sábado, 14 de fevereiro de 2015

É carnaval cidade!!

O Carnaval da Libertação na perspectiva de um monge

09/02/2015
MARCELO BARROS é um monge beneditino que une mística e política (busca do bem comum), oração com a caminhada dos movimentos populares e dos indígenas no Brasil, na América Latina e no mundo. É um dos conferencistas mais solicitados aqui e fora do Brasil pois em tudo o que fala imprime uma aura de espiritualidade e ao mesmo tempo de engajamento para a transformação do mundo no sentido da justiça e da paz. Esse artigo sobre o Carnaval da Libertação mostra bem seu espírito. Reconhece a celebração da vida e ao mesmo tempo associa esta celebração com a alegria espiritual que nos vem do encontro com Deus ou com a Divindade, conhecida por muitos nomes. Vale a a pena ler este texto no contexto do Carnaval que se aproxima. Lboff
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Em várias cidades brasileiras, já estamos em tempo de Carnaval. No Rio de Janeiro, Olinda, Salvador e outras cidades tradicionais, os blocos estão nas ruas e as pessoas superam as dores e angústias do cotidiano através da dança, das brincadeiras e da alegria do Carnaval. Ainda há pessoas e grupos que veem nisso mera alienação. Alguns grupos religiosos condenam o mundanismo e julgam o Carnaval como produto do diabo. Não há dúvidas de que o Capitalismo faz de tudo mercadoria. No Carnaval, explora um erotismo simplesmente comercial. Fomenta o uso exagerado de bebidas e mesmo de drogas. Tudo isso cria um circulo vicioso com a violência urbana que explode em alguns fenômenos de massa não bem canalizados. No entanto, apesar desses problemas, toda festa, mesmo a mais aparentemente mundana, reúne pessoas em uma expressão de alegria e tem, por isso, uma dimensão nobre e, podemos mesmo dizer: espiritual.

De um modo ou de outro, todas as culturas valorizam a festa como sinal e antecipação do pleno e definitivo encontro com a divindade. Jesus afirmou que o reinado divino vem ao mundo, qual uma música deliciosa que convida todos a dançarem. Ele se queixa de sua geração que parece com pessoas que, mesmo ao som da música, não reagem e ficam indiferentes (Lc 7, 31- 32). Ninguém deveria ficar apático diante dos sinais do amor e da comunhão humana que tornam a vida, mesmo sofrida, uma festa de alegria, inspirada pelo Espírito. Conforme o quarto evangelho, Jesus começou a anunciar o reinado divino no mundo, transformando água em vinho simplesmente para que não faltasse alegria em uma festa de casamento (Jo 2).

As pessoas e comunidades marcam a vida pela cadência das festas. Cada ano, o aniversário natalício recorda o dom da vida. Conquistas importantes, como conclusão de um curso, obtenção de um novo trabalho e casamentos são celebrados com festas. Todo país tem festas cívicas e cada religião, festividades litúrgicas. O que caracteriza a festa é a liberdade de brincar, o direito de subverter a rotina e de expressar alegria e comunhão, através de uma comida gostosa, a música contagiante e a dança que unifica corpo e espírito.

Na Bíblia, se conta que, quando a arca da aliança foi transferida das montanhas para Jerusalém, “o rei Davi dançava alegremente”. Davi dançou para agradecer a bênção divina sobre o povo. Vários salmos aludem à dança como forma de oração. Apesar disso, a dança não é muito valorizada nas liturgias. Nas sinagogas, o uso variou muito, de acordo com o tempo. Em épocas mais recentes, principalmente em festas como a da Simchá Torá, a festa da “alegria da Lei”, no nono dia depois da festa das Tendas (Sucot), a dança é o rito central. Em um artigo na internet, o rabino Nilton Bonder explica: “Nós dançamos com a Torá e não nos damos conta como dançamos com a vida e de que a dança revela muito”.

A dança é mais do que um método. É caminho de meditação interior e comunitária. Indica abertura do ser humano a uma dimensão de transcendência. No Brasil, as danças são ancestralmente praticadas pelas religiões indígenas e afro-descendentes. Muitas vezes, além de ser uma forma de orar com o corpo, servem também como instrumentos de cura e equilíbrio para a vida.

