domingo, 12 de julho de 2015

Play list - Mário de Andrade, o turista aprendiz. Homenagem a um dos maiores pesquisadores/estudiosos da cultura brasileira, nos 70 anos da sua morte.

 

A Barca em: O Turista Aprendiz

Por ocasião dos 70 anos da morte de Mário de Andrade, a Cultura Brasil digitalizou o especial com o grupo paulistano A Barca, que recuperou a pesquisa iniciada por ele nos anos de 1920

Júlio de Paula 24/02/15 16:18 - Atualizado em 24/02/15 18:55

Passados 70 anos de sua morte, Mário de Andrade (09/10/1893 / 25/02/1945) continua sendo conhecido por sua importância como autor de Macunaíma – grande marco da literatura modernista brasileira. No entanto, pouca gente sabe que além de lecionar estética musical e história da música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, em sua casa da Rua Lopes Chaves, o poeta dividia-se entre as funções de professor de piano, crítico musical e musicólogo.

 

Durante toda sua vida, com objetivo de fornecer material de base para compositores eruditos, Mário dedicou-se a recolher (muitas vezes do próprio punho) e a compilar um cem número de melodias do repertório da cultura popular. Especialmente em suas duas viagens – ao Norte/Nordeste (1927) e novamente ao Nordeste (1928-29) editadas sob o título de “Turista Aprendiz”, Mário fez um mergulho profundo em tradições imemoriais, como o Catimbó, o Pastoril, o Boi e os Cocos.

 

Por ocasião da efeméride de sua morte, a Rádio Cultura Brasil apresenta o especial “A Barca em: Turista Aprendiz”, de 1999, programa gravado nos estúdios da emissora que registra o início das pesquisas do grupo paulistano em torno do etnomusicólogo Mário. Acompanhe também outros especiais que têm como tema um dos mais ilustres e ilustrados brasileiros.
Mário de Andrade, brasileiro que nem eu.
 
Ficha técnica
Roteiro e produção: Eduardo Weber
Apresentação: Fernando Uzeda
Músicas ao vivo gravadas nos estúdios da emissora por Agostinho Leitão em abril de 1999.
Supervisão técnica: Wilson Guilhemat
____________
 
Grupo A Barca
Lincoln Antônio: piano, voz e direção musical.
Marcelo Preto, Sandra Ximenez e Juçara Amaral: voz.
Renata Amaral: Baixo elétrico e voz.
Beto Teixeira: percussão.
Thomas Rohrer: rabeca e saxofone.
Ligeirinho: percussão.
Chico Saraiva: violão.
____________
 
Repertório
Temas de domínio público recolhidos por Mário de Andrade em suas missões folclóricas
“Mandei fazer uma rede”
Música de feitiçaria: “Mestre Carlos” e “Nanã Giê”.
“O mina Terê-Terê”.
“Marajó já tem fama”.
“Ê Manué”.
“Dendê trapiá”.
“Ê Tum”.
Pontos de jongo recolhidos pelo grupo A Barca no Bairro de Tamandaré, da cidade de Guaratinguetá. Ano de 1997.
“Patrão, prenda seu gado” (Pixinguinha / Donga / João da Baiana).
“Batuque de Pirapora” (Geraldo Filme).
“Santarém Novo” e “Arauê, Aruá” (recolhidas pelo grupo A Barca em janeiro de 1999 no Pará).

Ouça AQUI


Flip: Wisnik junta Mário de Andrade e política em apresentação emocionada

Conferência de encerramento neste domingo (5) teve canto comovido.
'Brasil joga juventude pobre, negra e mestiça no esgoto das prisões', disse.

