do Cidadão Kane”, (1993), de Ellis. A ideia é contar a participação das Organizações Globo no golpe de Estado de 2016.”

E aqui em Sergipe? O que me esperava? Um estado provincianamente atrasado e tradicional, pelo menos a partir do que percebia nas conversas dos familiares que vez ou outra visitavam meus pais, também não ouvia referências na imprensa nacional a alguma presença sergipana de destaque nas lutas sociais e políticas que forçaram a abertura do governo militar. A exceção foi umas duas ou três vezes, a leitura no Jornal de Brasil de críticas do deputado federal Jackson Barreto aos ditadores de plantão, o que naquele tempo poderia gerar cassação de mandato.

Mas aí, eis que em 1980, abrindo as páginas de uma edição de domingo do estimado Jornal do Brasil (JB) - 17/08/1980, sou surpreendido com uma extensa reportagem sobre os enfrentamentos da diocese de Propriá com os grandes fazendeiros do sertão e do baixo São Francisco.

A reportagem listava uma sequência de atos violentos contra líderes religiosos da diocese de Propriá com sérios riscos de provocar a morte de um deles, incluindo a do Frei Enoque.

1 - No dia 03 de fevereiro de 1978, em plena feira, o Prefeito de Porto da Folha, Antônio Pereira Feitosa, tentou, por duas vezes, espancar Frei Enoque Salvador de Melo.

2 – No dia 3 de março de 1978 a casa paroquial de Ilha das Flores foi arrombada. O bispo, juntamente com o vigário-geral, prestaram queixa à polícia. Nenhuma providência foi tomada.

3- No dia 14 de Outubro de 1978, no povoado de Poçãozinho,  município de Canhoba, o Sr.  Antonio Britto,  Prefeito de Propriá, o Sr. Elcio Britto e o Dr. Francisco Novaes, atual juiz de direito de Porto da Folha tentaram agredir o Padre Nestor. O Sr. Elcio Brito chegou a ameaçar de morte o Padre Nestor. Nenhuma providência foi tomada. 

Segue várias outras denúncias até o ano de 1980, como a tentativa de espancamento contra Frei Enoque e Padre Nestor, assim como ameaças de morte a este, campanhas de desmoralização contra Dom José Brandão de Castro, bispo de Propriá, o vigário de Ilha das Flores e os pobres que resistiam a perseguição, tentativa de sequestro das irmãs Liege e Salvadora, em Penedo. Interrupção da missa na catedral de Propriá, por pistoleiros e jagunços e com ameaças de morte.

Já em outra edição de domingo do JB (15/09/1985), “Em Sergipe , o conflito entre a tribo Xokó, que habita a ilha de São Pedro, no município de Porta da Folha, a 200 quilômetros de Aracaju, e os fazendeiros da região, acabou envolvendo a Diocese de Propriá, através de Frei Enoque Silva, que sempre esteve ao lado dos índios, exercendo grande influência para conscientizá-los sobre a posse da terra.”

E enfrentando os riscos inerentes a esse tipo de opção evangelizadora, que levou à morte muitos padres, irmãs e sindicalistas naqueles anos, Frei Enoque e seus companheiros realizam celebrações de ação de graças pelas suas caminhadas e superação ou livramento  dos perigos a que estiveram submetidos.

Neste dia, em  05 de dezembro , na paróquia de Nossa Senhora da Conceição, em Porto da Folha, e em 12 de dezembro, na Ilha de São Pedro, foram realizadas missas e atividades festivas pelo cinquentenário de ordenação sacerdotal do Frei Enoque.  Assim também com esses mesmos objetivos,  foram promovidos eventos  civis e religiosas em homenagem a Frei Roberto, Irmã Francisca, companheiros de jornada de Frei Enoque

 É verdade que com o tempo Frei Enoque entrou na vida partidária, fez alianças com antigos adversários para vencer eleições, governou com a direita, foi acusado de comportamento autoritário (o que vem de longa data) mas, mesmo assim, reitero o que publiquei abaixo, quando recebi o convite de divulgação para participar das atividades celebrativas em homenagem a Frei Enoque.

Quem está escrevendo ou planejando escrever a biografia do Frei Enoque, assim como um documentário? Há tempos conversei com a professora Ana Lúcia, quando deputada, a esse respeito. E a proposta era mais ampla, não apenas focalizando o Frei Enoque. Propunha uma indicação ou projeto de lei e a criação de um fundo com recursos do salário como parlamentar, acrescido de contribuições de Sindicatos, MST, Ongs e pessoas físicas. Em um grande mutirão de financiamento colaborativo. A proposta não prosperou. Quem vai lembrar isso aos atuais detentores de mandatos progressistas?

Quem ler este artigo de opinião, leve à frente essa demanda pelo registro e difusão da memória histórica dos lutadores e lutadoras do povo.

Historiador, Professor de História na rede pública estadual, agente/produtor/assessor de iniciativas culturais de base comunitária, autor do livro AMABA: O esquecido círculo de cultura da Aracaju dos anos de 1980.


Leia mais: 

O confronto da fé ante o escândalo da pobreza: A emergência da opção preferencial pelos pobres na Diocese de Propriá.

UM RELIGIOSO PERNAMBUCANO NO SERTÃO SERGIPANO: Trajetória de Frei Enoque e a questão fundiária. 1942-1986

FREI ENOQUE: VIDA E MISSÃO, UMA CONTESTAÇÃO EM NOME DO EVANGELHO



 

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