As formas mais conhecidas de danças sagradas espalhadas pelo mundo vêm do Oriente e são a Hatha Yoga, T´ai Chi e as danças do Dervixe na tradição mística Sufi (muçulmana). Um dervixe disse ao escritor grego Nikos Kazantzakis: “Bendizemos ao Senhor, dançando. A dança mata o ego e uma vez que o ego é morto não há mais obstáculos que o impeçam de se unir a Deus”.

Lamentavelmente ao se falar de dança sagrada, corre-se o risco de separar o sagrado e o profano, como se houvesse uma dança santa e a outra mundana e pervertida. É claro que, como toda atividade humana, a dança também pode se tornar instrumentalizada em espetáculos de mau gosto. Entretanto, se, em seu erotismo, ela é humana e humanizadora, repõe as energias do amor em um equilíbrio unificador da pessoa e da comunidade. Desse modo, toda dança é sinal da bênção divina e instrumento de cura do corpo e do espírito. Tanto no Carnaval, como no dia a dia, é importante valorizar os ritmos, músicas e danças de cada cultura.

Nos anos 70, Chico Buarque compôs a melodia para o filme “Quando o Carnaval chegar”, uma comédia musical de Cacá Diegues que tomava o Carnaval como parábola da festa da libertação. Apesar de que superamos a ditadura militar e, hoje, vivemos uma democracia formal, ainda há muito para alcançarmos uma igualdade social e uma realidade de justiça que signifique uma verdadeira libertação para todo o nosso povo. Por isso, continua válida a esperança proposta nas imagens daquela música de Chico, cantada no filme, junto com Maria Bethânia e Nara Leão: “Quem vê assim, tão parado e distante, parece que eu nem sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar”. É bom que nos Carnavais que passam, não deixemos de esperar e nos preparar para o Carnaval definitivo, mais profundo e transformador da vida.