Cauê Muraro Do G1, em Paraty  Facebook 
O crítico literário, ensaísta e músico José Miguel Wisnik em conferência na Flip (Foto: Divulgação/Flip) 
O crítico literário, ensaísta e músico José Miguel Wisnik em conferência na Flip (Foto: Divulgação/Flip)
José Miguel Wisnik juntou Mário de Andrade e política para terminar de modo arrebatador a conferência de encerramento da 13ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), neste domingo (5). O professor, ensaísta e músico foi aplaudido de pé ao dizer que o Brasil não trata a cultura e educação como se fosse "um luxo [acessível] para todos" e "faz de tudo para jogar a juventude pobre, negra e mestiça no esgoto das prisões".
Depois, esperou a plateia se sentar para cantar, comovido, o poema “Garoa do meu São Paulo”, do próprio Mário de Andrade, homenageado da Flip 2015. A primeira estrofe: “Garoa do meu São Paulo / Timbre triste de martírios / Um negro vem vindo, é branco / Só bem perto fica negro / Passa e torna a ficar branco”. Terminou com voz embargada o último verso: “Garoa sai dos meus olhos”.
Wisnik chegou a este assunto no fim da conferência, chamada “Mário de corpo inteiro”. Já tinha falado sobre a polêmica em torno da sexualidade do escritor, as origens familiares e de “Macunaíma”. Faltava falar do trabalho como organizador do departamento de cultura de São Paulo. Ou sobre “o projeto de Mário para a educação”
“Seria aquilo que nenhum partido político tem assumido com vontade política, que seria tratar a educação e cultura como [se fosse] para todos. Este é o projeto subjacente que faria o Brasil renascer de si mesmo”, afirmou Wisnik, em meio a críticas e observações sobre país de modo geral e ao povo local.
“Esta é a crença de alguém que acreditava que somos um povo criador, um povo que gosta de jogar, brincar, mas que que seria capaz de proezas civilizacionais incríveis.” Na sequência, veio a referência à redução da maioridade pena recentemente aprovada pela Câmera. Por isso citou “juventude” e “prisões”.
Mário 'amalucado'
Antes de Wisnik sair de cena, a organização ainda colocou um áudio de uma música popular cantada por Mário de Andrade, um dos raros registros de sua voz. Sobre isso, o convidado falou: "Nos finais de frase, a gente vê terminações efeminadas, que mostra uma delicadeza feminina na voz de barítono".

Ao lembrar que homenageado era filho de um casal de mulatos, comentou: "Um grande tabu brasileiro é a mestiçagem, que está no centro de uma sociedade escravista. A família do Mário estampa, antes de ele nascer, esse segredo brasileiro. Um secreto tácito. Todos sabem mas ninguém fala".
"Ele é a figura que traz à tona tudo isso que não está expresso: é o mulato, feio, que se torna grande, o rosto comprido, ao mesmo tempo estranho, amalucado para os padrões familiares."

Homossexual ou pansexual?
Ao longo da Flip, Mário de Andrade passou de homossexual a pansexual. Se na conferência de abertura Eliane Robert Moraes falou abertamente que a homossexualidade do autor deve ser considerada, durante outros debates do evento a pansexualidade foi ganhando terreno ("fazia sexo com árvores", disseram). Na conferência de abertura, esta última hipótese foi reforçada por Wisnik.

Ele chamou Mário de "introvertido agônico, conflituado, de certo modo dilacerado pelas contradições, um pequeno burguês aristrocrata e proletário".
Sobre a carta recentemente divulgada, na qual Mário de Andrade escreve a Manuel Bandeira sobre a "tão falada (pelos outros) homossexualidade", Wisnik disse que "não traz nenhuma revelação". "Na verdade, a vida sexual é um enigma aqui. Intraduzível e intrasferivel. O que ele quer dizer é que o físico é burro e não se esconde: 'O meu corpo diz, na verdade, que a minha pansexualidade é irredutível." Citou que Mário mencionava "a minha sensualidade monstruosa".
E meio que absolveu Oswald de Andrade, o escritor e amigo homofóbico com quem Mário rompeu (por uma série de razões). Wisnik lembrou que Oswald chegou a dizer coisas como: "Mário de Andrade parece Oscar Wilde... Se visto de costas".  Apontou a incorreção da frase, mas aliviou a de Oswald, recorrendo a Manuel Bandeira, para quem o autor do bullying era infantil.
Em carta a Mário, Bandeira escreveu sobre Oswald: "Que sujeito cínico, que filho da puta mais gostoso".
 --------------------------
Leia também..
 http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/07/1651959-wisnik-e-aplaudido-de-pe-em-ultimo-debate-da-flip.shtml