Carnaval no blog da Acão Cultural.. AQUI



Outros Olhares

Carnaval em comunidade Giuliana Capello - 21/02/2012    

BLOGS |Gaiatos e Gaianos


Este deve ser o quinto carnaval que passo na ecovila e o primeiro com direito a marchinhas, fantasias e muito pandeiro. Incrível, porque estou mais para o pessoal que “é ruim da cabeça ou doente do pé”, mas mesmo assim posso dizer que foi – está sendo – muito divertido.
Cada vez mais percebo que viver em comunidade requer abertura para olhar cara a cara nossos preconceitos e ilusões. Sempre achei, nos meus sonhos mais remotos, que minha vida na ecovila seria baseada em yoga, meditação, comida vegetariana e música suave com toque oriental. E ponto, ou seja, imaginava que seria apenas isso. O tempo, no entanto, tem me mostrado situações bem diferentes – e nem por isso menos interessantes.
É verdade que muita gente na comunidade tem essa ideia de sossego, introspecção e desenvolvimento do espírito. Mas isso não é regra nem serve para todo mundo. Aprendi, nesses anos de convivência com gente de histórias e origens diversas, que o mais gostoso é a diversidade, as oscilações ou os ciclos, as surpresas, as frestas que abrem novos mundos. Não existe linearidade nem predestinações. A vida por aqui pode, sim, ser feita de humores, sol e chuva, mantras e samba-enredos. Por que não?
O que você acha mais rico: uma plantação de eucalipto ou um pedacinho da floresta amazônica? Se você ficou com a segunda opção é sinal de que conhece os prazeres e as delícias da biodiversidade… Em grupo é assim. Querer pasteurizar pessoas e encaixá-las todas no mesmo rótulo é desgastante, inócuo, sem sentido.
Aos poucos, estou aprendendo a lidar com quem é diferente, com gente que come carne, que sabe cantar dezenas de sambas e que guarda em casa caixas e mais caixas de fantasias e apetrechos para brincar o carnaval. Tempos atrás, algumas dessas características (especialmente a que se refere à alimentação) geravam em mim um afastamento quase involuntário, um pé atrás que me impedia de ir além e de conhecer um pouco mais de perto essas pessoas. (Ainda acho que não comer carne, por exemplo, faz parte do caminho de quem busca uma vida mais sustentável por várias razões. Mas isso não pode virar motivo para eu me afastar de ninguém.)
Este feriado tem sido muito significativo para todos da ecovila, tenho certeza. Todas as casas estão ocupadas pelas famílias e com direito a hóspedes que, em geral, são os amigos da comunidade que ainda não têm casa construída. Estamos todos envolvidos em atividades que acontecem concomitantemente e que, vez e outra, têm o dom de unir todo o grupo. Tem gente aproveitando o descanso para curtir a criançada no camping instalado num quintal bem aconchegante; gente que se reúne para participar de um curso de vitrofusão; gente que organiza projeção de filme com bate-papo sobre agricultura na ecovila; gente que faz churrasco com cerveja, samba e pandeiro; gente que sabe agregar pessoas e que consegue – quase num passe de mágica – fazer surgir na comunidade um verdadeiro bloco de carnaval; gente que aproveita o feriado para pintar paredes, limpar a casa e sonhar com a obra terminada… É de gente assim que eu me alimento e descubro o sentido da palavra entusiasmo.
E mais: saber que as casas têm sempre a porta aberta para receber é, de longe, um dos valores de que mais gosto por aqui. Ainda que existam diferenças, ainda que sejam diversos os altares, os times de futebol e as visões políticas, a comunidade prefere o abraço, o riso, o encontro, a lição que vem com o estranhamento. É óbvio que os espinhos também estão lá e os conflitos deixam a gente de boca torta de vez em quando. Mas nem assim posso dizer (de coração) que melhor seria morar num apê e não saber o nome do vizinho ao lado.
Esse papo todo de ecologia, de ambientalismo, de sustentabilidade precisa ter bases fortes no afeto e nos laços que ligam as pessoas. Este é o pilar central, o verdadeiro alicerce. Nossos maiores desafios não são de ordem técnica ou tecnológica. Não somos pouco sustentáveis por falta de equipamentos verdes que transformem poluição em combustível limpo para nossos carros. Nem ficaremos mais ecológicos se pudermos construir, um dia, cidades inteiras com os mais modernos recursos. A mudança toda começa de dentro para fora. Pessoas com comportamentos e hábitos insustentáveis não se tornam mais razoáveis com o planeta ao mudarem de endereço, sabe? É preciso algo mais, algo que nos inspire, nos mobilize, algo que alimente nossos sonhos e nos faça seguir em frente. Tal como num baile de carnaval, a graça está no colorido e na possibilidade de vermos o outro e nós mesmos com outros olhos.
Foto: Desculpem o efeito na imagem. Foi um cuidado para dificultar a descoberta das verdadeiras identidades… Sabe como é…        

Carnaval: que desejos te seduzem?


Festival Aho, 2012/13, em Ilha Comprida (SP): outro momento em que desejo não rima com poder
Festival Aho, 2012/13, em Ilha Comprida (SP): outro momento em que desejo não rima com poder
Celebrar corpo, consciência e prazer pode ser alternativa à cultura que reduz sexo a fetiche de egos e poderes