Viagem e criação em Mário de Andrade. Tatiana Longo Figueiredo•. Revista do Projeto Temático FAPESP/ IEB/ FFLCH-USP. Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras, nº 1. São Paulo, agosto de 2010 
 

[Publicado sem data no site Mário Scriptor]

Resumo: Em 1929, durante sua segunda viagem ao Nordeste, Már
io de Andrade coleta documentos musicais populares e conhece a arte do cantador potiguar Chico Antônio. O encontro é registrado no diário do viajante e, ainda no calor da hora, em crônicas na imprensa norte-rio-grandense e paulistana. A vida e a liberdade criadora do cantador valem ao ficcionista como fonte para um entrecho romanesco. De início, o escritor decide aproveitá-lo como um dos personagens principais do romance Café. Mas, não chegando a levar a cabo o projeto, seleciona, no manuscrito, um longo trecho o qual, com acréscimos, divide em seis partes, publicando-as semanalmente, sob o título “Vida do cantador”, no rodapé “Mundo Musical”, na Folha da Manhã, em São Paulo, de 19 de agosto a 23 de setembro de 1943. Esta comunicação pretende acompanhar, em diversos dossiês de manuscritos do escritor, a transposição da figura do coqueiro norte-rio-grandense para o universo ficcional.

Palavras-chave: Mário de Andrade, ficção, processo de criação

•Na época, doutoranda e bolsista da FAPESP no Programa de pós-graduação em Literatura Brasileira da FFLCH-USP. Orientadora: Profa. Dra. Telê Ancona Lopez.

Introdução

Entre 7 de maio e 15 de agosto de 1927, Mário de Andrade realiza sua primeira viagem de Turista Aprendiz ao Norte e Nordeste do Brasil. O polígrafo vislumbra a possibilidade, durante aquele período, de registrar, em campo, manifestações artísticas populares, evolução natural da pesquisa de gabinete do estudioso de folclore. No entanto, como viajava na companhia da “Rainha do café”, dona Olívia Guedes Penteado (1), o acúmulo de compromissos derivado da recomendação da comitiva aos presidentes dos estados por Washington Luís, Presidente da República, frustrou seus propósitos. Se por um lado, naquela ocasião, o estudioso ficou atiçado, mas não satisfeito com a coleta de material folclórico, por outro, o escritor não saiu de mãos vazias. No retorno a São Paulo, sua bagagem cresceu com anotações e uma primeira versão do diário d’O Turista Aprendiz, notas para novas versões de Macunaíma, o esboço da narrativa Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma, além dos resultados de sua experiência de fotógrafo moderno.

Logo depois, o Turista Aprendiz volta ao Nordeste, lá permanecendo entre 27 de novembro de 1928 e 4 de fevereiro do ano seguinte. Viaja como pesquisador e como correspondente do Diário Nacional e, devido a esse compromisso, publica, entre 14 de dezembro de 1928 e 29 de março de 1929, 70 crônicas que se tornam uma extensão pública do diário do viajante. Nesta segunda viagem etnográfica Mário de Andrade se desdobra para juntar o maior número possível de documentos musicais populares e é, neste propósito, que conhece e se impressiona com a arte do cantador potiguar Chico Antônio. Cabe ressaltar que pretendia estudar de forma mais sistematizada, no material recolhido, o folclore e escrever um livro de fôlego que se chamaria Na pancada do ganzá (2), título que alude ao percutir do instrumento dos cantadores.

Este cantador especial, comparado por Mário a célebres tenores da cena lírica, como Enrico Caruso e Beniamino Gigli, salta aos olhos do ficcionista como fonte profícua. Ainda em 1929, começa a criar em notas, esboços e versões um grande romance que seria intitulado Café, tendo como um dos personagens principais o coqueiro norte-rio-grandense. Não chegando a levar a cabo o projeto, mais de uma década depois, seleciona um longo trecho desse material, transformando-o com acréscimos oriundos das crônicas d’O Turista Aprendiz em um texto em seis partes – denominadas lições – publicadas semanalmente de 19 de agosto a 23 de setembro de 1943, no rodapé “Mundo Musical” da Folha da Manhã, compondo uma narrativa autônoma intitulada “Vida do Cantador”. Depois da última lição, ainda no “Mundo Musical”, o tema continua em outro viés e recebe, em 1944, um prolongamento de cunho etnográfico, fora da periodicidade semanal: “O cantador” (6 de janeiro), “Notas sobre o cantador nordestino” (13 de janeiro), “Bazófia e humildade” (27 de janeiro), “Notas ao cantador” (3 de fevereiro), “O canto do cantador” (17 de fevereiro), “Cantador cachaceiro I” (30 de março) e “Cantador cachaceiro II” (13 de abril). Esta série complementar tem um de seus textos, “Chico Antônio”, estampado no periódico carioca Correio da Manhã, em 5 de março do mesmo ano. Vale ressaltar que, no primeiro desses textos, o autor classifica Vida do Cantador como conto, mas reconhece a linha tênue que separa a invenção da realidade e o amálgama que a ficção permite.

“Aquele conto que eu publiquei neste rodapé mesmo, ‘Vida do Cantador’, eu pretendi, o quanto possível livremente, conservar no domínio da ficção. [...]
Ora, se a ‘Vida do Cantador’ foi uma criação livre, não deixei por isso de a tecer não só com elementos da vida e da psicologia do Chico Antônio de carne e osso que foi meu amigo, [...] como ainda me aproveitei dos outros cantadores e coqueiros que conheci de passagem, e da literatura numerosa que existe sobre isso” (3).

As marcas do encontro transpostas ao universo ficcional

Em 1º de janeiro de 1929, antes de chegar no Engenho Bom Jardim, Mário de Andrade escreve de Natal a Manuel Bandeira: “Por estes dias vou pro engenho do Antônio Bento onde Chico Antônio me espera pra cantar os cocos dele” (4). Atendendo ao pedido de Mário, Antônio Bento de Araújo Lima passara-lhe alguns dados biográficos do coqueiro: “Nascido em Villa-Nova, sede do município de Pedro Velho, no litoral do Rio Grande do Norte – idade 28 anos – casado há 8 anos e também há oito anos que ‘vadeia coco’” (5). A expressão regional que o amigo nordestino põe entre aspas, equivaleria a uma espécie de profissionalização do cantador.

Provavelmente esta forma de vida e a consequente liberdade criadora tenham sido alguns dos elementos que chamaram a atenção do escritor, o qual, já no início da década de 1920, considerava o ócio criador e a preguiça elevada como ingredientes ideais para a criação poética (6). Na breve anotação deixada no diário do viajante, em 10 de janeiro, a descoberta é assim fixada: “De noite, aparece Chico Antônio, o coqueiro. Simpático e formidável. Noite inesquecível” (7). A crônica que trata deste dia, publicada no Diário Nacional de 15 de fevereiro de 1929, é toda dedicada e marcada pelo entusiasmo que o canto de Chico Antônio provoca no ouvinte:

“Estou divinizado por uma das comoções mais formidáveis da minha vida. Chico Antônio apesar de orgulhoso:
‘Ai, Chico Antônio
Quando canta
Istremece
Esse lugá!...’
“Não sabe que vale uma dúzia de Carusos, vem da terra, canta por cantar, por uma cachaça, por coisa nenhuma e passa uma noite cantando sem parada. Já são 23 horas e desde as 19 horas que canta. [...]
“Que artista. [...] O que faz com o ritmo não se diz! [...] Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. E quando tomado pela exaltação musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se é heroísmo. Não se perde uma palavra que nem faz pouco, ajoelhado pro Boi Tungão, [...] contando a briga que teve com o diabo no inferno, numa embolada sem refrão, durada por 10 minutos sem parar. Sem parar. Olhos lindos, relumeando numa luz que não era do mundo mais. Não era desse mundo mais.” (8)

No dia seguinte, 11 de janeiro, o diário de viagem registra somente: “Trabalhei com Chico Antônio dia todo” (9). Mas, a crônica d’O Turista Aprendiz, no jornal paulistano, em 16 de fevereiro de 1929, frisa o poder hipnótico e de aglutinação que o cantador exerce:

“Principiou a cantar faz pouco e até onde o vento leva a toada, os homens do povo vem chegando, mulheres, vultos quietos na escureza, sentam no chão, se encostam nas colunas do alpendre e escutam sem cansar. A encantação do coqueiro é um fato e o prestígio na zona, imenso. Se cantar a noite inteira, noite inteira os trabalhadores ficam assim, circo de gente sentada, acocorada em torno de Chico Antônio irapuru, sem poder partir” (10).

Ainda no calor da hora, a crônica “Chico Antônio” que sai n’A República de Natal, em 27 de janeiro, também delineia a figura e mostra a força magnética do cantador:

“Uma das sensações musicais mais fortes de minha vida foi ouvir o ‘coqueiro’ norte-rio-grandense Chico Antônio. [...]
“O que espanta mais em Chico Antônio, um analfabeto, é o refinamento inconsciente do canto dele. [...]
“Chico Antônio tem um valor social formidável. [...]
“O canto dele exerce a função das encantações primitivas, canto de todos num rito de dinamogenias benfazejas. A gente se deixa encantar e não pode mais sair dali.
“Chico Antônio principiou cantando e era de noite. [...] Os moradores vieram vindo atraídos. Sentavam, se acocoravam, ficavam em pé na barra do semicírculo da luz, vultos imóveis na escureza. Escutando. Enquanto durou a cantiga ninguém não se afastou dela. Nem eu, sentindo se renovarem as forças nativas que de tempo em tempo careço de retemperar, viajando por meu país” (11).

Do mesmo modo, a enorme força encantatória da personagem Chico Antônio nos faz lembrar, sobretudo na 3ª lição da Vida do Cantador, o flautista de Hamelin da tradição popular:

“A noite viera sem ocupação e os nordestinos tinham saído dos seus ranchos, com vontade de cantar. [...] De repente o vento contou verdadeiras, três, quatro batidas de ganzá. Em todos os moradores, num raio largo da várzea, a figura de Chico Antônio apareceu.
E todos partiram pra ele, na pancada do ganzá.
“Chico Antônio percebeu um vulto chegando no escuro. Boas-noites. Vieram outros, mulheres também, principalmente as virgens, vieram todas as virgens. [...] Chico Antônio hipnotizava” (12).

Em 12 de janeiro o Turista anota no caderninho de bolso:

“Inda trabalho com Chico Antônio o dia até 17 horas. Na partida ele com o Boi Tungão se despede de mim e do nosso trabalho de maneira tão comovente que senti a chegada da lágrima. ‘Adeus sala, adeus piano. Adeus tinta di screvê! Adeus, papé di assentá!’ (assentar as músicas que ele cantava) De mim ele disse que quando eu chegasse na minha terra havia de não me esquecer nunca mais dele. E se por acaso eu voltasse por aqui, mandasse chamá-lo que ele vinha... E de fato nunca mais me esquecerei desse cantador sublime. Bom homem, simples, simpático e a voz maravilhosa, envolvendo a gente como nenhuma outra não. Caiu uma tarde tristonha cheia da lembrança de Chico Antônio”(13).