Por Katia Marko, editora da coluna Outro Viver | Imagem: Paco Antonino
Chegou o Carnaval. Momento tão esperado por muitos. Espaço para soltar o freio, viver fantasias, desfrutar o prazer. Pacatos cidadãos experimentam o sonho de virar reis e rainhas. Desejos inconscientes escapam pela janela agora aberta com o consentimento social. Tudo vale na busca do prazer.
O meu Carnaval, há alguns anos, tem sido na Comunidade Osho Rachana, onde promovemos um grupo chamado Carnawow. Já está confirmada a participação de 70 pessoas para este ano. Serão quatro dias de trabalho corporal, meditações, trilhas na natureza, encontros, diversão e criatividade. Tudo para aumentar a capacidade de curtir a vida. Pra começar, vamos “limpar o terreno”. Sessões de bioenergética e meditações pra ajudar a soltar tensões e sentimentos guardados e reconectar com a energia do corpo. No domingo, depois de reconectar consigo mesmo, é a vez de encontrar o outro, no sentido mais rico da palavra. Trabalhos terapêuticos que vão ajudar a recuperar a confiança na amizade. Já na segunda-feira, é o espaço para a celebração e o êxtase. O grupo é dividido para criar e apresentar duas escolas de samba com direito a alas, bateria, carros alegóricos e o que mais a imaginação permitir.  No último dia, é relaxar, curtir a natureza e meditar.
Mesmo que todos nós busquemos o prazer, esta é uma palavra que evoca sentimentos conflitantes. Por um lado esta associada com o que é “bom”. Mas, a maioria das pessoas acharia desperdício uma vida devotada ao prazer. Temos medo que o prazer nos leve a caminhos perigosos, onde esqueceríamos deveres e obrigações, deixando que nosso espírito se corrompesse pelo prazer descontrolado.
No livro Prazer, uma abordagem criativa da vida, o médico-psiquiatra Alexander Lowen, explica que todos nós queremos que a vida seja mais do que a luta pela sobrevivência, e deveria ser agradável, e sabemos que todos têm amor a dar. “Mas quando o amor e a alegria desaparecem, sonhamos com a felicidade e procuramos a diversão. Não conseguimos perceber que o alicerce de uma vida alegre é o prazer que sentimos em nossos corpos, e que sem essa vitalidade, ela se transforma na cruel necessidade de sobrevivência, onde a ameaça de tragédia nunca está ausente”.
TEXTO-MEIO
Na real, em nossa cultura, todos receiam o prazer. “Como a cultura moderna é dirigida mais pelo ego do que pelo corpo, o poder se transformou no principal valor, reduzindo o prazer a uma situação secundária. A situação do homem moderno se assemelha à de Fausto que vendeu a alma a Mefistófeles em troca de uma promessa que nunca poderá ser cumprida. Apesar da promessa de prazer ser uma tentação do diabo, o prazer não pode ser proporcionado pelo diabo”, diz Lowen.
Segundo ele, todos nós, como o Dr. Fausto, estamos prontos a aceitar as tentações do demônio. Ele está dentro de cada um sob a forma de um ego que nos acena com a realização de um desejo desde que o obedeçamos. A personalidade dominada pelo ego é uma perversão diabólica da verdadeira natureza humana. O ego não existe para ser mestre do corpo, mas sim seu servo leal e obediente. “O corpo, ao contrário do ego, deseja prazer e não poder. O prazer é a origem de todos os bons pensamentos e sentimentos. Quem não tem prazer corporal se torna rancoroso, frustrado e cheio de ódio.
O pensamento é distorcido e o potencial criativo se perde. A perda se torna autodestrutiva. O prazer é a força criativa da vida. A única força capaz de se opor à destrutividade em potencial do poder”.
Para Lowen, o prazer e a criatividade estão relacionados dialeticamente. Sem prazer, não haverá criatividade. Sem uma atitude criativa diante da vida não haverá prazer. “Essa dialética surge do fato de ambos serem aspectos positivos da vida. A pessoa viva é sensível e criativa. Através da sensibilidade coloca-se em harmonia com o prazer e através do impulso criativo procura sua realização. O prazer na vida encoraja a criatividade e a comunicação, e a criatividade aumenta o prazer e a alegria de viver”.
Então, para vivermos plenamente o prazer e a criatividade temos que mexer nas tensões do nosso corpo, respirar profundamente e expressar nossas emoções. Essa é a proposta do Carnaval na comunidade em que moro: prazer com consciência.

Katia Marko é jornalista, terapeuta bioenergética e uma pessoa em busca de si mesma.
Para ler todos os seus textos publicados em Outras Palavras, clique aqui

O carnaval e a cultura do descartável

         
          O carnaval me fez recordar do tema da cultura do descartável, que vigora em nossos dias. Nestes dias, há quem esteja procurando muita bebida e sexo. Vive-se a ideia de que “ninguém é de ninguém!” e quem for contra esta ideologia é considerado ultrapassado e careta. Segundo esta ideologia, valores como respeito e responsabilidade podem ser descartados. “Vamos beber muita cerveja e comer muita mulher!”, gritava um jovem embriagado na Praça Sete, no centro de Belo Horizonte. Expressões como esta não são ignoradas porque muita gente enxerga no outro uma coisa a ser usada e descartada. O verbo “comer” relacionado à mulher é a prova disso: desvinculado de qualquer sentimento nobre, há mulheres que se permitem ser “comidas” por muitos homens. Estes as utilizam e, em seguida, as descartam.