O cronista não deixa escapar a intensidade do fascínio estético que prende o viajante na despedida e o jornal de São Paulo estampa em 17 de fevereiro de 1929:

“[...] a tarde de hoje está triste por causa de Chico Antônio que partiu. Não eram bem 17 horas, [...] veio se despedir de mim. Careceu dizer o que sentia e trouxe o ganzá porque só pode contar os sentimentos cantando! Tirou o Boi Tungão, certamente um dos cantos mais sublimes que conheço, [...]
“E falou coisas duma comoção tão simples, ditas com a verdade verdadeira dos homens simples; disse que quando eu chegasse na minha terra havia de ter saudades dele; mas que se voltasse por estas bandas que o mandasse chamar e ele viria. Então principiou se despedindo dos nossos trabalhos, do papel em que eu assentara as melodias dele, da tinta, do piano, tudo,
‘Adeus sala! adeus cadera!
Adeus piano de tocá!
Adeus tinta de iscrevê!
Adeus papé de assentá!
– Boi Tungão!...’”

Em 15 de janeiro, o Turista Aprendiz aponta em duas linhas: “À noite inda escuto um bocado Chico Antônio que vem morar no Bom Jardim” (14). No dia seguinte, novamente noticia com brevidade: “Trabalho um bocadinho alguns cocos novos com Chico Antônio e ele parte de novo” (15). Porém, as crônicas referentes a estas datas, no Diário Nacional de 21 e 22 de fevereiro de 1929, enveredam por outros caminhos e não trazem à cena o cantador.

Por outro lado, no diário de viagem, o dia 27 de janeiro, traz apenas o lembrete da “Vinda de automóvel de Natal pra Paraíba” (16); não menciona a despedida de Chico Antônio quando Mário passa pelo engenho. Pode-se imaginar que ao diário coubera apenas registrar uma etapa da viagem, mas a expressão do momento inefável vivido será tarefa do ficcionista, passando primeiramente pela memória do cronista:

“Às 9 e meia chego no engenho Bom Jardim e almoço. Almoço quase acabado em desgosto. O coqueiro Chico Antônio que hei-de celebrar melhor em livro, me aparece, tira uns pares de cocos, arremata a série com o Boi Tungão e num improviso de quebrar coração duro, me oferece o ganzá dele” (17).

O ficcionista consegue transfigurar o momento-chave da entrega do ganzá, oferta votiva que une dois artistas na despedida. O narrador não cita, de forma convencional, versos de Chico Antônio poeta e músico, mas, sim, funde o próprio discurso de poeta ao dele, num coroamento lírico. Duas despedidas são assim condensadas na 1ª lição de Vida do Cantador.

“O ganzá chiou num soluço. Ai, seu doutô, quando chegar em sua terra, vá dizer que Chico Antônho é danado pra embolar! Adeus casa, adeus amigo, adeus sala de se estar! Adeus lápis de escrever! Adeus papel de assentar! Adeus as moças sensatas, adeus luz de alumiar, adeus casa de alicerce e a honra deste lugar!...
“E assim continuava, nas vozes mais solares e sentidas que possuía, se despedindo do amigo, de tudo o que era dele, [...] Pois bem: que ele partisse sempre, mas nunca mais poderia se esquecer de Chico Antônio, os dois sentindo a saudade danada pra maltratar. Nunca mais que nós se visse! Mas a saudade mais triste, presença deste ganzá: Eu de cá fico sentindo, e vós, do lado de lá!
“E ajoelhado, olhos esbugalhados, metálicos, ofertou o ganzá para o amigo” (18).

Neste ponto a narrativa de Vida do Cantador inicia a interseção entre o manuscrito do romance inacabado Café e elementos das crônicas d’O Turista Aprendiz, publicadas em 1929 no Diário Nacional.