            Este problema não se restringe ao período do carnaval, nem está exclusivamente ligado ao tema da sexualidade. Vamos, brevemente, oferecer um olhar mais abrangente, analisando o tema nas relações interpessoais (amizade, namoro e casamento), na economia de mercado capitalista e na religião. Trata-se de um tema que precisa ser discutido pelas instituições família, escola, igreja e estado, tendo em vista a humanização das pessoas e das instituições. Para a necessária mudança de atitude, a mudança de mentalidade é essencial. Por isso, tal discussão é sempre bem-vinda e deve ser cada vez mais promovida e/ou incrementada. Claro que num curto espaço de um artigo breve não abordaremos todas as facetas do problema, mas ofereceremos apenas algumas provocações.

            Nas relações interpessoais está se tornando comportando normal o fato de uma pessoa procurar a outra para simplesmente aproveitar-se dela, visando a satisfação de seus próprios interesses. Quando estes são satisfeitos, aqueles que contribuíram para tão vergonhosa situação são descartados. Neste sentido, não há amizade, nem namoro, nem casamento, mas oportunidades que precisam ser aproveitadas. Nestes três tipos de relações, o amor deveria ser o fundamento, em vista da felicidade. As pessoas que se aproveitam das outras nestas relações costumam falar e demonstrar amor, mas tudo não passa de uma mentira diabolicamente elaborada com belas palavras, presentes e gestos de carinho que escondem as reais intenções.

            Desse modo, quando conseguem o que realmente querem, o outro é descartado com requintes de frieza, rejeição e indiferença. Quem descartou trata o outro como se este estivesse morrido. Como este outro não tem mais nada a oferecer, então é tratado com desprezo, caindo no esquecimento. Por parte de quem desprezou não há sofrimento porque não existia amor. Como aquele que foi desprezado não passava de uma coisa, então não há nenhum sentimento no ato de descartar. Acontece como quando alguém utiliza um copo descartável e depois joga fora. Não há nenhum vínculo afetivo entre o copo e a pessoa porque o copo é um mero meio para a satisfação da sede de água. Quando não há amor, ao descartar o outro, não há nenhum sentimento de perda. Não se perde nada, pois já se ganhou o que se almejava.

            Isto explica porque pessoas frias são, geralmente, perigosas. No silêncio de sua intimidade planejam formas eficientes para a satisfação de seus interesses mesquinhos. Assim, demonstram quem realmente são: egoístas, individualistas, materialistas e, naturalmente, golpistas. Elas desconhecem o verdadeiro valor e sentido do amor, da solidariedade, do perdão, do encontro com o outro, da alegria e da reciprocidade. Interiormente, costumam ser angustiadas, ansiosas, ressentidas, rancorosas porque suas consciências não as deixam em paz. Elas sabem que estão equivocadas, que trilham um caminho que não traz paz de espírito nem salvação. 
Quando descobertas em suas tramas, geralmente, são abandonadas no seu isolamento e na sua falta de amor. Sofrem bastante, mas não o suficiente para renunciarem ao egoísmo que as tornam insensíveis. Para estas pessoas, os problemas do mundo não lhes interessam, pois estão preocupadas consigo mesmas, com o próprio bem-estar. “Não quero saber de nada nem de ninguém! O que quero é ser feliz!”: esta é a lógica que norteia suas vidas.  Nesta lógica não há espaço para o amor a Deus e ao próximo. Este é um dos fatores que explicam porque muitas amizades, namoros e casamentos não duram: as pessoas renunciam ao amor, aderindo à satisfação de seus próprios interesses, vivendo a cultura do descartável.