Chico Antônio assinalou, na entrevista dada a Antônio Bento de Araújo Lima, que reputava o Boi Tungão como o coco de maior impacto (19).No papel pautado para registro musical, em que grafou a melodia, Mário de Andrade observa: “Este coco é dificílimo de notar pela liberdade extrema de prosódia e de fantasia rítmica” (20). Na 2ª lição de Vida do Cantador, transpõe esse momento da execução para o universo ficcional, pois o coqueiro utiliza o canto para impressionar Isabel, a moça por quem está apaixonado.

“Chico Antônio foi expulso do engenho e pretendeu mais uma vez partir. Chegou a lembrança de Isabel e não podendo mais aguentar tanta lembrança incômoda, nessa noite mesmo Chico Antônio levantou seu cântico de amor. O som surdo da chama roncava no engenho vizinho e todos perceberam que Chico Antônio queria se despedir. Era meio de semana mas todos foram pra lá. Isabel também foi.
[...]
“Virou o coco de repente e se lançou no reconto da maior vitória que já conseguira na vida, o seu desafio com o Diabo. [...] Eu cantei com a voz de amor, ele com a voz infernal, mas o amor é mais ardente, e acabou-se o Maioral!” (21).

Na mesma entrevista com o cantador, Antônio Bento grafa: “Vida poética, gosta tanto das mulheres, como elas dele” (22). O entrecho ficcional da 2ª lição da Vida do cantador passa à personagem Chico Antônio o mesmo elã quando lembra “aquelas assanhadas da cozinha é que no fogão mesmo da casa-grande, assavam galinhas e patos, indo levar tudo de escondido pro coitado do cantador. E voltavam sempre mais que agradecidas” (23).

Ainda pela anotação do entrevistador sabe-se que o coco mais apreciado por Chico Antônio era Iaiá pega o boi. Na 1ª lição de Vida do Cantador, a personagem/ cantador escolhe justamente esta melodia como a primeira a ser mostrada para o moço do sul, máscara perfeita de Mário de Andrade.

“Estava hospedado no Bom Jardim um moço rico que viera do sul e Chico Antônio foi chamado pra cantar. [...] Quando veio de lá dentro, se desculpando da demora e pediu que ele cantasse até falando em ‘faz favor’, o coqueiro ficou estuporado. [...] Nunca na vida ele tivera a glória de um pedido com ‘faz favor’! [...] E Chico Antônio quis cantar, quis fazer o favor que o moço do sul pedia, em vez de mandar. [...] Estava muito atrapalhado porque queria cantar pro moço do sul e, pela primeira vez na vida teve medo de não saber cantar. O ganzá chiava brusco feito boi alçado, Chico Antônio ele mesmo sentia-se um boiato glorioso de sua liberdade, que lhe impunha seu coco preferido. Cantou alto, quase exclamando: ‘Oh, Iaiá, pega o boi!’” (24).

A bondade, o desprendimento e a encantação de Chico Antônio surgem de forma pungente na ficção na “Última lição” da Vida do Cantador. No episódio em que, prestes a estourar, toda a boiada lamenta chorando o sangue derramado de um dos seus, Chico Antônio eleva sua voz além do choro coletivo e, aboiando, amansa a dor e a revolta dos animais. Para ele, cantador, o canto é vida ou morte. Fora de seu meio, em São Paulo, onde “as fazendas eram de um mutismo desumano”, Chico Antônio viola as regras usando sua voz como a lira que encanta, mas não logra, como Orfeu, extinguir a fúria.

Conclusão

Na década de 1940, com o mundo em guerra, uma das maiores preocupações de Mário de Andrade é a arte interessada, como pode-se testemunhar, principalmente, na entrevista a Francisco de Assis Barbosa, no jornal Diretrizes, em 6 de janeiro de 1944, “Acusa Mário de Andrade: ‘Todos são responsáveis’” (25). Desse modo, não é gratuita a apresentação de Vida do Cantador em lições. No artigo “O Cantador”, lê-se: “o cantador é um dos profissionais mais ritualizados, cuja vida mais se organiza, dentro de uma por assim dizer liturgia vital” (26). Essa liturgia, explica Raimunda de Brito Batista em “O alcance da cantoria”:

“A lição, de acordo com a liturgia da Igreja Católica, manifesta-se sob a forma de cânticos de louvor aos santos, quando são destacadas as virtudes, para que valham como exemplo. [...] Vida do Cantador toma um santo: Chico Antônio, que é Orfeu enfrentando e vencendo o Diabo. Chico Antônio que é o uirapuru da teogonia do índio e do caboclo, tendo o poder de ensinar os outros e cantar, arrodeado por eles” (27).