            Na economia de mercado capitalista, a pessoa valorizada é aquela que consome. Quem não consome não tem valor nenhum. As pessoas são tratadas como meros destinatários de serviços e produtos a serem consumidos. O mercado cria necessidades para seus destinatários. O lucro é a meta. Tudo é calculado ao infinito. Deve-se consumir, desenfreadamente. Tudo é produzido para durar pouco. Para não ser excluído é necessário estar na moda. Esta dita o figurino do momento. Aparece a ditadura do corpo perfeito. O mercado dita o que as pessoas devem comer, vestir, calçar etc. A ideologia de mercado ensina até a maneira de pensar e de ser. Direta e indiretamente, através da mídia, que veicula a propaganda, as pessoas são aliciadas a viverem da maneira como manda o mercado. Todos tendem a fazer e consumir as mesmas coisas. Isto gera uma falsa alegria, um gozo passageiro, que quando passa, dar lugar ao vazio.

            O mercado ensina que além das mercadorias, as pessoas também são coisas, objetos de consumo. Mulheres e homens podem ser comprados e vendidos para ser consumidos. Trata-se da sexualidade mercadológica. O corpo humano, principalmente o feminino, é utilizado para atrair e despertar o desejo dos consumidores. O mercado trabalha em função dos desejos das pessoas, manipulando-os, inteligentemente. As pessoas consomem ao sentir vontade e esta está ligada ao desejo. Dominada pelo desejo, a vontade perde seu controle. Explora-se, demasiadamente, os sentidos humanos, especialmente a visão e o paladar. Descontroladas, as pessoas se endividam, mas isto não lhes é motivo de preocupação porque o que importa é consumir. O mercado as convence de que viver endividado é normal, o anormal é não viver consumindo. Aqui não estamos nos referindo à satisfação das necessidades básicas, mas ao consumo do supérfluo, do desnecessário.

            Tudo o que o mercado produz atualmente tem curta durabilidade porque tudo é produzido para ser jogado no lixo em pouco tempo. Nunca se produziu tanto lixo na história da humanidade como em nossos dias. O meio ambiente não suporta mais tanto lixo! Isto tem provocado um desastroso desequilíbrio na natureza, mas, geralmente, as pessoas não estão preocupadas com isso. O discurso sobre a proteção ao meio ambiente costuma ser desprezado pela maioria. Esta pensa que a natureza é inesgotável, que suporta a sede insaciável do ser humano dominado pelo capitalismo selvagem. O cuidado pela natureza é descartado. Apesar da crise de escassez de água, atualmente vivida no Brasil, a maioria das pessoas não está dando a mínima atenção ao necessário cuidado para com a natureza, mãe e mestra da vida.

            Por fim, consideremos o tema da cultura do descartável na religião. Como estamos no Brasil, e a maioria do nosso povo se declara cristã, então nossas considerações se referem, especialmente, aos católicos e aos não-católicos, também conhecidos como “evangélicos”, terminologia não muito correta quando assistimos a determinados abusos em nome do Evangelho. Evangélica é a pessoa que vive de acordo com o Evangelho de Jesus. Por isso, considerar evangélicos todos os não-católicos é correr certo risco. Certamente, há entre muitos aqueles que, de fato, são evangélicos. Afinal de contas, como ocorre a cultura do descartável na religião? Neste quesito, sintam-se contemplados os demais crentes de outras religiões. Por incrível que pareça, este último quesito de nossas meditações é mais complexo do que os demais porque envolve o tema da fé e da transcendência. Portanto, por mais que queiramos esgotá-lo, ficará, como sempre, espaço para maiores desdobramentos.

            A função precípua da religião é a de religar o ser humano a Deus. No Cristianismo, este Deus se revelou na pessoa de Jesus de Nazaré. Não é um desconhecido, oculto nas alturas dos céus, mas é o Emanuel, Deus que permanece conosco. O seguimento de Jesus se encontra no centro da genuína espiritualidade cristã e, assim, a religião é chamada a oferecer às pessoas a oportunidade de fazerem uma experiência com Deus. Esta experiência não é algo ligado a um sentimento de bem-estar momentâneo. O Cristianismo propõe outra coisa, que é permanente: o seguimento de Jesus de Nazaré. Este seguimento constrói o Reino de Deus. Aqui está o que podemos chamar de núcleo fundamental da fé cristã e do Evangelho de Jesus. Trata-se do essencial.

            Ocultando o essencial, a religião tende a oferecer outras coisas, e não a proposta de Jesus. Com o surgimento do neopentecostalismo, salvo exceções, apareceu a Teologia da Prosperidade com suas promessas de sucesso e bem-estar. Criou-se a religião voltada para o bem-estar econômico e espiritual. Deus é tratado como fonte de bênçãos, curas e bens materiais. Prega-se a ideia de que aquele que crê recebe tudo de Deus. A fé é fonte de prosperidade. A religião é transformada numa agência de milagres. As pessoas acorrem à ela para encontrarem soluções eficazes para seus problemas materiais e espirituais. Não se estimula nem se promove um autêntico encontro com Deus. Não há conversão, mas um negócio com Deus. Quando encontram a “solução” para seus problemas, geralmente Deus é descartado porque é tratado como o “tapa-buracos”, o suporte, a fonte de bênçãos e de bens.

            Assim como no mercado financeiro, o mercado religioso lida com o imediatismo. Deus tem que se submeter aos desejos das pessoas e tem que socorrê-las no exato momento que elas querem. Geralmente, elas não procuram conhecer e viver a vontade de Deus, mas impõem a própria vontade. Deus não é livre nem libertador. Ele não tem escolha. A única alternativa que lhe resta é operar o milagre sem demora. Prega-se que o tamanho da graça está ligado à quantidade financeira da oferta dada às Igrejas. A generosidade divina está condicionada à oferta. Quanto maior a oferta, maior a graça! Promove-se chantagens de toda ordem para incutir essa ideologia na cabeça das pessoas e tudo é feito com tanta emoção que elas passam a acreditar que realmente Deus age dessa forma.
A manipulação de inúmeras passagens bíblicas ajuda os pastores mercenários a terem êxito no seu negócio. Milhões de pessoas não esclarecidas caem nesse tipo de golpe em nome da fé. Na relação entre povo e pastores, e entre Deus e o povo acontece a cultura do descartável. Neste falso Cristianismo não há comunidade nem povo de Deus, mas investimento financeiro em vista do sucesso. As pessoas entram nos templos religiosos como se estivessem entrando no shopping: querem consumir, comprar bênçãos, fazer um negócio com Deus, satisfazer seus desejos.

Não adoram o Deus e Pai de Jesus, mas criam um ídolo, praticando, assim, o gravíssimo pecado da idolatria. Demônios e dinheiro são as duas palavras que mais aparecem na pregação dos pastores. Não há nada de divino, tudo é profanamente pensado e realizado, em vista da grandiosa arrecadação financeira. O mercado religioso faz circular muito dinheiro. Este é abundante, enquanto que a caridade praticamente não existe, salvo louváveis exceções. Este não é um problema exclusivo de inúmeras denominações religiosas neopentecostais, mas também de alguns segmentos das Igrejas cristãs tradicionais.

Para concluir, um pensamento para resumir estas breves considerações: enquanto cristãos, precisamos redescobrir a centralidade do Evangelho de Jesus, que é o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Amar como Jesus amou: na gratuidade, na generosidade, na alegria e na liberdade. Somente assim a cultura do descartável poderá ser vencida. O amor vence o egoísmo e a indiferença. Amar de verdade é cuidar do outro, assumir a responsabilidade para com ele.

Na cultura do descartável ninguém cuida de ninguém e ninguém é responsável por nada. Relega-se ao destino, à má sorte e ao acaso os males que afetam a humanidade. Precisamos recuperar o encontro com o rosto do outro, rosto que interpela, que revela, que convida para o amor. Somente assim, aprenderemos a sermos mais tolerantes e pacientes diante das falhas do outro, mais humildes e atentos às necessidades que surgem. Enfim, descobriremos que outro mundo é possível quando aprendermos, de fato, a sermos fraternos. O amor nos faz irmãos e liberta-nos de todo mal, nos humaniza e nos salva.

Tiago de França

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