Assim, a série solta no ar a nota grave da denúncia contra aqueles que, sendo artistas, não se colocam por inteiro no que produzem. A morte de Chico Antônio em pleno exercício de sua arte destaca a virtude exemplar daquele cuja vida serve de lição a ser seguida.

NOTAS

1 O grupo se completava com a sobrinha de dona Olívia, Margarida Guedes Nogueira (apelidada Mag ou Balança) e a filha de Tarsila do Amaral, Dulce do Amaral Pinto (Dolur ou Trombeta). As duas moças transitam da realidade para a ficção, transformadas em personagens de Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma.
2 Apesar de não ter conseguido finalizar a obra, o resultado dessa pesquisa de Mário de Andrade teve edição póstuma organizada por sua discípula Oneyda Alvarenga em quatro livros: Danças dramáticas do Brasil, Os cocos, Música de feitiçaria no Brasil e Melodias do boi e outras peças.
3 ANDRADE, Mário de. Vida do cantador. Edição crítica de Raimunda de Brito Batista. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Vila Rica, 1993, p. 65 e 68.
4 MORAES, Marcos Antônio de, org. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/ Instituto de Estudos Brasileiros, 2000, p. 411.
5 “Entrevista com Chico Antonio/ Dados Biográficos, etc”. O original, autógrafo a tinta preta em 2 folhas de papel branco, pautado, pertence ao manuscrito Na pancada do ganzá, Arquivo Mário de Andrade, IEB-USP (V. ANDRADE, Mário de. Os cocos. Preparação, ilustração e notas de Oneyda Alvarenga. São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL/ Fundação Pró-Memória, 1984, p. 37).
6 Essa concepção está presente em Macunaíma e espalhada na poesia de Mário de Andrade, como em “Louvação da Tarde” e “Rito do irmão pequeno”.
7 ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. 2ª ed. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 356.
8 Ibidem, p. 273 e 277.
9 Ibidem, p. 356.
10 Ibidem, p. 277.
11 Idem. Os cocos. Ed. cit., p. 377-379.
12 Idem. Vida do cantador. Ed. cit., p. 46.
13 Idem. O Turista Aprendiz. Ed. cit., p. 356.
14 Ibidem, p. 357.
15 Ibidem, p. 357.
16 Ibidem, p. 361.
17 Ibidem, p. 306.
18 Idem. Vida do cantador. Ed. cit., p. 39.
19 Idem. Os cocos. Ed. cit., p. 37.
20 Idem. As melodias do boi e outras peças. Preparação, introdução e notas de Oneyda Alvarenga. São Paulo: Duas Cidades, Brasília: INL, 1987, p. 86.
21 Idem. Vida do cantador. Ed. cit., p. 41-42.
22 Idem. Os cocos. Ed. cit., p. 37.
23 Idem. Vida do cantador. Ed. cit., p. 41.
24 Ibidem, p. 37-38.
25 LOPEZ, Telê Ancona, org. Entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, p. 99-109.
26 ANDRADE, Mário de. Vida do cantador. Ed. cit., p. 69.
27 Ibidem, p. 26.

Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada - ABRALIC

Link do texto [fora do ar, acessado em outubro de 2013]: http://www.ieb.usp.br/marioscriptor/congressos/viagem-e-criacao-em-mario-de-andrade.html

[70 anos da morte de Mário de Andrade. #Flip2015]


Mário de Andrade no facebook, aqui


Missão de Pesquisas Folclóricas

 




Nenhum comentário: