O BRASIL QUE QUEREMOS

  Textos sobre a mãe de todas as reformas. A reforma politica.

*Plebiscito Popular pela Reforma da Constituição*

*Plínio Arruda Sampaio*


O processo de elaboração da Constituição de 1988 teve dois momentos
distintos. O primeiro vai da abertura dos trabalhos até a entrada da
proposta aprovada na Comissão de Sistematização e a segunda, da Entrada na
Comissão de Sistematização até a promulgação do texto aprovado em Plenário.
Na primeira etapa, a esquerda levou a melhor sobre a direita; na segunda,
deu-se o inverso e a direita conseguiu alterar bastante o texto aprovado na
Sistematização.

O texto aprovado na Sistematização organizava o sistema político na forma
parlamentarista. No Plenário, a maioria mudou o sistema político de
parlamentarista a presidencialista.

Esta mudança criou uma limitação da qual se ressente até hoje o texto
constitucional. Isto por uma razão bem simples: Os artigos de uma
Constituição não são isolados, mas relacionados entre si pela lógica
interna do sistema. O sistema parlamentarista tem uma lógica, o sistema
presidencialista, outra. Desse modo, um artigo parlamentarista em um texto
cujos outros artigos respondem à lógica parlamentarista gera uma série de
dificuldades na hora de aplicação do texto constitucional aos casos
concretos.
A mudança do texto deu-se em decorrência da criação de um agrupamento
parlamentar denominado Centrão. Este "Centrão", que de Centrão não tinha
nada, pois estava integrado por deputados e senadores reacionários, foi
criado por iniciativa de um grupo de banqueiros e grandes empresários,
assustados com o caráter progressista que o texto estava adquirindo na
Comissão de Sistematização. Em certo dia, eles convidaram esses
parlamentares para uma reunião no Hotel Carlton em Brasília e os fizeram
comprometer-se a duas coisas: a comparecer a todas as votações e a votar de
acordo com os interesses do grande capitalismo.

A razão pela qual a esquerda, embora sendo minoria, ganhava todas as
votações da Comissão de Sistematização era a ausência dos parlamentares da
direita. O ano de 1988 era uma ano eleitoral e os parlamentares da direita
preferiam estar percorrendo seus distritos eleitorais em busca de votos a
comparecer ao Congresso. Contribuía também para isso, o desejo de se
furtarem à pressão que sobre eles exerciam os representantes dos sindicatos
e organizações progressistas da sociedade civil. Esses representantes não
faltavam a uma reunião da Comissão e se manifestavam ruidosamente todas as
vezes que um parlamentar da direita votava contra as propostas
progressistas.

Mas o grande responsável mesmo pela mudança no teor do texto aprovado na
Comissão de Sistematização foi o deputado Ulysses Guimarães, Presidente da
Assembléia Nacional Constituinte, porque foi ele que, contrariando o
dispositivo regimental referente à matéria, pôs em votação proposta do
"Centrão" modificando a forma de votação das emendas. Era esse modo que
possibilitava à minoria progressista vencer a maioria reacionária. A razão
disso é a seguinte: os representantes da direita na Comissão, pelas razões
já expostas, não compareciam nas sessões, o que retirava o quorum requerido
para o funcionamento das mesmas. Elas só podiam realizar-se porque o
Presidente fazia uma verificação virtual de presença. Cada líder de bancada
anuía e a sessão era aberta. Porém, caso algum deputado pedisse a
verificação individual das presenças a sessão seria derrubada. Os líderes
das bancadas dos partidos de esquerda, então ameaçavam: ou votam de acordo
conosco ou derrubamos a sessão,coisa que, se acontecesse impediria a
elaboração do texto constitucional. Ora, o procedimento para aprovação de
emendas prescrevia que se considerar aprovada aquela que recebesse a
maioria dos votos dos parlamentares presentes na sessão e, para derrotá-la
era necessário obter mais de dois terços dos votos dos presentes - número
este que a direita não dispunha. Pois bem, ao chegar o texto aprovado na
Sistematização em Plenário, o "Centrão" apresentou uma proposta de
modificação do Regimento Interno na Constituinte invertendo o processo de
aprovação. De acordo com esta proposta, o número de votos necessário para
aprovação de uma emenda é que passaria a ser de dois terços. Isto
evaporaria a vantagem da esquerda, porque ela não contava com esse número
de votos.
O Dr. Ulysses pôs da proposta em votação e a mesma foi aprovada. Dai por
diante, ela foi anulando um por um os avanços obtidos na etapa anterior. Um
dos capítulos mais atingidos foi o referente ao sistema político. Urge
corrigir essas distorções, a fim de possibilitar eleições verdadeiramente
democráticas.

Por isso, 71 entidades da sociedade civil, decidiram lançar uma campanha
para a realização de um plebiscito popular com a finalidade de corrigir as
distorções do texto atual. Trata-se da convocação de uma Assembléia
Constituinte formada por parlamentares eleitos exclusivamente para o fim de
reformar o Capitulo do Sistema Político da Constituição de 1988. As
correções desejadas visam estabelecer a igualdade de todos nas disputas
eleitorais, pois sem tal igualdade não se pode falar em verdadeira
democracia. São elas: financiamento publico das campanhas eleitorais,
estabelecimento de porcentagens de número obrigatório de vagas para
mulheres e para negros nas chapas de todos os partidos políticos,
fortalecimento dos mecanismos de democracia direta.

O financiamento público das campanhas proibirá o financiamento privado.
Todos os candidatos terão direito a uma determinada importância para
sufragar os gastos das suas campanhas. Essas quantias serão iguais para
todos os candidatos. O Juiz Eleitoral enviará a cada candidato uma lista
com os gastos que ele poderá fazer para serem pagos com dinheiro público.
De posse dessa lista, o candidato fará o gasto e a firma que vendeu-lhe o
bem ou o serviço comprado apresentará a fatura ao Juiz Eleitoral, que fará
o pagamento caso a compra faça parte da lista dos gastos permitidos.O
parágrafo único dessa Lei prescreverá que o candidato que burlar a lei terá
seu registro automaticamente cancelado e deverá pagar multa pela infração.
O mesmo acontecerá com a empresa ou a pessoa que tiver feito a doação.
Ambos, candidato e doador serão processados criminalmente por qualquer
manobra que tiverem feito no intuito de burlar a lei.

As entidades patrocinadoras do plebiscito popular apelam para todos os
cidadãos para que venham participar da campanha, a fim de que a mesma seja
vitoriosa.


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Antônio David: O tempo corre contra Dilma

publicado em 15 de setembro de 2013 às 1:38

O impasse do lulismo, ou a inexorável necessidade de encontrar a justa medida
por Antônio David, especial para o Viomundo
I – Manifestações e manifestantes
“O gigante acordou”. Mais do que um bordão repetido durante os protestos de junho pelo Brasil, a expressão parece corresponder à representação que os manifestantes fizeram de si mesmos, como se naquele momento tivéssemos testemunhado não a expressão de um conflito no interior da sociedade, mas um grito da sociedade contra algo ou alguém.
Penso que essa estranha autorepresentação coloca-nos diante de um traço nefasto da cultura política brasileira: a imagem da indivisão social.
A violência que marca as relações sociais no Brasil é sistematicamente ocultada, para em seu lugar impor-se a imagem de uma sociedade harmônica e coesa. Talvez Gilberto Freyre seja quem tenha levado mais longe essa imagem, quando propõe que no Brasil subsista um “equilíbrio de antagonismos”: apesar dos antagonismos, haveria entre nós equilíbrio. O interessante é que a fórmula pode ser invertida: apesar do equilíbrio, a sociedade brasileira é recortada de cima a baixo por antagonismos.
Guardamos hoje os traços de nosso passado escravocrata. Herdamos dele a abissal desigualdade entre ricos e pobres. Como todas as sociedades complexas, também a nossa é dividida. Ocorre que a sociedade brasileira não é apenas dividida; é muito dividida.
Quando Lula foi eleito em 2002, o Brasil era o país mais desigual do mundo; ainda hoje figura entre os mais desiguais. E talvez justamente por ser tão desigual, é que se imponha com tanta força a imagem de uma sociedade harmônica e coesa, simbolizada pelo verde-amarelo.
Afinal, quem foi às ruas? Acompanhando os debates públicos, parece haver dúvidas sobre o perfil dos manifestantes. Uma coisa é certa: não foi o “povo”, em abstrato, o protagonista dos protestos. E aqui não pretendo fazer reparações àqueles que vocalizam essa percepção.
Não se pode exigir daqueles que intervêm no debate público e exercem influência sobre a opinião pública que abram mão de “disputar o significado” de junho. No entanto, a atitude da disputa só é válida se puder conviver com outra atitude: o esforço de apreender as contradições da realidade.
Se o coro em uníssono contra a corrupção associado ao verde-amarelismo  criou a impressão do despertar do “gigante”, por trás da aparente celebração há um fato inexorável: em junho, saíram às ruas frações de classe. E, como sabemos, frações de classe distintas em geral possuem motivações e interesses distintos, não raro antagônicos.
Seja pelo método empírico do olhar, seja considerando o que apontaram uma série de pesquisas feitas junto aos manifestantes a fim de traçar seu perfil, parece factível a hipótese de que, no interior do gigante, havia preponderantemente duas frações de classe.
De um lado, uma parcela do proletariado, que o sociólogo Ruy Braga chama de “precariado” – jovens que estudam e ao mesmo tempo trabalham, concentrados no setor de serviços, vulneráveis à altíssima rotatividade desse setor, submetidos a um ritmo de trabalho frenético, mas que experimentaram conquistas nos últimos anos via ensino superior privado, carteira assinada, renda e crédito.
De outro, a classe média tradicional – um setor da sociedade que, a despeito de usufruir a palavra “média” no nome, situa-se no topo da pirâmide social, e que, a despeito de também ter sido beneficiada nos últimos dez anos, sente-se profundamente ameaçada pela ascensão dos de baixo.
Enquanto os primeiros almejam melhores condições de vida e de trabalho, compatíveis com sua qualificação profissional, os segundos querem os “mensaleiros” na cadeia.
Para além das demandas, o mais importante talvez seja procurar saber quais afetos dominam cada uma dessas frações. Arriscaria dizer que, entre os primeiros, fortes expectativas criadas pela ascensão social convivem com sentimentos de inquietude e frustração face às dificuldades de realizar as expectativas que nutrem; entre os segundos, o medo da perda de privilégios aliada ao ódio de classe, fruto da perda de posição de sua ideologia na sociedade – afinal, a classe média ampara-se na ideologia do mérito, ou seja, na naturalização da desigualdade.
O curioso é que, apesar do aparente uníssono nas ruas, no que realmente importa uma e outra frações de classe almejam o exato oposto –enquanto os primeiros reivindicam mais e melhores serviços públicos, os segundos reivindicam menos impostos. E, no entanto, o que observamos em junho foi uma estranha aparência de comunhão de interesses e de engajamento.
Claro está que os desejos antagônicos de um e de outro se cruzam num ponto: no repúdio à corrupção.
Mas não devemos nos enganar quanto a esse ponto comum. É certo que o tom antipartido das manifestações fez parecer haver uma repulsa geral à política institucional, talvez mesmo uma demanda por democracia direta.
Porém, se a tônica das manifestações era “contra os partidos e os políticos”, pesquisa feita em São Paulo mostrou que mais de 50% dos manifestantes têm candidato para 2014: Joaquim Barbosa e Marina Silva. Contra os partidos, pessoas. Claro que a eleição é só um aspecto, e talvez não seja o mais importante; mas é sintomático.
Para tornar o quadro ainda mais complexo, uma parcela majoritária da classe trabalhadora não saiu às ruas. A fração que o cientista político André Singer chama de subproletariado assistiu as manifestações à distância. Possivelmente com alguma desconfiança, pois essa fração teme a radicalização política, na medida em que vê nela a possibilidade do desemprego e da perda de conquistas obtidas nos últimos dez anos. Igualmente, a classe trabalhadora tradicional, do “colarinho azul”, organizada em sindicatos, com maior experiência política e melhor remunerada, parece não ter se engajado nas manifestações.
É obvio que saíram às ruas em junho indivíduos dessas duas frações, e de todas as demais frações. Até burgueses havia em meio às manifestações – e se as coisas participam da vida política tanto quanto as pessoas, o prédio da Fiesp na Av. Paulista foi um protagonista dos protestos de junho em São Paulo. A preocupação aqui é saber quais frações de classe eram predominantes em junho.
II – A ponta do iceberg
Dito isso, cabe analisar a resposta do governo aos protestos.
Para chegarmos ao ponto que aqui interessa – o impasse na estratégia lulista –, penso ser útil começarmos pela seguinte constatação: aparentemente, ao invés de sair pela tangente, o governo abraçou a demanda vinda das ruas quando propôs a Constituinte Exclusiva.
Por que o governo recuou, se pesquisa do Datafolha mostrou que 73% dos brasileiros apoiavam a proposta? Por que a mídia faria campanha contra? Por que, ao cabo, o Congresso e o STF a derrubariam? Isso tudo é verdade, mas é apenas parte da verdade. Arriscaria dizer que o governo recuou justamente porque está olhando para as classes sociais e a política.
Talvez o governo tenha percebido que estes 73% que declararam apoiar a proposta não se converteriam em mobilização de massa, pois o que motivou os manifestantes a tomar as ruas não foi a corrupção.
O repúdio geral à corrupção é um dado incontestável, mas não devemos nos enganar quanto às reais motivações dos manifestantes. O que está em jogo para o precariado é obter melhores condições de vida e de trabalho; para a classe média tradicional, bloquear o processo de ascensão social aberto em 2003, e trocar o PT pelo PSDB.
O governo certamente fez o cálculo: de um lado, apostar na Constituinte, e, exceto se houvesse radicalização política, correr o alto risco de perder a batalha; de outro lado, apostar no plebiscito, cujo risco parece ser menor. A opção, à maneira do lulismo, foi pelo menor risco e sem radicalização. Mesmo assim, o plebiscito segue de molho. Tudo indica que não ocorrerá.
Ao cabo, para avaliar se o governo errou ou acertou em retirar a proposta, só há um critério: que classes e frações de classe dariam sustentação para a proposta, e que classes e frações de classe combateriam a proposta?
É impossível responder com certeza  tais perguntas, mas é possível e necessário fazer cálculos, ou, nas palavras de Vladimir Safatle, “detalhar ao máximo [as] ações e os cenários possíveis que essas engendrariam” (A esquerda que não teme dizer seu nome, Três Estrelas, 2012). Há quem sustente que o governo errou ao recuar. Pode ser. Mas, se errou, não é por que procura seguir à risca este princípio?
No entanto, tal constatação não esgota o problema, pois parte de um pressuposto: evitar a radicalização política. Essa parece ser a questão central. Se assim for, o dilema Constituinte Exclusiva vs. Plebiscito – e por isso retomo essas propostas – apenas evidencia a ponta do iceberg. É o mero sintoma.
Naquele momento, Dilma fez uma opção. Recuou. Diante dessa conduta, alguém poderia objetar: “O governo deveria ter mantido a proposta!”. Há quem vá mais longe: “O governo deveria romper com a governabilidade e fazer enfrentamentos!”. Não são essas percepções correntes na esquerda? Aqui, mais do que uma decisão pontual do governo, é o pressuposto (evitar a radicalização) que é questionado.
Justo. O governo poderia apostar nesse caminho: a via da radicalização política, da ruptura com a base de apoio no Congresso, do enfrentamento aberto. Por que não aposta? Penso ser necessário esmiuçar as razões dessa opção.
III – Classes e frações de classe
A classe trabalhadora brasileira não é um todo homogêneo. Possui frações. Além do proletariado fabril, cujo paradigma é o metalúrgico, há uma nova classe trabalhadora, predominantemente jovem, que ascendeu via ensino superior privado, tem maiores expectativas, seja de padrão de vida, seja de trabalho, mas não enxerga perspectivas de futuro no mercado de trabalho – pois não há perspectivas. Por isso, vive sob tensão.
Por outro lado, há outra fração da classe trabalhadora, muito superior em tamanho, que ainda vive em condições de pobreza e miséria, e que constitui a principal base social e eleitoral do lulismo: o subproletariado. Essa fração quer mudanças, mas possui um traço conservador: rejeita a radicalização política, na medida em que associa (não sem razão) a instabilidade política ao desemprego e à carestia.
Para mantê-los ao seu lado e favorecê-los, a estratégia dos governos Lula e Dilma consiste em evitar a radicalização. De fato, este setor tem sido beneficiado: a pobreza e a desigualdade estão caindo, ainda que muito lentamente – o traço conservador está na lentidão do processo.
O fato é que o governo tem razões para evitar a radicalização política: a radicalização suscitaria crises, instabilidade, fuga de capitais etc., o que tenderia a elevar o nível de desemprego e a afetar diretamente o subproletariado.
Nessa situação, além do risco de ver bloqueado o processo (lento) de redução da pobreza – o qual supostamente depende de haver estabilidade econômica, bem como de uma ampla base de apoio no Congresso Nacional –, essa fração de classe poderia enxergar na direita uma alternativa política, como fez em 1989, 1994 e 1998, quando deu a vitória para Collor e FHC.
Some-se a isso o fato de que hoje a classe média tradicional é, dentre todas as classes, aquela que está se sentindo mais prejudicada e parece ter maior força de ânimo para ir às ruas manifestar seu descontentamento, com pitadas de protofascismo, como já ocorreu outrora na história do Brasil. Assim, é de se supor que a radicalização por parte do governo teria repercussões diferentes na sociedade, alimentando, sobretudo, a radicalização da classe média.
Porém, na medida em que viabiliza a ascensão social dos de baixo, a estratégia lulista cria cada vez mais a necessidade de empreender reformas estruturais, a começar pela abertura e dinamização do mercado de trabalho e pela melhora radical dos serviços públicos, a fim de viabilizar a continuidade da ascensão dos que já ascenderam, caso contrário estes ficarão estagnados economicamente.
Além disso, precisa envolver a organização e a mobilização da nova classe trabalhadora, para que esta lute por seus direitos, caso contrário essa fração de classe poderá optar por alternativas conservadoras – a história é recheada de exemplos nesse sentido. Se a nova classe trabalhadora pender para a direita, não se trata de perder apenas o governo nas urnas. É o processo em curso de combate à pobreza e à desigualdade que será bloqueado.
IV – Impasse e paradoxo
Dito isso, o impasse da estratégia do lulismo pode ser colocado nestes termos: de um lado, o governo precisa evitar a radicalização, não só por razões eleitorais, mas também por razões econômicas: a radicalização provavelmente paralisaria o governo, enquadrado que está pelo mercado, Congresso e Judiciário, e por conseguinte provavelmente elevaria o desemprego – o que, para além das repercussões eleitorais, faria a desigualdade voltar a aumentar; de outro, o governo precisa investir na radicalização, pois, na medida em que os trabalhadores ascendem, a continuidade de sua ascensão exige enfrentamentos, necessários para haver mudanças estruturais na economia brasileira e no serviço público.
Prensado entre duas frações de classe, o governo vê-se então diante da necessidade de evitar a radicalização e, ao mesmo tempo, de investir na radicalização. Desnecessário dizer que rifar uma das frações de classe não é alternativa. Daí ser duvidoso que a saída para o impasse reduza-se à mera opção entre evitar ou investir.
Não surpreende que essa formulação, pela qual se impõem simultaneamente duas tarefas antagônicas, soe estranha. A dificuldade em ver o impasse deriva não apenas da dificuldade em observar uma contradição no seio da própria classe trabalhadora, mas também, e talvez, sobretudo, em depreender o paradoxo do lulismo: parecendo ser uma coisa, o lulismo é o exato oposto. Vejamos.
É lugar comum a constatação de que o governo possui uma estratégia da acomodação dos conflitos e de amortecimento das lutas. Muitos falam em cooptação dos movimentos sociais e sindicatos. Contudo, ao examinar a realidade, o que se pode observar é que, na medida em que o tempo passa, a estratégia do lulismo produz o exato oposto, ou seja, cada vez mais alimenta o conflito.
Prova disso é o ascenso de greves operárias em curso atualmente, relacionado não à piora no mercado de trabalho, mas justamente ao oposto, ou seja, à melhora (do nível de emprego e renda), permitindo inclusive que mais de 95% dos reajustes salariais situem-se acima da inflação.
Em parte, as manifestações de junho enquadram-se nessa formulação, pois, dentre as causas que levaram o precariado a tomar as ruas, foi determinante o fato de essa fração de classe nutrir expectativas, abertas exatamente pelas opções tomadas pelos Governos Lula e Dilma.
V – Mantendo as condições de sua própria perpetuação
Aqui é preciso fazer um parêntese. Há quem diga que o lulismo esgotou-se. Não só discordo dessa tese, como penso ser o exato oposto. O grande problema do lulismo parece estar exatamente no fato de não ter se esgotado – ou seja, em ter mantido as condições para sua perpetuação. Pois, se o objetivo da estratégia inaugurada pelo governo Lula e levada adiante pelo atual governo é o combate à pobreza e à desigualdade, de modo a incorporar o subproletariado ao proletariado, então como explicar que, passados dez anos, o subproletariado ainda exista e em tão elevado número? (Se levarmos em conta as amostras do Datafolha e Ibope em suas pesquisas de opinião, observaremos que a parte da população que recebe até 2 salários mínimos de renda familiar mensal caiu de aproximadamente 50% em 2002 para 40% em 2013).
O próprio André Singer chama a atenção para isso em seu livro Os sentidos do lulismo (Companhia das Letras, 2010): “o reformismo fraco, por ser fraco, implica ritmo tão lento que, por vezes, parece apenas eternizar a desigualdade”.
De fato, enorme quantidade de pesquisas confirma que a pobreza e a desigualdade estão caindo, mas muito lentamente – e talvez mais lentamente ainda com Dilma. Se o lulismo tem um pecado, esse pecado sem dúvida está na sua longa duração.
Mas é possível ir além na crítica. Passados dez anos, o lulismo não apenas não cumpriu sua missão – incorporar o subproletariado ao proletariado – como tem dificuldade de criar as condições para que, uma vez incorporado, o novo proletariado adquira feições do velho proletariado.
Senão, como explicar que parte substancial dos trabalhadores outrora situados nessa fração (subproletariado) e que se elevaram à condição proletária, estejam hoje submetidos a condições tão precárias de trabalho – como no telemarketing ou na hidrelétrica de Jiraú, só para citar dois exemplos?
Finalmente, e voltando ao ponto inicial desse artigo: Como explicar que, passados dez anos, a percepção social continue sendo marcada pela imagem da indivisão social, bem expressa na figura do despertar do “gigante”?
Essa pergunta, em particular, é tão mais intrigante quando se constata que, paradoxal que é, parecendo jogar contra o conflito, na realidade o lulismo só tem alimentado a polarização social no interior da sociedade. A polarização não só subsistiu sob o lulismo, como aumentou, fruto exatamente das políticas do governo (não há nada melhor representativo da polarização do que a opinião generalizada na classe média sobre o Bolsa Família).
Mesmo assim, não deixou de soar estranho o recado do ex-presidente Lula ao cabo dos protestos: “façam política”. Isso porque a polarização alimentada pelo lulismo nos últimos dez anos, apesar de crescente, parece ter sido despolitizante, ao menos até junho. Assim, o resultado não poderia ser outro: expressão de uma polarização latente na sociedade, fruto da agudização do conflito de classes, os protestos eclodiram escondendo, mascarando e ocultando essa raíz. Em seu lugar, apareceram como expressão do seu exato oposto, ou seja, de uma sociedade homogênea, coesa, harmônica, com motivações e interesses convergentes: contra “tudo o que está aí”.
V – Alerta
Por fim, um alerta: as conseqüências do impasse na estratégia lulista já se fazem notar eleitoralmente. Comparando as intenções de voto no segundo turno da eleição presidencial em 2006 e em 2010, a diferença entre PT e PSDB caiu de 21% (2006) para apenas 6% (2010) na faixa de renda de 2 a 5 salários mínimos de renda familiar mensal, exatamente onde o precariado está inserido. Uma hipótese é que essa diferença esteje associada a um processo subterrâneo, lento e invisível de distanciamento do precariado em relação ao PT.
Reforçam essa hipótese as pesquisas de intenção de voto mais recentes, as quais não mostram um quadro mais favorável. Ao contrário. Segundo o Datafolha (Pesquisa feita entre 7 a 9/8/13), se houvesse segundo turno hoje, nessa faixa de renda (2 a 5 SM de renda familiar mensal) Dilma figura com larga vantagem perante Aécio Neves (50% x 32%), mas já teria sido ultrapassada por Marina Silva (43% x 45%). Além disso, mesmo em relação a Aécio, a vantagem de Dilma é relativa, pois o tucano é ainda pouco conhecido na faixa de renda aqui considerada: 20% declararam não conhecê-lo, 33% conhecem-no “só de ouvir falar”, 29% conhecem-no “um pouco” e apenas 18% conhecem-no “muito bem”.
A considerar estes dados, parece que a inquietude do precariado está levando-o a buscar alternativas eleitorais e, por extensão, políticas – o que não quer necessariamente dizer, alternativas de esquerda.
VI – Justa medida
Contraditório, o lulismo envolve um pacto conservador ao mesmo tempo em que guarda em si uma vocação igualitarista. Mas suas promessas de igualdade só poderão ser realizadas se o lulismo tiver força para superar-se, ultrapassar o impasse inscrito nele mesmo – ou seja, encontrar a justa medida da radicalização. Terá? O tempo corre contra Dilma.
Antônio David é pós-graduando em filosofia na USP e mantém uma página no Facebook para divulgação de pesquisas e análises sobre o Brasil.
País mudo não muda!- Dep. Chico Alencar- PSOL-RJ

País mudo não muda
As manifestações que tomaram as ruas das cidades brasileiras mexem com as categorias tradicionais de análise. Tudo o que se elabore a respeito será insuficiente, pré-texto que é também pretexto para justificar o não entendimento completo desse contexto singular. A régua usada para medir movimentos anteriores não é adequada para avaliar os atuais, que “não têm CNPJ”. Uma boa embocadura é fazer considerações a partir do que diziam alguns cartazes que os milhares de manifestantes, na sua maioria jovens, portavam:
“O gigante acordou”? A história brasileira registra manifestações massivas e explosivas de caráter urbano. Em 1890, ainda no II Reinado, o Rio de Janeiro agitou-se por dias seguidos, em reação da população contra o aumento de 20 réis na passagem dos bondes. Portanto, tanto o ‘gigante’ já acordou antes quanto é possível que volte, agora, a adormecer – sedado pela inorganicidade dos protestos e pela sua extrema diversidade, reflexo de uma sociedade que, historicamente, tem mais estadania do que cidadania. Que os conservadores não se sintam aliviados, porém: seu sono será leve, assombrando com a possibilidade de acordar a qualquer momento. Há setores sociais novos, apelidados de ‘classe C’, que parecem ter chegado ao limite de sua estimulada capacidade de consumo. Agora, engarrafados nas ‘carrocracias’ urbanas, no sufoco da especulação que aumentou violentamente os preços dos aluguéis e dos imóveis, sem planos privados de saúde e possibilidades de pagar escolas particulares, clamam por serviços públicos de qualidade.
“Não é por centavos, é por direitos”. A questão das tarifas foi a faísca que incendiou uma planície de insatisfações até então conformadas. A repressão policial adicionou combustível e demandas reprimidas de diversos setores provocaram o incandescente protesto “contra tudo o que aí está”. A irritação cotidiana com a péssima mobilidade urbana do país – segundo o IBGE, apenas 3,8% dos nossos 5.567 municípios têm Plano Diretor de Transportes, embora 74% deles possuam estrutura administrativa/burocrática para o setor – criou caldo de cultura que engrossou os protestos. Mais que em busca de negociação, os atos eram de rebeldia: não demandavam das autoridades que as recebessem nem constituíam comissão representativa para este ‘diálogo’. É como se a multidão clamasse: ‘quem quiser nos ouvir, que ouça!’. As manifestações multitudinárias de junho estão tendo um efeito-demonstração: de lá para cá, milhares de pequenos movimentos reivindicatórios eclodiram ou se reanimaram.
“Queremos escolas e hospitais padrão Fifa”. Estádios suntuosos foram reformados ou construídos pelo consórcio negocista Fifa-Governo Brasileiro-Parlamento – que aprovou a Lei Geral da Copa e o Regime Diferenciado de Contratações de Obras Públicas, dando arcabouço jurídico ao empreendimento. As arenas faraônicas cumpriram papel pedagógico, ao demonstrar que recursos existem, que prazos podem ser cumpridos... e a falta de critérios no uso do dinheiro público, que não chega para escolas e hospitais. O “padrão Fifa” que se reclama, por óbvio, não é o da gestão da entidade, com tantas denúncias de corrupção.
“Fora todos os governos”. A tônica personalista da política vigente levou a uma contradição: há 3 meses, a aprovação ao desempenho dos governantes – no plano federal e estadual – já contrastava com a avaliação das políticas públicas de saúde, educação, segurança, moradia e trânsito, de tendência claramente negativa. Nas ruas, o repúdio era contra os partidos, pois, no senso comum, nenhum presta. Pesquisa recente revela que 81% dos consultados os consideram corruptos, sem exceção. E também contra a péssima qualidade dos serviços públicos e contra os meios de comunicação de massa, com seu noticiário interessado. Tudo foi posto em questão por uma geração que não conheceu o PT contestador e sim o do poder. Que não viveu qualquer polarização política, mas sim o avassalador processo de ‘peemedebização’ e despolitização da política, com sua devassidão ética, azeitada máquina de captar votos e voracidade de ocupação de espaços.
“Não adianta rugir como um leão e votar como um jumento!”. Aqui há uma mediação com a democracia representativa tradicional, chamando a atenção do próprio cidadão eleitor: ele também é responsável pela degradação do sistema político, ao não dar um voto consciente nem acompanhar a vida pública. Os muito interessados na política de negócios prevalecente são alimentados pelos muitos “analfabetos políticos”, pouco interessados nessa dimensão essencial da existência. O sistema partidário-eleitoral em vigor, fulanizador, excludente, marqueteiro e fisiológico, favorece a captação de sufrágio e a eleição de pessoas sem o menor espírito público, a despeito das leis que criminalizam a captação de sufrágio e tornam inelegíveis os ‘fichas-sujas’.
Saí do Facebook!” A maior novidade é a articulação em rede saindo da telinha para a vida real: ‘o post nos libertará!’. Nunca na história desse país houve tamanho “enxameamento viral”, de uma certa forma mais ‘social’ que ‘político’, e que tende a ser não contínuo e crescente, mas intermitente, como um ‘foco guerrilheiro pós-moderno’ que surpreende o poder com ações ousadas, exemplares, e depois recua – sem sequer saber da existência do manual do velho Che e das estratégias do general Giap... As manifestações revelavam um desejo difuso de participação, de cada um ser ator de sua história – de certa forma, cada um sendo sua própria manifestação. No contexto ideológico do hiperindividualismo capitalista em que vivemos, muitos, inteiramente à margem de partidos, sindicatos, grêmios e associações, levaram demandas a partir de sua percepção pessoal, coletivizando-as em sua debutância militante, colocando-as na cena pública.
“Penso, logo não assisto”. As redes sociais confrontaram as redes empresariais e seus grupos restritos, monopolistas. A mídia direta polarizou com a mídia tradicional, embora venham desta – especializada, por dever de ofício – a maioria das intensas e diversas informações que circulam nas redes. Inegável que a internet promove uma democratização dos meios de comunicação, abalando a força indutora da mídia grande, questionadíssima em todas as manifestações. Não por acaso está montada uma rede de espionagem, a partir dos EUA, para o controle destas informações, além de, em alguns países, a internet ser rigorosamente controlada e restrita. Nas passeatas, a cobertura das TVs foi hostilizada a ponto de seus repórteres terem que ir sem a canopla dos microfones com as logomarcas de suas empresas. Tão questionada como os partidos, a mídia grande comercial, por óbvio, pouco destacou esse aspecto dos protestos. Mesmo os jornais impressos, muitos pertencentes à mesma rede de comunicação, não noticiaram essa forte contestação. Fundamentalismos religiosos também foram fustigados.
“Quem luta, conquista”. Revelando a força da pressão direta da praça sobre os palácios – antiga proclamação das esquerdas -, as manifestações já produziram resultados concretos, tanto em ações do Poder Executivo (redução de tarifa para 70% da população de cidades grandes e médias e anúncio de projetos para melhorar a mobilidade urbana), do Legislativo (acelerando-se a aprovação de matérias que tramitavam em passo lento) e mesmo do Judiciário (prisão de um deputado ladrão). As diferentes tribos sem tribunos, ocupando os espaços centrais das cidades, constituíram uma original e multifacetada tribuna popular. Disse, sem dizer, que democracia é mais que votar. A antiga cultura participativa da qual emergiu o PT negou o ‘mestre’ hoje acomodado. Quem tem a obrigação de decodificar e formular políticas públicas a partir das demandas necessariamente difusas – e, aqui e ali, confusas – são os agentes políticos que se assumem como tais ou estão mandatados para tanto. A cidadania aponta os problemas, com a autenticidade de quem os sofre na carne e na alma. Resolvê-los é tarefa dos que são pagos por ela para esse serviço, que é político e técnico. Desafio grande para quem andava tão blindado contra as massas, só consideradas como de manobra nos anos eleitorais.
“País mudo não muda”. Só o prosseguimento das manifestações tirará da inércia os paquidérmicos Poderes da República. Ao contrário de alguns outros movimentos, no Brasil e no mundo, não há aqui, até o momento, formulação de tomada de Poder, e sim seu questionamento radical. Semelhante ao ‘Ocupa Wall Street’, aqui se enfatiza mais o que não se quer do que o que se quer. A ocupação dos espaços públicos por multidões manifestantes – multiclassistas, destaque-se – questiona a lógica do poder que passa pelo controle do território, proclamado como ‘dever de manutenção da ordem’. Reivindicantes/protestantes presentes e visíveis alteram a natureza da tradicional ‘impotência’ das massas frente ao poder estabelecido. Esse autoempoderamento abre a possibilidade estimulante de se estar fazendo história. Para Manuel Castells, sociólogo estudioso da sociedade em redes, “é o caos criativo. Anormal seriam legiões em ordem, organizadas por uma única bandeira e lideradas por burocratas partidários. O espaço público reúne a sociedade em sua diversidade: a direita, a esquerda, os malucos, os sonhadores, os realistas, os ativistas, os piadistas, os revoltados...”
“Sem partido!” A este reiterado brado, a reação foi a afirmação, correta, de que sem partidos não há democracia. É imprescindível entender, porém, que os partidos não são mais a única forma de representação da sociedade, e andam cada vez mais dissociados de suas vontades, seja por seu controle caciquista (prática dos da direita), seja por suas autofagias e baluartismos (costumeiros nos de esquerda). Aliás, os grandes partidos brasileiros – que sofrem de ‘nanismo moral’ – e os ditos ‘nanicos’, legendas de aluguel, também não querem aprofundar a democracia, com mais mecanismos de transparência e participação direta da população. Não seria exagero dizer que com esses partidos não há democracia! É verdade, por outro lado, que o vazio ideológico e a progressão, nos tempos atuais, da distopia, produzem ‘rebeliões do efêmero’, com uma espécie de solidariedade pós-moderna eventual, com o compartilhamento de reivindicações particularistas. Jovens representantes da Federação Anarquista, por outro lado, costumam lembrar a bela consigna “povo forte não precisa de líderes”. Frase de Emiliano Zapata, principal líder da Revolução Mexicana do início do século passado... “Podemos ser qualquer pessoa, as pessoas se apropriam das suas próprias lutas, não precisam ficar esperando alguém dizer o que fazer”, disse Mayara Vivian, que é da coordenação do organizado Movimento Passe Livre de São Paulo. Alguma forma de organização e liderança, ainda que mutante e rotativa, é necessária.
“Vândalo é o Estado”. A sociedade de massas e as grandes metrópoles estimulam mentalidades competitivas e comportamentos de forte tom agressivo, como se vê diariamente nas discussões de trânsito. A tensão urbana explode com frequência, sem controle racional possível. É fato que as manifestações, quase sem exceção, possuíam uma ‘cauda envenenada’ que reunia desde jovens no limiar da marginalização – no Brasil, cerca de 24 milhões entre 15 e 25 anos estão fora da escola e do mundo do trabalho – até os ditos mais politizados, defensores da ‘ação direta e violenta contra os símbolos do estado’, entre eles anarcopunks e ‘blacks blocs’. Chegavam encapuzados e com artefatos explosivos de fabricação caseira em manifestações pacíficas que clamavam por transparência. Sua disposição era de brigar com a polícia. Esta, despreparada e militarizada, vendo em todos o arcaico “inimigo interno” dos tempos da Guerra Fria, vinha disposta a, sendo fustigada, atacar tudo e todos, sem critério e economia de bombas, gases, cassetetes. A repressão inaudita das PMs foi, sem dúvida, um fator de crescimento das mobilizações, como protesto contra a violência estatal. E o vandalismo do abandono de equipamentos públicos, sobretudo nas periferias, e da subtração de recursos, que a corrupção estrutural realiza, foram constante e corretamente denunciados.
“Se vocês não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir”. A propósito, Slavoj Zizek, em visita ao Occupy Wall Street (Liberty Plaza, Nova York), em 2011, alertava: “Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. (...) O verdadeiro teste do seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida cotidiana será modificada. Apaixonem-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. (...) Há um caminho longo pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis, questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que queremos.(...) Qual organização pode substituir o capitalismo vigente? Que tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem. (...) O problema maior não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a ser corruptos. (...) Da mesma maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, tentarão transformar isso aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para entidades caritativas ou comprar cappuccino da Starbucks, que reverte 1% da renda para os pobres do Terceiro Mundo, seria suficiente para nos sentirmos bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nosso engajamento político seja terceirizado – mas agora nós o queremos de volta! (...) Quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os EUA são uma nação cristã, lembremo-nos do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos! Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à ocupação. Sim, somos violentos no sentido em que Mahatma Gandhi o foi. Somos violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas andam. Mas o que significa essa violência simbólica quando comparada à violência necessária para sustentar o funcionamento do sistema capitalista global? Em breve seremos chamados de perdedores. Mas os verdadeiros perdedores não são os que se safaram com a ajuda de centenas de bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos EUA já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não respeitam a propriedade privada, mas as especulações financeiras e imobiliárias que levaram à queda de 2008 extinguiram mais propriedades privadas obtidas a duras penas – pense nas moradias hipotecadas – do que se estivéssemos as destruindo agora, dia e noite.”
Não tenho hospitais, não tenho escolas, não tenho transporte... E não tenho mais paciência também!”. No Brasil, a degradação da qualidade de vida das pessoas, sobretudo nos grandes centros, tem raízes estruturais. O chamado “inferno urbano” não se explica simplesmente por razões demográficas e imediatas, setoriais. Segundo o economista Reinaldo Gonçalves, o modelo liberal periférico, que a década do lulopetismo não reverteu, implicou “um país ‘invertebrado’, com a perda de legitimidade do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e das instituições representativas da sociedade civil (partidos políticos, centrais sindicais e estudantis, organizações não governamentais...) Trata-se de um social-liberalismo corrompido por patrimonialismo, clientelismo e corrupção e garantido pelo ‘invertebramento’ e pela fragilidade da sociedade civil”. Gonçalves lembra o crescente endividamento das famílias pobres e de classe média como fator de inquietação social, no contexto econômico de liberalização, privatização, desregulação, dominância do capital financeiro, subordinação e vulnerabilidade externa estrutural: “a distribuição limita-se à redistribuição incipente da renda entre os grupos da classe trabalhadora de tal forma que os interesses do grande capital são preservados; não há mudanças na estrutura primária de distribuição de riqueza e renda no que se refere aos rendimentos da classe trabalhadora versus renda do capital”.
“Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”.
A multidão produz uma sensação de força que pode se tornar tão generosa quanto... pretensiosa. Não se muda o país sem o enfrentamento, por exemplo, da questão da dívida pública. Ela comeu 44% do Orçamento da União em 2012 (R$ 753 bi), enquanto a Saúde recebeu 4% (R$ 71 bi) e a Educação 3,3% (R$ 57 bi). Transportes ficaram em 0,7%, Segurança 0,39% e Habitação 0,01%. Para este ano de 2013, o valor a ser pago em juros e amortizações da dívida subirá 20%, para gáudio dos grandes rentistas do capitalismo financeirizado. As mudanças só serão estruturais e não cosméticas com um novo paradigma de modelo econômico, e as consequentes Reformas Tributária, Administrativa e Política. A questão ambiental, tão crucial, não estava significativamente representada nas ruas. Sem isso, o transtorno não transforma. E o que alguns proclamam como revolução será apenas pontual irrupção.

Fonte: Le Monde Diplomatique

MOBILIZAÇÕES PELO BRASIL
O junho de 2013
A luta pela revogação do aumento das tarifas de transporte gerou uma revolta nacional que passou a ditar os rumos da agenda pública. A partir da vitória na questão do preço da passagem, o movimento ganhou novas e difusas pautas, disputadas pela esquerda e a direita. Os governos tentam acalmar os movimentos
por Luís Brasilino, Renato Godoy, Cristiano Navarro
(Milhares de manifestantes se reúnem em volta da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro)
A maior mobilização no Brasil desde 1992 permanece em curso e em disputa. A primeira reivindicação, pontual e popular, a revogação do aumento das tarifas do transporte, obteve êxito. E, a partir dessa conquista, o movimento explodiu, apresentando diversas bandeiras. Com pautas difusas, por vezes contraditórias, e sem organização centralizada, as demandas aclamadas nas ruas impuseram uma nova agenda ao poder público. Acuado e ainda tentando compreender a dinâmica dos protestos, este acenou com mais verbas para a educação, saúde, mobilidade urbana e até a possibilidade de uma reforma política.
O Junho de 2013 já é histórico. Milhões de brasileiros foram às ruas das principais cidades do país após décadas de apatia social. Isso sem a convocação de figuras públicas ou entidades tradicionais dos movimentos sociais – e contra as orientações da grande imprensa, que insistia em rotular todos os manifestantes de vândalos e baderneiros no início da revolta, clamando por uma repressão mais dura da polícia. A onda despertou tanto interesse quanto confusão entre a academia e as organizações sociais, em todo o espectro político.
O Movimento Passe Livre (MPL), que chamou as primeiras manifestações contra o aumento da passagem, sobretudo pelas redes sociais, fortaleceu-se durante o processo e obteve amplas vitórias políticas. Porém, não é plausível dizer que a organização liderou sozinha as manifestações. Situado no campo da esquerda, o MPL chegou a divulgar notas condenando a aparição de pautas conservadoras nos atos por ele convocados. Ao passo que os maiores veículos de comunicação começaram a apoiar os protestos, foram surgindo manifestações contra a presidente Dilma Rousseff, contra o aborto e pela redução da maioridade penal, e cresceu a hostilidade contra organizações de esquerda nos atos.
Mas, afinal, qual é o sentido dessa irrupção das ruas na agenda nacional?
Origem da revolta
Interpretar os motivos e quais estratos sociais estão envolvidos na onda de manifestações tem sido o maior desafio. A tarefa torna-se mais difícil pela rapidez dos acontecimentos e pelo caráter difuso das reivindicações.
A análise de membros do MPL dá conta de que a quantidade de pessoas mobilizadas é, de fato, surpreendente, mas não ocorreu por acaso. Paíque Duques, do MPL de Brasília, lembra que o movimento já tem oito anos de história e, desde então, tem levado o tema da mobilidade urbana e a luta pela tarifa zero às ruas. “Os protestos são fruto de um processo longo e bem anterior de mobilizações de rua, nas quais o transporte público foi a reivindicação principal. Essa luta tem um lastro social que é a mobilidade urbana nas cidades. Não é uma luta contra todas as opressões genéricas. Os protestos obtiveram vitórias imediatas com a redução da tarifa e vitórias de longo prazo com o debate público sobre a tarifa zero”, atesta.
O dirigente do MST João Pedro Stedile concorda que a origem da revolta pode ter sido o modelo urbano vigente no Brasil. “É muito positivo o que está acontecendo no Brasil. Contudo, isso está sendo mobilizado por uma juventude de classe média baixa que nasceu no neoliberalismo e não tem experiência política. Trata-se de um substrato urbano social que convive com uma crise urbana gravíssima, em todas as cidades brasileiras, provocada por esse estágio do capitalismo internacional, que trouxe a especulação imobiliária, o aumento das rendas, que financiou automóveis e encheu nossas ruas de carros”, observa.
Já Rui Falcão, presidente do PT, prefere destacar o clima democrático que o país vive, sobretudo nos últimos dez anos, como fator que impulsiona as grandes mobilizações. “Hoje as pessoas sabem que podem ir às ruas com suas bandeiras, com suas reivindicações, sem nenhum risco de repressão. Ao contrário do que ocorria anteriormente, como na greve dos petroleiros [em 1995], reprimida duramente pelo Exército, numa maneira de o governo da ocasião [FHC] intimidar o movimento sindical”, diz.
No entanto, para o deputado federal e presidente do Psol Ivan Valente, as mobilizações marcam o fim de um ciclo. O descontentamento com o modelo de representatividade política é tão grande que a crise resvala até mesmo nos partidos situados à esquerda do PT, segundo o parlamentar, ainda que o caráter geral do movimento seja progressista. “Há uma insatisfação com a ideia de que o povo permanece quieto sem mudanças estruturais, apenas com estímulo ao consumo, crédito e as bolsas. Há uma indignação acumulada que teve na alta das tarifas de transporte um detonador, que transbordou para uma movimentação muito grande que chacoalha as estruturas de poder”, observa.
O historiador Lincoln Secco, da Universidade de São Paulo (USP), ressalta a violência policial ocorrida em São Paulo como um elemento importante para entender a disseminação da revolta pelo país. “Os protestos começaram com uma pauta única, embora de enorme abrangência social: as tarifas de transporte público. Depois da repressão policial em São Paulo, o movimento atingiu o ápice entre 17 e 20 de junho. Foram esses os dias cruciais, pois o motivo inicial das mobilizações foi ultrapassado por uma agenda ampla ditada pela grande imprensa. Como isso se deu? Não foi somente a ação de pequenos grupos nas redes sociais. O fato é que nos últimos dez anos a grande imprensa martela diariamente parte dos slogans que agora aparecem nas ruas: condenação seletiva da corrupção, contra gastos públicos e impostos etc.”, aponta.
Mobilidade, crise urbana, clima democrático, fim de um ciclo, violência policial... Mais do que divergentes, esses elementos na realidade se somam para explicar as motivações de uma revolta em grande medida espontânea e multifacetada. Pablo Ortellado, professor de Gestão em Políticas Públicas da USP e que acompanha o MPL desde sua fundação, aponta que o perfil dos manifestantes na capital paulista durante os dias de protesto foi se alterando. “Primeiro, houve uma mobilização contra o aumento da passagem, que levava muita gente com foco na tarifa e tinha um perfil de juventude com diversidade de classe social. Depois, com a entrada da mídia, pode-se observar um perfil de uma classe média alta despolitizada”, constata.

Investida da direita
Inicialmente, os grandes veículos de comunicação deram às manifestações sua cobertura habitual: enfoque nos transtornos para as cidades, especialmente o trânsito, e nos confrontos com a polícia. Após a forte repressão a manifestantes em São Paulo, no dia 13 de junho, e a reação indignada da população, o tom da cobertura mudou. A mídia corporativa assumiu seu papel de centralizador das forças conservadoras, passou a ressaltar o caráter pacífico dos atos e a disputar a pauta do movimento. Reivindicações normalmente encampadas pela direita começaram a surgir nas manifestações. Até mesmo pequenos grupos de extrema direita marcaram presença em atos na cidade de São Paulo e provocaram e agrediram militantes de esquerda.
Para Paíque Duques, os setores da direita tentam criar um bloco conservador com disposição para ir às ruas. Mas até o momento não está claro se esse plano obteve êxito. “A direita sempre vai tentar dar um golpe nas mobilizações. Eles apostaram que o fariam deixando de criminalizar o movimento, tentando tomar o rumo das manifestações e alterando suas pautas. Mas, como anteriormente a direita já havia criminalizado o movimento, o apoio deles não teve a repercussão esperada e isso acordou as organizações sociais de esquerda. Se eles não tiveram uma vitória plena, também não saíram derrotados”, conclui.
Lincoln Secco acredita que a imprensa corporativa e o pensamento de direita conseguiram, sim, mudar o caráter das manifestações. “Tanto a extrema direita, que é minoritária, quanto a esquerda não seriam capazes de dar ao movimento a abrangência nacional que ele teve. As redes sociais foram importantes, mas quem fornece o conteúdo do ‘pensamento político’ é o capital monopolista investido nos meios de comunicação”, explica.
O sociólogo Ruy Braga, da USP, também considera bem-sucedida a investida da mídia sobre os protestos. “A mídia é um partido político e, portanto, age conforme sua própria análise tática. Por um lado, os grandes veículos de comunicação de massa, em especial a Rede Globo, sabem que devem pautar o movimento, isto é, direcioná-lo para demandas anódinas ou claramente conservadoras. Até o momento, o tema preferido foi a luta contra a ‘corrupção’. Por outro lado, os veículos de massa temem que o atual estado de agitação social se transforme em um levante popular incontrolável. Daí toda a agitação antipartido feita pela mídia até o momento. Ou seja, eles buscam estimular e ao mesmo tempo moderar a autoatividade das massas. Funcionou até agora. Mas trata-se de um jogo muito perigoso”, analisa.

“Sem partido”
Até o momento, a manobra mais bem-sucedida da grande mídia foi conseguir, por meio da pregação antipartido, jogar boa parte dos manifestantes contra as organizações de esquerda, especialmente em São Paulo. Segundo o professor Valério Arcary, do Instituto Federal de São Paulo e membro do PSTU, a rejeição aos partidos é uma confusão gerada pela explosão da insatisfação contra o modelo político. “É uma geração que conhece um único governo nacional: o do PT. Para a grande maioria dessa geração, essa é aprimeira luta de sua vida. A esquerda é associada ao PT, e o PT, à corrupção. O repúdio ao sistema político, às instituições que mantêm a ordem capitalista, é indiferenciado. Muitos não distinguem, dentro da esquerda, as forças que apoiam o governo, como o PCdoB e o PT, e aqueles que são oposição de esquerda, como o Psol e o PSTU”, avalia.
Para Gilberto Cervinski, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o repúdio às organizações partidárias é perigoso e serve aos interesses de uma direita autoritária. “A última vez que se levantou a bandeira do ‘sem partido’ foi em 1964, às vésperas do golpe militar. E essa bandeira está sendo levantada pela direita, pelos grandes meios de comunicação e pelos setores empresariais”, pontua.
Nos atos das maiores cidades do país, a repulsa aos partidos políticos se deu em contraposição aos símbolos nacionais, como a bandeira e o hino. Dizeres como “Meu partido é o Brasil” e menções ao orgulho de ser brasileiro deram o tom das manifestações. Na visão de Pablo Ortellado, essa exaltação, no entanto, representa mais uma despolitização do que um ufanismo autoritário semelhante ao promovido pela ditadura civil-militar. “A bandeira é resultado de uma mobilização despolitizada que manifesta certo civismo e amor à coisa pública. Eu vi exatamente o mesmo fenômeno na Argentina, em 2001. Os grupos nacionalistas estão se aproveitando para se enfiar no movimento, mas não acho que seja o nacionalismo que mova as pessoas”, opina.

Blindagem rompida
De seu lado as organizações de esquerda, demoraram dez dias após a intensificação das manifestações para começar a costurar uma plataforma unitária, que pautasse os movimentos nas ruas com suas bandeiras. Uma reunião preparatória no dia 21 de junho mobilizou praticamente todos os partidos, sindicatos e movimentos sociais da esquerda brasileira, do PSB ao PSTU. No dia 25, as 77 organizações reunidas definiram 11 de julho como dia nacional de lutas, com paralisações em todo o país, e aprovaram uma plataforma unitária de reivindicações.
As propostas que serão levadas às ruas são: 10% do PIB para educação, investimentos em saúde, redução da jornada de trabalho para quarenta horas, transporte público de qualidade, reforma agrária, fim do fator previdenciário, reforma política, reforma urbana, democratização dos meios de comunicação, contra a PEC 4.330/04 (que amplia a terceirização) e contra os leilões do petróleo.
João Pedro Stedile compara os prováveis desfechos desse movimento maciço com experiências de outros países. “O problema é que essa juventude não tem projeto. É tão somente uma revolta, uma indignação. Eles não têm vínculos partidários nenhum e não sabem aonde isso vai chegar. Isso pode dar em Espanha, onde a direita capitaliza. Pode dar em Argentina, como na revolta de 2001, ou pode dar em Grécia, que é um impasse permanente. Podemos também encontrar uma saída à brasileira”, sugere.
Nos próximos meses, talvez anos, o movimento iniciado neste junho de 2013 ainda vai passar por muitas idas e vindas, avanços e recuos, mas esses dias de luta já têm um resultado simbólico: o resgate da força das ruas. Segundo Marcos Nobre, filósofo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o sistema político brasileiro criou, desde a redemocratização, mecanismos de blindagem contra a pressão das forças sociais. Esse processo, chamado por ele de “peemedebismo”, tem como eixo central o acordo entre as diferentes forças políticas no Congresso para se fechar diante de demandas da sociedade.
Esse sistema político se tornou mais hermético, para Nobre, quando a principal força historicamente contrária ao peemedebismo, o PT, promoveu uma aliança com o PMDB, após o escândalo do mensalão em 2005. Tal composição veio “corrigir” falhas do sistema que permitiram a interferência de pressões populares, como na queda de Fernando Collor, em 1992. E é esse arranjo político que vigora no país que está sendo questionado nas ruas. “A blindagem, que parecia tão inexpugnável, foi rompida com os protestos. Seu rompimento dependia de o povo ir às ruas”, acredita.
A postura do Congresso e de governos de diversas esferas nas últimas semanas de junho corrobora a tese de Nobre. Em uma só noite o Legislativo Federal derrubou a PEC 37, aprovou a destinação de royalties do petróleo para a educação e a saúde e a tipificação do crime de corrupção como hediondo. Em um efeito dominó, governos estaduais e municipais promoveram quedas de tarifas no transporte público, direito de passe livre para estudantes, congelamento de preços de pedágio e energia.
As mobilizações pela redução das tarifas reintroduziram estratégias de luta nas ruas até então abandonadas no país. Com a força de um tsunami, o povo trocou abaixo-assinados, lobbiese petições on-line por marchas, cartazes, pedras e pichações em disputa física pelos rumos da sociedade.
Luís Brasilino
Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.


Renato Godoy Jornalista


Cristiano Navarro Jornalista, é diretor do documentário "Á sombra de um delírio verde".


Ilustração: Reuters / Sergio Moraes

Conjuntura da Semana. Junho 2013. Significados, inflexões e perspectivas do Outono Brasileiro

A análise da Conjuntura da Semana é uma (re) leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Sumário:
A potência das ruas
Tudo mudou nas últimas semanas
A recusa e o reconhecimento
Ruas pedem outro modelo
O precariado está nas ruas
Ética. Uma bandeira da direita?
Redes Sociais. Novo sujeito político?
O despreparo da vanguarda institucional
As reações de Dilma e do Congresso
Da Assembleia Nacional Constituinte ao Plebiscito
Junho 2013 em frases
Eis a análise.
A potência das ruas
Tudo mudou nas últimas semanas
Os acontecimentos de junho de 2013 – as grandes manifestações serpenteando as ruas das principais cidades brasileiras – colocaram o país no cenário mundial das multidões que tomaram as ruas e praças nesse início de século. Tahrir, Puerta do Sol e Taksim também acontece aqui. Por que o Brasil? Por que agora? Qual o significado dessas manifestações? Qual é a sua potência e o seu devir?

AQUI

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Assembleias e Conselhos Populares, Já! – referências e metodologias

26/06/2013 | Publicado por celioturino em Sem categoria
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Como reflexo das Manifestações que tomaram conta do país, as Assembleias Populares começam a se espalhar pelo Brasil. Com isso, se avançarmos coletivamente com as Assembleias, o povo brasileiro poderá dar mais um salto (ainda mais surpreendente para aqueles que “não entenderam nada” do que está acontecendo), saindo do estágio da manifestação e revolta “em si” para transformarmos o movimento em “para si”. No primeiro momento as pessoas foram às ruas para dizer “o que não queremos”, agora é a hora de dizermos “o que queremos”, e mais adiante “como queremos”, e ainda mais adiante “com quem queremos”. Enfim, há todo um caminho a percorrer e que só poderá ser completado se soubermos aproveitar cada experiência construída, seja no Brasil ou fora. Acabo de receber uma proposta que compila de experiências muito relevantes a serem levadas em conta, como as Assembleias Populares no estado de Oaxaca (México), o 15M (indignados e acampados na Espanha), o Occupy Wall Street e as Assembleias Populares no período da República Espanhola (1936/39) e apresenta uma proposta de plataforma colaborativa e em software livre para a facilitação de Assembleias Populares:
http://net.coolmeia.org/pages/view/4979/forum-das-1000-mesas-permanentes
Assim, quem se interessar, entre em contato direto com o Coletivo Coolmeia, que disponibilizará as ferramentas necessárias para a construção de pautas e sistematização de decisões, sejam em assembleias por local de moradia, estudo, trabalho ou temáticas (como a ocorrida em São Paulo, com o tema Comunicação, ou a Assembleia Popular do Rio de Janeiro, que divulguei no último artigo). Como preocupação principal, precisamos levar em conta mecanismos de consulta que privilegiem manifestações de pessoas não acostumadas a falar em assembleias, seja dividindo a assembleia em rodas menores de escuta, coleta de opiniões em cartões (mil mesas), abertura de plataforma na internet (como apresentada pelo coolmeia) para recolhimento de opiniões, entre outras formas de expressão. Também será bom se tod@s pudermos utilizar a mesma ferramenta de modo a estabelecer uma comunicação entre as Assembleias, até a realização de Assembleias municipais, regionais, estaduais e Nacional. Notem, se assumirmos a construção das Assembleias Populares estaremos dando uma nova consequência às manifestações do povo brasileiro, efetivando novas formas de poder, construído “de baixo para cima”, de forma horizontal e autônoma.
E assim seguimos, semeando um Brasil como nunca se viu!

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   Você vai ficar parado assistindo o golpe prosperar?




Ao fim da noite de quinta-feira, recebo uma ligação surpreendente tanto pelo autor quanto pelo que disse. E quem disse – e o que disse – importa menos do que aquilo que a chamada me fez concluir: não dá mais para ficar só analisando e comentando o quadro político. Quem luta há uma década para ajudar a sustentar um projeto político-administrativo que melhorou tanto o Brasil não tem o direito de ficar só reclamando do golpe que busca interrompê-lo.
Este Blog se converteu em uma trincheira dos que discordam de uma Onda que engolfou o país e que tem produzido muito mais calor do que luz, se não apenas calor. E o signatário desta página, assim como outros poucos, aceitou, de bom grado, pagar o preço que as catarses impõem a quem se recusa a integrá-las. Tudo em prol do país.
Seria muito fácil todos os que divergimos cedermos, integrarmo-nos à Onda que pretende “mudar o Brasil” marchando pelas ruas “pacificamente” no começo e selvagemente ao fim sob o argumento de que os selvagens são “um pequeno grupo”, o qual, porém, pequeno ou não, é tolerado em praticamente todas essas manifestações, nas quais o desfecho violento já se tornou previsível, sendo poucas aquelas manifestações em que não irrompe.

 AQUI

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Aton Fon Filho: A direita sai de casa pela porta da esquerda



DIREITA SAI DE CASA PELA PORTA DA ESQUERDA [1]

por Aton Fon Filho, sugestão de Milton Coelho

Introdução
Esse trabalho busca estabelecer uma visão de classe das manifestações desencadeadas após as elevações de tarifas de transportes e da conjuntura que delas resultou. Embora considere principalmente a experiência de São Paulo, corresponde linha geral ao que o noticiário também sobre outras partes do Brasil.
Na Mídia em geral, e mesmo em manifestações da esquerda, vemos referências indiscriminadas a povo, jovens, pessoas, trabalhadores. Mas que “povo” é esse? Quais as determinações de classe desses “jovens” e dessas “pessoas”? De que “trabalhadores” estamos falando? [2]
A Base da Pirâmide e a Classe Média
Partamos de alguns pontos sobre a situação da classe média e dos trabalhadores da base da pirâmide, com o respaldo da análise de SINGER (2012) sobre o lulismo [3]. Referida análise, no que aqui interessa, aponta que as diversas políticas econômicas e sociais do governo Lula geraram um realinhamento eleitoral que consiste, em termos os mais resumidos possíveis, em que a população de mais baixa renda [4] – ali chamada de subproletariado – a partir de 2005/2006 se incorpora no apoio a Lula. Essa faixa do proletariado teria interesse na mudança, mas, contraditoriamente, rejeitaria o conflito. Quer a mudança dentro da ordem.
Ao mesmo tempo, também no período 2005/2006, a classe média consuma sua passagem à oposição, fundamentalmente através do apoio ao PSDB, mas também, uma pequena parte, à oposição de esquerda.
POCHMANN aponta que os empregos gerados na década de 2000 ficaram concentrados na base da pirâmide social – com renda até 1,5 salários mínimos [5]. E que na faixa de renda acima de 3 salários mínimos chegou a haver importante redução das vagas:
“Na década de 1990, estabeleceu-se no Brasil um novo padrão de trabalho, composto por um menor ritmo de geração de postos de trabalhos e um perfil de remuneração distinto. Isso porque foram abertos somente 11 milhões de novos postos de trabalho, dos quais 53,6% não previam remuneração.
Na faixa de renda de até 1,5 salário mínimo, houve a redução líquida de quase 300 mil postos de trabalho, e esse segundo padrão de emprego diferenciou-se significativamente daquele verificado entre os anos 1970 e 1980.
Por fim, a década de 2000 apresentou uma alteração importante no padrão de trabalho da mão de obra brasileira, marcada por forte dinamismo nas ocupações geradas e no perfil remuneratório. Do total líquido de 21 milhões de postos de trabalho criados na primeira década do século XXI, 94,8% foram com rendimento de até 1,5 salário mínimo mensal. Nas ocupações sem remuneração, houve a redução líquida de 1,1 milhão de postos de trabalho, enquanto na faixa de cinco salários mínimos mensais a queda total atingiu 4,3 milhões de ocupações. Em síntese, ocorreu o avanço das ocupações na base da pirâmide social brasileira.
SINGER aponta, daí, uma “polarização entre ricos e pobres”. Lembra JESSÉ SOUZA, para quem
“A classe média brasileira, por comparação com suas similares europeias, por exemplo, teria o singular privilégio de poder poupar o tempo das repetitivas e cansativas tarefas domésticas, que pode ser reinvestido em trabalho produtivo e reconhecido fora de casa”. [6] [7]
E conclui, ele próprio,
“Daí a resistência da classe média ao programa do lulismo de erradicação da miséria, produzindo-se reação muito distante da indiferença política. O lulismo mexe com um conflito nuclear no Brasil, aquele que opõe “incluídos” e “excluídos”.
Essa classe média, vê-se, não obteve ganhos, e teve perdas econômicas.
Se piora mais grave não houve na situação dessa classe média, foi ela muito mais perceptível dada sua posição relativa, na medida em que viu os mais ricos passarem a ganhar ainda mais, decolarem e se afastarem, de modo que os de cima se perderam nas alturas, ao mesmo tempo em que os de baixo, os da base da pirâmide ou de baixíssima renda, tiveram uma certa ascensão, aproximando-se de seus calcanhares.
Essa queda relativa da baixa classe média foi o elemento material que a conduziu a, somada à questão ideológica da luta contra a corrupção, abandonar desde 2005 o PT e Lula e aderir definitivamente à oposição de direita (PSDB e aliados) e à oposição de esquerda (PSTU, PSOL, etc. [8]
É certo que essa classe média não foi capaz de elaborar demandas econômicas, de aperceber-se concretamente de quais os motivos de sua insatisfação. Vê que está sendo lançada para o grupo de baixo, mas não é capaz de determinar onde lhe foram impostas as perdas que a rebaixaram (porque tais perdas, em geral, não existiram). E não encontra também resposta nos partidos da oposição, quer os de direita, quer os da esquerda.
Daqueles, obteve bandeiras vagas – “luta contra a corrupção”, “gerenciamento” – e destes bandeiras que não respondem a seu próprio interesse, mas ao interesse dos “de baixo”. Uns e outros, porém, encontram-se em torno de valores éticos que parecem permear suas plataformas políticas nas ações concretas, o que faz essa classe média ir-se posicionando em torno de palavras de ordem e questões de valores, genéricas.
Assim como foi se articulando – na sua vertente de esquerda, longe das demandas de classe, em torno de demandas ditas de direitos humanos, sob orientação multiculturalista. São os excluídos, não mais os proletários, os explorados, o foco de seus esforços organizativos. Assim é que questões de enfrentamento de classes, opondo, por exemplo, latifundiários e agrocapitalismo com trabalhadores canavieiros, sem-terra, pequenos proprietários foram apresentadas sem o conteúdo de classe, como expressão de defesa de uma identidade cultural, como questões indígena, quilombola, ambiental, etc.
A exploração capitalista foi seccionada e setorizada, passando a valer não pelo que é – pelas relações de produção – mas pelo que parece ser: mineração, agronegócio, construção de barragens, produção de transgênicos, destruidora do meio ambiente, destruidora da identidade cultural, etc.
Capturada pelo lulismo, a relação com os mais pobres passou a ser feita pela luta contra os efeitos da exploração, em lugar de ser feita contra a exploração, mas com as medidas governamentais atacando aqueles efeitos e amortecendo seus impactos, seja através de programas de complementação de renda, como Bolsa Família, seja através de programas sociais como Luz para Todos, PROUNI, Minha Casa, Minha Vida, etc.
De outro lado, opondo-se à perspectiva governamental, os mesmos óculos nublaram a visão da extrema-esquerda que, em busca de se opor ao lulismo, chamou aquelas medidas de “cooptação” e passou a exigir, pela via da organização de movimentos sociais, medidas de efeito semelhante (fornecimento de cestas básicas, assentamento e programas de moradia para integrantes de movimentos de sem-teto, etc) [9].
Revelou assim essa extrema-esquerda um mesmo vício de substituir a causa pelo resultado, incapaz de fugir dos limites impostos pelo lulismo, mesmo se opondo a ele.
Ainda há que investigar e desenvolver melhor o impacto que pode ter tido sobre isso uma visão que sobrepõe a ética às determinações da luta de classes, resquício das lutas que levaram à superação da ditadura militar e do papel da igreja católica no processo.
Das lutas que resultaram na derrota da ditadura militar, primeiro, e das dificuldades advindas da prolongada crise econômica e descenso das lutas operárias – e urbanas, de modo geral –, decorreu a apresentação de inúmeras demandas como demandas de valores, éticas, e fundamentadas como direitos humanos.
Reivindicações que o desemprego profundo e prolongado tornavam impossíveis de serem formuladas em face do patronato, passaram a ser formuladas em face do Estado, apresentadas como direitos, e Direitos Humanos: direito à moradia, direito ao trabalho, direito à saúde, direito ao transporte. Também daquelas lutas contra a ditadura, permaneceram as reivindicações de valores referentes a direitos identitários, vinculados à luta pela liberdade, como os valores anti-discriminatórios em geral, de raça, gênero, condição física, identidade e orientação sexual.
Isso promoveu a influência do multiculturalismo e da cultura de direitos humanos, sobrepondo-se, mesmo no interior das organizações marxistas, à visão dos processos de um ponto de vista de classes.
Daí, possivelmente, a evidência de um liame de defesa de elementos reduzidos a éticos, ou postos no âmbito de direitos humanos, unificando um bloco de organizações partidárias marxistas, organizações religiosas, movimentos sociais e identitários [10] e mesmo indivíduos dispersos na atualidade. Tais movimentos e indivíduos buscam unidade e até logram estabelecê-la em algumas circunstâncias, em torno de questões de proteção da identidade, mas raramente em torno de questões sociais. Assim, por exemplo, se é verdade que o MST pôde apoiar as causas indígena ou LGBTT, não se tem notícia de indígenas ou o movimento LGBTT apoiando ocupações do MST ou do MTST.
Se a classe média que adotou a oposição ao lulismo pela esquerda pôde se refugiar nas bandeiras éticas e identitárias, ou em sucedâneos dos mesmo programas lulistas, aquela que adotou a oposição pela direita se viu privada de demandas materiais, ou que pudessem ser expressas materialmente.
Esses setores adotaram a linguagem da extrema direita e hasteiam bandeiras como a da “meritocracia” contra as políticas de cotas e de inserção de faixas de renda mais baixa nas universidades; contra as políticas de complementação de rendas [11], etc, o que expressava muito mais o susto de ver uma ascensão dos de baixo do que, concretamente, uma redução de sua própria condição material.
Nesse sentido, as análises de POCHMANN e SINGER contêm dados semelhantes, não apenas no que toca à faixa de mais baixa renda – subproletariado, para SINGER; base da pirâmide, para  POCHMANN –, pois ainda que este não analise repercussões políticas e sociais dessa incidência econômica, elas ficam subjacentes, mas também com relação à classe média.
As manifestações em curso – O Início – Hegemonia da Oposição de Esquerda
As manifestações de agora foram iniciadas por um movimento social de classe média, com uma demanda de interesse da população de mais baixa renda. O MPL é um movimento de classe média daquela oposição de esquerda, o que explica também a sua relação privilegiada com partidos como PSOL e PSTU, presentes nas manifestações desde o início.
Suas manifestações tinham um conteúdo e uma tendência à radicalização contra o governo municipal petista e as correntes que o apoiam. Mas o MPL é, também, um movimento que se reivindica na faixa do autonomismo e do anarquismo, da ação direta e da organização horizontal.
Esse fato, se autoriza a participação da juventude de classe média de esquerda, estabelece limitação à participação dessa juventude , representada por suas organizações. Isso introduz, já desde o início, um valor desorganizativo ao processo. Os estudantes estavam na manifestação, mas não os diretórios e centros acadêmicos [12].
No interior do movimento, a predominância da oposição de esquerda permitiu às vezes vislumbrar ações contra algumas correntes adversas, antes mesmo que o anti-partidismo e a ação coordenada da direita contra toda a esquerda se fizessem patentes. A verdade é que a vitória da direita aconteceu nas condiçõespropiciadas por algumas, estimuladas por outras e combatidas por poucas forças de esquerda.
Como houve aqui em SP aumento também das tarifas do metrô, de responsabilidade do governo do PSDB, Alckmin lançou a repressão contra as manifestações, acompanhado pelos cães de guarda da mídia. Rapidamente, toda a oposição de esquerda, e mesmo algumas forças de esquerda que não desfilam na oposição, foram se somando.
As escaramuças perduraram até a quinta-feira sangrenta, dia 13 de junho, quando os cachorros-loucos da PM, sob ordens do secretário Fernando Grella (que justificou suas atitudes, num primeiro momento, após a manifestação), não selecionaram alvos numa repressão extremamente horizontalizada e extremamente violenta que alcançou parte da imprensa.
Essa repressão foi denunciada pela mídia mercê de terem sido vitimados alguns de seus funcionários, mas foi principalmente divulgada nos meios cibernéticos, incidindo o fato de que a tecnologia disponível põe hoje ao alcance de 95% das pessoas uma câmara fotográfica e de vídeo no bojo do obrigatório telefone celular. Resultado: o massacre foi amplamente documentado.
Feita a documentação, outro fator tecnológico – a existência das redes sociais – permitiu a divulgação da captura de uma realidade que se desconstrói por suas próprias imagens, o que resultou na massificação da informação sobre as manifestações pela internet, assim como pela própria grande mídia que não podia seguir escondendo o que a web escancarava, sob pena de se ver desmoralizada.
As manifestações em curso – O Salto para a Individualidade – Hegemonia da Direita.
E se deu, na manifestação seguinte, uma incorporação massiva da juventude de classe média, uma incorporação massiva anti-lulista, mesmo porque diminuiu o risco da repressão, com o recuo de Alckmin e a retirada da PM.
De qualquer forma, temos como evidente que essa incorporação foi, concretamente, expressão da juventude de classe média tradicional, sendo raras as participações tanto de pessoas na faixa de mais de 40 anos, como de provenientes das camadas de mais baixa renda [13]. Isso não desmerece, é sempre importante ressaltar, o fato de que a demanda inicial atendia interesses desta última faixa social, localizada na base da pirâmide. Mas, não pode haver dúvida de que a ampla massa que se incorpora depois da quinta-feira sangrenta foi o outro setor – majoritário – da classe média anti-lulista.
O que levou à sua incorporação? A leitura de reportagens e entrevistas não conduz a mais do que generalidades e “impressões”: “temos que nos manifestar”, “não dá mais para ficar calado”. E a uma pletora de análises que partem sempre da dificuldade de apreender as motivações quando não são, elas próprias tentativas de vender novas motivações.
Podemos também adiantar aqui algumas “impressões”, ainda sem suficientes elementos concretos para embasá-las.
A ausência de motivação consciente para a incorporação
De início, a ausência de motivação clara, somada ao fato de se tratar da classe média já é um indicativo importante. A classe média, tendo abandonado o PT e se passado para a oposição – seja de esquerda, seja de direita –, como mostra SINGER, demonstrou uma incapacidade de determinar suas próprias demandas, limitando-se a expressar “valores” genéricos que defende ou foi levada a defender.
De uma classe média desorganizada, mas sob a influência/hegemonia de linhas políticas da direita que, em muitos casos, incorporou palavras de ordem da oposição de esquerda, o que se tem nas ruas é um amálgama mal construído de boas intenções e generalidades: defesa do meio ambientecontra as obras da copa e repúdio à corrupção, feitas aquelas nos moldes do que preconiza a igreja católica e os movimentos culturalistas e de direitos humanos, e feita esta nos moldes do que defende o PSDB, uma visão da corrupção em que não aparecem os empresários corruptores [14].
Essa dificuldade de expressar demandas se somou (ou surgiu) do fato de que a oposição partidária ao lulismo se viu sem plataforma para apresentar à sociedade que não fosse a da “luta contra a corrupção”, uma possível motivadora, aliás, do rompimento da classe média com o PT em 2005 [15].
Solidariedade como motivadora da incorporação
Por outro lado, parece evidente que as cenas de combate e cerco, de tentativas de aniquilamento e de retiradas da quinta-feira sangrenta, motivaram solidariedade mas mesmo essa solidariedade não ultrapassou, no fundamental, o âmbito da classe média.
A expressão “no fundamental” resulta aí de dúvidas sobre se a participação na pesquisa realizada pelo jornalista Datena em seu programa de televisão pode ter sido expressão da base da pirâmide. A dúvida vem da impressão – sem qualquer suporte em dados – de que seja esse seu público.
Por outro lado, dado o momento em que vai ao ar o programa, certamente boa parte, senão a maioria dos trabalhadores dessa faixa não estaria em casa nem, menos ainda, frente à TV ou pensaria em gastar uma ligação telefônica para dar essa opinião. De qualquer modo, ainda que se possa ter aquela participação nas pesquisas como manifestação da base da pirâmide, não foi além do possível clique nos botões de um telefone, já que a participação concreta dos mais pobres nas manifestações não foi percebida [16].
É importante verificar que essa solidariedade foi desencadeada diante da repressão. Mas também vale a pena indagar por que uma repressão tão violenta foi capaz de fazer surgir um espírito de solidariedade em lugar do temor de participação que a polícia e o governo esperavam [17] [18].
As imagens constroem a realidade – Perda de identidade da manifestação – O Espetáculo
Põe-se em consideração a possibilidade de que essa solidariedade tenha decorrido de uma identificação de classe; não com a classe cuja demanda motivava as manifestações, mas com a classe que estava, concretamente, sendo agredida.
Mas, sendo fruto de uma identidade de classe, foi também fruto de uma perda de identidade política da manifestação.
As redes sociais e a mídia trouxeram as imagens da repressão na quinta-feira sangrenta. Mas as exibições de filmes e fotografias, em lugar de desvendar uma realidade, mascararam-na. Mais do que isso. As imagens não apenas mascararraam a realidade, como criam uma nova realidade.
As imagens mostravam pessoas fardadas atacando pessoas. Os atacantes eram reduzidos a PMs, força do Estado. Os atacados eram reduzidos a manifestantes. Mas as imagens não mostravam as condicionantes políticas do Estado que atacava as pessoas, nem das pessoas que eram atacadas. Aqueles podiam ser o governo federal, estadual ou municipal, podiam ser expressão do PT, do PSDB ou qualquer outro; do neoliberalismo, do neodesenvolvimentismo, da luta pelo socialismo. Estes não eram militantes de esquerda, de tal ou qual partido, ou movimento social. Eram apenas pessoas que estavam na manifestação.
O desaparecimento da condição militante de esquerda dos manifestantes constituiu um convite maior à incorporação de qualquer jovem de classe média. A participação já não tinha outros limites que a própria disposição de estar lá. Não era mais uma manifestação de esquerda, que se limitava pela concordância com uma palavra de ordem. Era uma manifestação para qualquer pessoa, com qualquer palavra de ordem [19]. Não era mais pelos 20 centavos! Era por “direitos’!
E era pelo espetáculo!
Não sendo uma força organizada cada um ficava responsável por definir o que o levava à manifestação. E cada um sabia que iria possivelmente ser filmado por um dentre os milhares de celulares e câmaras nas ruas. E iria para a internet, no facebook ou num blog, ou num site ou no instagram. E poderia ir para os jornais ou para os sites dos jornais. E para a televisão. Cada um que cuidasse, portanto, do modo como iria aparecer, como iria ser seu espetáculo.
As participações se tornam, portanto, cada vez mais individuais, mesmo quando as pessoas agem sob a hegemonia da extrema direita. Essa hegemonia estabelece um padrão de temas: corrupçãonão é por 20 centavos, é por direitoscontra a PEC 37contra as obras da copapela redução da maioridade penalo gigante acordou. Mas é a criatividade individual que fará a diferença e mobilizará outros, porque abre a disputa para que cada qual demonstre suas próprias qualidades de redator publicitário. Se não era mais pelos 20 centavos, se era por direitos, era pelos direitos que cada um julgava importantes.
E que não viesse, o MPL ou quem quer que fosse dizer que a manifestação era contra a tarifa. Afinal, se não se aceitava que o Estado pudesse pôr limites à manifestação, por que se havia de permitir que outros manifestantes pusessem?
E, mais, por que se havia de permitir que fossem postos limites por pessoas que eram de esquerda e tinham bandeiras vermelhas, como vermelhas eram as bandeiras do PT, o mesmo partido de que era o Prefeito que decretara o aumento? E a Presidente, que fora eleita indicada pelo PT e por Lula, que indicara esse prefeito? E que era corrupto e mensaleiro, como o diziam a mídia e a oposição de esquerda e a internet e os blogueiros e todo mundo sabia?
E como somente esses partidos de esquerda é que estavam presentes na manifestação, eram estes que tinham que ser postos para fora. Donde a palavra de ordem de “sem partidos” assume o significado de “sem partidos de esquerda”, já que o maior partido da oposição, a mídia, estava ali presente.
O Antipartidarismo
Nas manifestações convocadas pelo MPL conviveram o apartidarismo e autonomismo desse movimento e a presença e atuação dos partidos da oposição de esquerda.
A desconsideração do caráter de classe dos manifestantes iniciais e mesmo avaliação equivocada das tendências de classes e setores de classes na atual conjuntura, levaram o esquerdismo a acreditar que seu inimigo principal naquele momento inicial seriam os partidos e forças que de algum modo apoiavam ou se relacionavam com o governo.
Conduzidos por uma visão primária e reducionista da política, que rejeita e não consegue conviver com a contradição, a oposição de esquerda próxima ao MPL dedicou-se, inicialmente, a promover a expulsão de dentre os manifestantes, das correntes vinculadas ao governo, incapazes de uma lógica da luta de classes que os fizesse entender que atrair setores dos partidos governistas para a luta contra a tarifa adquiria primordialidade porque não apenas acrescia a força dos manifestantes, como gerava desentendimentos na base governista [20].
Viam, os partidos da oposição de esquerda, com isso, a possibilidade de se tornarem os condutores de um processo que, sem que entendessem bem o porquê, crescia exponencialmente, sem a presença das organizações políticas. Vangloriavam-se de suas atitudes divisionistas e plantavam, com isso, a semente do antipartidarismo num terreno que já era fertilizado pelo caráter individualista da classe média, pelo caráter autonomista do MPL e pela desconstrução do caráter de esquerda pela imagética das manifestações e da repressão a elas.
A primeira manifestação após a quinta-feira sangrenta (a quinta da série atual de protestos) viu, no Largo da Batata, um início de choques entre os Partidos e a individualidade que acorreu às ruas. Mas foi na sexta manifestação que se consumaram os ataques contra os Partidos presentes, com queimas de bandeiras de ataques ao PCR, PSTU e PSOL.
O pensamento hegemônico de direita já conduzia nesse sentido. Jabores e marcelos rezendes, depois de combaterem as manifestações e terem corrigido a rota, passaram a centrar fogo na necessidade de rejeição aos partidos, chamados de oportunistas e acusados de somente terem se somado os protestos após o seu crescimento.
Mas, se esse antipartidarismo partia do individualismo, o pensamento hegemônico foi fortalecido pela ação da própria oposição de esquerda. E, finalmente, veio a contar com a direção organizada de grupos de extrema-direita, skinheads e quetais.
Participação da base da pirâmide
Não obtivemos elementos para mensurar possível participação de trabalhadores da base da pirâmide social nessas manifestações. Certo é que houve esforços descoordenados de convocação de protestos na periferia, pelo MTST, Periferia Ativa e alguns outros inindentificáveis. Os números apresentados pela mídia foram, em geral, extremamente reduzidos. Mas houve algumas exceções. De qualquer modo, a constatação visual indicou que as manifestações reuniam jovens brancos, de classe-média, sendo a presença de pessoas de mais idade ou negros uma absoluta exceção [21].
Já se estudou e apresentou que os grupos de skinheads são de extração de entre os de mais baixa renda, expressão de uma conflitiva oposição ao conflito que a esquerda organiza. Sua presença no meio da manifestação de classe média perde identidade quanto à origem social, mas a ganha quanto à ideologia subjacente em ambos, variando naquilo que uns privilegiam a individualidade e outros propõem ação organizada em defesa das propostas radicais fascistas.
Violência
Não temos como excluir a possibilidade de que a violência tenha sido empregada como arma de convencimento pelo exemplo, ou como atividades de provocação para autorizar a repressão policial. Mas não temos, também, como excluir a possibilidade da atitude individual desorganizada, motivada pela vontade vista como necessidade de ocupar um lugar na história, e carente de orientações e limites que a organização proporciona.
Mesmo no caso da mais completa identificação de um indivíduo participante do ataque à Prefeitura, filho de um pequeno empresário, embora suas características físicas pudessem sugerir, não houve outros que permitissem comprovar se seria ele integrante de organizações para-militares fascistas.
Pelo menos num caso, exatamente esse ocorrido no dia da sexta manifestação, em 18 de junho, a violência esteve vinculada aos saques, com aspectos também demonstrativos de desorganização, quando moradores de rua levaram para suas barracas de cobertores TVs de plasma que não apenas não poderiam utilizar, como nem poderiam carregar ou exibir para a venda.
O fim das convocações do MPL e possíveis tendências em SP
O fim das convocações do MPL em SP correspondeu não apenas ao reconhecimento da vitória alcançada em termos específicos da demanda inicial, mas da necessidade de repensar os passos seguintes, diante da nova conjuntura criada.
Esse fato não impedirá, como não impediu, novas concentrações. Mas a desorganização das convocações pela web tende a fazê-las perder massificação. Diversas manifestações aconteceram na noite de sexta-feira, 21, e no sábado, 22 de junho. Na Avenida Paulista, sexta-feira à noite, três manifestações perambularam com propostas distintas e, sem elemento aglutinador, não conversavam entre si: a do ato médico, da cura gay e uma da Zona Leste Somos Nós. Outras em rodovias e no interior também aconteceram, mas a tendência é de que, salvo se se afirmar uma outra organização com legitimidade para convoca-las, as manifestações tendem a diminuir e refluir.
Se o mesmo passará em outras cidades e Estados, parece cedo para afirmar.
Não é possível ainda saber o impacto de novas intervenções.
O fascismo interessa ao capital?
A proposição de petição pública no AVAAZ, capitaneada por Pedro Abramovay, pedindo o impeachment de Dilma, pode ou não contribuir para formar um quadro golpista [22].
Quanto à avaliação das possibilidades de desenvolvimentos golpistas, ademais do que já se disse, acrescentamos que é possível perceber também um certo desarranjo entre as forças organizadas da direita. Se alguns editoriais do Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo sugeriram convocações golpistas, pode-se perceber, também sinais de medo da violência e de perda de se controle. O acréscimo de noticiário sobre os conflitos e vandalismo se vê também nos meios televisivos.
Por outro lado, não parece que para o Capital a derrubada do governo fosse uma alternativa desejável, uma vez que sairia de um modelo que lhe permite a garantia de todos os lucros e seu crescimento, em troca do ingresso numa situação de grande instabilidade.
Donde podemos resumir afirmando que as manifestações mostraram que a disposição oposicionista da classe média aprofunda-se para a direita, mas que essa mesma classe média se expressa desorganizadamente. Havendo, assim, um caldo de cultura para forças golpistas, esse mesmo caldo de cultura traz em si elementos que dificultam uma ação organizada nesse sentido.
Conclusão
Na década de 50 e ainda antes de 1964, a esquerda brasileira reconstituiu um sebastianismo próprio em torno da imagem do conflito entre pobres e ricos, vislumbrando o dia em que os de baixo da ordem social, localizados nas alturas geográficas do Rio de Janeiro, fariam o assalto ao poder: “Mas, olhem bem, vocês: quando derem vez ao morro, toda cidade vai cantar!”.
Ainda que as análises mais consistentes apontem a inapetência do subproletariado para o conflito social, a possibilidade de vê-lo convertido em proletariado, após 10 anos de lulismo pode, é verdade, permitir enxergá-lo na Avenida Paulista. Trata-se, porém, de saber se naquele espaço ele estaria se vendo ao lado ou contra essa classe média que por ora dali se adonou.
Para a esquerda como para a direita, a visão do subproletariado como um novo proletariado pode povoar sonhos e pesadelos.
BIBLIOGRAFIA
DATAFOLHA. Maioria dos manifestantes em SP usa transporte público, diz Datafolha. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1299800-onibus-e-metro-sao-os-transportes-mais-utilizados-por-manifestantes-em-sp.shtml, acesso em 23 de junho de 2013.
POCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.
SINGER, André Vitor. Os sentidos do Lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
SINGER, André Vitor. Esquerda ou Direita? Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/andresinger/2013/06/1299454-esquerda-ou-direita.shtml, acesso em 23 de junho de 2013.
[1] A definição de esquerda e direita é sempre assunto merecedor de exames aprofundados. Dadas as condições deste trabalho – limite de espaço, de tempo, e o fato de estar redigindo “no meio da floresta” -, optamos por seguir a lição de BOBBIO e valer-nos da adesão à busca da realização da igualdade como parâmetro definidor da diferença entre esquerda e direita, aquela com sinal positivo, esta com sinal negativo.
[2] Nota da CNBB fala: “declaramos nossa solidariedade e apoio às manifestações, desde que pacíficas, que têm levado às ruas gente de todas as idades, sobretudo os jovens. Trata-se de um fenômeno que envolve o povo brasileiro e o desperta para uma nova consciência”; Nota do PCB: Por todo o país, centenas de milhares de pessoas, em sua maioria jovens, vêm ocupando as ruas…”; Nota da Refundação Comunista: “Todavia, a juventude, os trabalhadores e todo o povo brasileiro se mostram indignados e demonstram extraordinária capacidade combativa.”; Carta Aberta dos Movimentos Sociais: “As recentes mobilizações são protagonizadas por um amplo leque da juventude que participa pela primeira vez de mobilizações”.
[3] O trabalho de SINGER está voltado primordialmente para análise do comportamento eleitoral. Desse modo, valer-nos dele para análise de manifestações de massas em situações não eleitorais pode, evidentemente, ser inadequado. Julgamos, porém, que seu aporte sobre o conhecimento e posicionamentos do subproletariado e da classe média ajudam a entender como participam (ou não) do atual processo.
[4] Até 5 sm. de renda familiar, grosso modo, SINGER (2012, P. 42)
[5] Uma dificuldade para o trabalho com dados de SINGER e POCHMANN reside no fato de aquele valer-se de renda familiar, e este de renda individual. Partindo de uma abordagem que considere a renda familiar constituída, em princípio, pela contribuição de dois trabalhadores, teríamos de
[6] SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros, p. 23, apud SINGER 2012
[7] Anote-se, para o exame da atual insurreição da classe média, uma medida mais de interesse da base da pirâmide, a extensão às empregadas domésticas dos direitos trabalhistas reconhecidos aos demais trabalhadores.
[8] Esses partidos embora adotando ou se dispondo a adotar uma teoria que os põe na defesa dos interesses do proletariado, estão fudamentalmente compostos de militantes de classe média. Têm, assim, a cabeça nas estrelas enquanto os pés afundam na lama. Essa circunstância gera seduções e descaminhos que no mor das vezes não são percebidos e são, pelo contrário, justificados como a mais pura aplicação da teoria. O afastamento da análise da situação concreta, da formação político-econômica-social em proveito do modo de produção parte disso, como as tendências ao esquerdismo.
[9] Possivelmente tenha sido o MST o único movimento social a se diferenciar , aqui, por não assumir uma condição de movimento identitário, nem reduzir suas demandas a similares de programas lulistas. Talvez tenha sido ele, por isso, o movimento social mais golpeado pelo lulismo com a rejeição de suas demandas.
[10] Procuro aqui diferenciar movimentos sociais, aqueles cujas demandas têm, de algum modo, relação com a situação social das pessoas, como movimentos de sem-terra e sem-teto, daqueles movimentos que se destinam a afirmar ou proteger a identidade das pessoas, como movimentos feministas, pelo reconhecimento e proteção da diversidade sexual, de indígenas e quilombolas.
[11] Como outros exemplos, podemos lembrar as bandeiras por redução da maioridade penal, exigência de maior atividade policial, por exemplo.
[12] Um fato que não restou mensurado é o da participação dos estudantes universitários prounistas.
[13] Indicativo disso se tem em pesquisa do Datafolha publica na Folha de S. Paulo do dia 23 de junho de 2012 em que, ao indagar-se sobre a continuidade das manifestações na sexta-feira, dia 21, 66% se pronunciaram pela continuidade dos protestos e 34% contra: “O apoio está entre os mais escolarizados, aqueles com renda mensal de cinco a dez salários mínimos e entre os mais ricos. Contra estão principalmente os mais velhos e os que têm renda até dois salários mínimos”. Folha de S. Paulo, 23 de junho de 2013, Cotidiano 1, p.1.
Esses resultados constituem também uma confirmação mais da conclusão de SINGER sobre a rejeição do conflito pelo setor de mais baixa renda da sociedade. Quanto a essas manifestações especificamente, porém, SINGER vê nelas a presença do novo proletariado, ex-integrantes do sub-proletariado favorecidos com uma ascensão social: “Se o estopim foi aceso pela classe média, o novo proletariado, forjado na década do lulismo, entrou nas avenidas, dando um colorido inédito às marchas reivindicatórias.” (SINGER (2013-A).
Mas pesquisa realizada tão somente entre participantes da maior das manifestações havidas em São Paulo, a do dia 20 de junho, após a redução da tarifa do transporte público não permite localizar esse novo proletariado. Ouvidos pelo Datafolha 551 entrevistados, a pesquisa com margem de erro de 4% indicou que a maioria dos manifestantes tinha entre 21 e 35 anos (63%), e ensino superior (78%).
[14] Perceba-se que no caso tornado pela mídia emblemático da corrupção no Brasil – o do mensalão -, não há a figura do corruptor que provê o dinheiro. Tratar-se-ia de caso de corrupção em que membros de um partido, com dinheiro do partido, corromperiam membros do próprio partido e de outros para votar matérias de interesse de seus partidos.
[15] Lembremos que a luta contra a corrupção já era bandeira da classe média ao tempo da UDN.
[16] Com a possível exceção dos saques que teriam envolvido moradores de rua, durante a manifestação da terça-feira, 18/06.
[17] Considero a hipótese, dado o fato da incorporação do setor jovem dessa classe média que também tenha ocorrido a identificação da abertura de uma janela histórica para a participação, para mudar o Brasil. Esses jovens lêem e ouvem falar das lutas de seus avós contra a ditadura, de seus pais, entre os caras-pintadas. Podem ter visto agora a oportunidade e ouvido o chamado para ocupar seu lugar nas ruas. Que essa participação fosse desorganizada e individual, pode resultar do fato de que a janela que se abre se abre na tela do computador, que o chamado que se ouve não permite a organização.
[18] Um elemento episódico: Em 1968, milhares de pessoas foram às ruas em manifestações contra a ditadura. Quando, em 1992, desatou-se o processo do impeachment de Collor, a TV Globo levava ao ar, com grande sucesso, a série “Anos Rebeldes”, que glamourizava a luta contra a ditadura, inclusive a Passeata dos Cem Mil. Agora, coincidentemente, o canal Viva, dedicado a reapresentações de programas de sucesso da Globo, exibia (segue exibindo) a mesma série Anos Rebeldes. Teria esse fato ajudado a motivar os jovens de classe média a buscar “um lugar na história”?
[19] Diferente disso pensa SINGER (2013-A), para quem uma ausência de direção unificada permitiu a diversidade de ideologias opostas nas manifestações: “O saudável ímpeto antivertical tem como contrapartida a falta de direção unificada. Ao não se delimitar com clareza o que cabia e o que não cabia nas manifestações, elas começaram a agregar um pouco de tudo, até mesmo ideologias opostas, como ficou claro na briga entre direita e esquerda que marcou a comemoração da vitória na av. Paulista anteontem.”
[20] Somente na convocatória para a 7ª manifestação, a última proposta pelo MPL, José Maria de Almeida, do PSTU, marcou posição nesse sentido: “Ainda ontem participei de uma reunião onde ouvi críticas à possibilidade de a juventude do PT participar das manifestações com suas bandeiras. Penso o contrário. Que bom que a juventude do PT quer somar-se a luta pela redução da tarifa, agora, da redução do preço da passagem e pelas demais demandas do povo que está nas ruas. Alguns podem dizer que trata-se de uma contradição, pois o governo é do PT. Eu diria que é uma boa contradição. Quanto mais gente do PT estiver nas ruas lutando, menos força terão os governo do PT para fazer o que estão fazendo contra o povo, e isso, de alguma forma vai levar a uma superação desta contradição. Que venham então as bandeiras do PT para somar-se à luta pelas reivindicações dos trabalhadores e da juventude brasileira.”
[21] Retomem-se aqui os dados fornecidos pelas pesquisas do Datafolha, apontando a participação amplamente majoritária – quase exclusiva – da classe média tradicional.
[22] Há tempos vimos sendo advertidos sobre denúncias que apontam o AVAAZ como uma organização a serviço da CIA, que já promoveu o apoio à intervenção na Líbia e atualmente na Síria, e agora no Brasil.
Fonte: http://www.viomundo.com.br/

Movimentos Sociais| 26/06/2013 | Copyleft

Limites e contradições dos movimentos que estão nas ruas

Em entrevista à Carta Maior, Paolo Gerbaudo, pesquisador do Kings College e especialista em movimentos sociais, fala sobre as semelhanças e diferenças entre os protestos de rua que sacudiram países como Egito, Turquia, Espanha e Brasil. Gerbaudo aponta a força desses movimentos, mas também indica seus limites. "Há uma contradição entre o que se defende como parte de um movimento autônomo que rechaça o Estado, mas que, ao mesmo tempo, depende do Estado para a satisfação de suas demandas. Os movimentos podem ter um efeito autodestrutivo. É o que ocorreu em certa medida no Egito", adverte. Por Marcelo Justo, de Londres.

Londres - Os protestos que sacudiram os sistemas políticos de nações tão díspares como Egito e Brasil nos últimos três anos não provem da estrutura política tradicional, mas sim da rua, de uma tradição movimentista. Na Europa da austeridade, no Brasil de Dilma Rousseff, na Primavera Árabe e na Turquia pró-islâmica de Recep Tayyip Erdogan estes movimentos – chamem-se indignados, Movimento Passe Livre ou Occupy – têm traços organizativos similares, uma mescla de espontaneidade, demandas específicas e escassas consignas programáticas. Em entrevista à Carta Maior, Paolo Gerbaudo, pesquisador do Kings College, especialista em novos movimentos sociais, analisou as expectativas e os limites destes movimentos políticos e seu significado no caso particular do Brasil.

Você vê alguma semelhança entre o que ocorreu no Brasil e na Turquia e os movimentos sociais europeus como os indignados ou o movimento occupy?

Paolo Gerbaudo: Esses movimentos são, ao mesmo tempo, similares e diferentes. A diferença diz respeito ao meio social no qual ocorrem. Os movimentos no Brasil e na Turquia expressam diferentes realidades daquelas da Espanha e dos Estados Unidos. Não se pode postular uma tendência unilinear. Mas há semelhanças que podem ser vistas na maneira pela qual os manifestantes expressam seu protesto, nos símbolos que usam. A máscara do V de Vingança, como símbolo de certo anarquismo antiautoritário, é um exemplo. Ela pode ser vista nos protestos de Dubai, do Egito e em muitos outros lugares. Na capa de um jornal turco apareceu uma foto muito interessante durante as manifestações do Brasil. Na metade da capa, aparecia um manifestante com a máscara do V e a bandeira do Brasil. Na outra metade, havia um manifestante na Turquia com a mesma máscara e a bandeira turca.

Isso mostra outro elemento importante. Ao contrário dos movimentos antiglobalização estes movimentos são nacionais como se vê pela presença das bandeiras. Nos movimentos antiglobalização, há um forte elemento contracultural e de presença de minorias. Um postulado básico era a diversidade de táticas e pertencimentos: anarquistas, feministas, ecologistas eram parte de um movimento que se baseava na ideia de resistência em um momento no qual a maioria sentia que o sistema estava oferecendo coisas suficientes para se manter em conformidade com ele. Não é a situação agora, quando há um forte rechaço do neoliberalismo. Se alguém pergunta a alguém o que pensa dos bancos ou do sistema econômico, a resposta intuitiva, sem usar uma linguagem técnica, é quase unânime de indignação sobre a disfuncionalidade do sistema.

Mas, se na Europa dos anos 60 ou 70 tivesse ocorrido uma austeridade como a que ocorre agora, a resposta teria sido muito mais forte, quase uma situação pré-revolucionária. Uma coisa que surpreende no que está acontecendo é que tenha levado tanto tempo para ocorrer uma resposta. O que é que está faltando?

Paolo Gerbaudo: Estes movimentos não começam com uma identidade centrada em uma ideologia. São lugares de convergência que compartilham a sensação de ser vítima do sistema. Não é um movimento de minorias. Estive na Espanha e uma coisa que me impressionou muito foi que nas assembleias aparecia um especialista em computação dizendo “eu também estou indignado” e, ao seu lado, havia uma aposentada que tinha sofria uma forte redução em sua aposentadoria e que dizia o mesmo, ou seja, que ela também estava indignada. Este “também” é fundamental. Esses movimentos ainda estão lutando para ter uma visão coerente, que não se resuma à oposição de modo geral a tudo que está aí. As Assembleias Populares são uma tentativa de construir esta visão. Em um certo sentido são um passo fundamental, mas é preciso não se iludir, não é o caso de idolatrá-las. As assembleias não são uma solução, nem produzirão resultados. Na Assembleia, reúne-se gente que compartilha as mesmas demandas, mas que têm identidades políticas distintas. Os indignados estão se dividindo agora entre os que têm um perfil liberal-conservador, onde há até um membro da Opus Dei, e os que são autonomistas.

Na Argentina, hoje, pode-se ver um ciclo completo das Assembleias. No início da crise, em 2001-2002, foram muito importantes, mas depois, à medida que a economia se recuperou, foram se diluindo. Hoje são politicamente irrelevantes. Esse não é um problema de todos estes movimentos que dependem totalmente de uma crise?

Paolo Gerbaudo: Totalmente. As Assembleias são uma espécie de sonho anarquista de que é possível funcionar com um sistema de assembleias. Isso se viu na Argentina, na Grécia e na Espanha. Há um extraordinário entusiasmo quando o movimento começa com a ideia de que vão substituir os governos, mas isso não ocorre, em parte porque as assembleias requerem um gasto de energia extraordinariamente grande. Atribuem a Oscar Wilde uma frase que reflete isso: “o socialismo requer demasiadas reuniões nas noites de quarta”. As pessoas se encantam com as reuniões, mas elas acabam se tornando cansativas. As Assembleias são um meio, parte das ferramentas disponíveis para uma mudança. O perigo é acreditarmos que os meios são o importante. É o que diz um dos ideólogos do movimento Occupy Wall Street, David Graeber, o “importante são os meios corretos”. Isso é como dizer: não importa a ideologia, a visão de mundo, importa a democracia.

No entanto, há sinais de ideologia em todos estes movimentos. Em uma carta do movimento passe livre a Dilma Rousseff é dito que “o transporte deve ser público de verdade, acessível a todos, ou seja, um direito universal. Questionar a tarifa é questionar a própria lógica da política tarifária que submete o transporte ao lucro dos empresários e não à necessidade da população”. Essa carta também sustenta que este critério deveria ser aplicado não só ao transporte, mas sim à saúde, à educação, etc. Isso parece uma semente de ideologia.

Paolo Gerbaudo: Exatamente. Mas tem uma limitação. Não apontam um caminho. Por que? Porque recusam que o Estado é o caminho para a resolução do problema. A quem estamos fazendo esta demanda? Ao Estado. No caso do Brasil, isso é claro. Há uma contradição entre o que se defende como parte de um movimento autônomo que rechaça o Estado, mas que, ao mesmo tempo, depende do Estado para a satisfação de suas demandas. Mas, sim, há uma semente de uma ideologia baseada nos direitos sociais, baseada em visões de gente do povo, uma ideologia que põe a ênfase no direito ao espaço cidadão. É uma série de demandas que refletem a estrutura social no movimento, a precária classe média que quer hospitais, espaços públicos, parques, educação, transporte.

No Brasil os cincos pactos propostos por Dilma a governadores e prefeitos se centram nesses pontos: saúde, educação, transporte, reforma fiscal e reforma política. Você acredita que isso pode colocar um fim à crise?

Paolo Gerbaudo: Não sei. Esses movimentos estão criticando o sistema de partidos políticos. Não sei se a cooptação seletiva será suficiente para desarmar estes movimentos. Pode ser. Estas concessões podem pacificar certos setores do movimento. Mas ao mesmo tempo é provável que criem novos partidos que tentem integrar estes elementos.

No Brasil há um paradoxo. Os protestos ocorrem com um governo popular que aumentou as políticas sociais em um país com pleno emprego. Não se dá a crise europeia da austeridade.

Paolo Gerbaudo: Há uma maneira de entender esses protestos que é pensar que se alimentam da privação. Neste caso a lógica seria quanto mais fome mais protestos. Mas pode ocorrer também a lógica inversa. Quanto mais direitos alguém consegue, mais quer. No Brasil, a situação hoje é muito melhor. Mas como diz Rodrigo Nunes, em um artigo na Al Jazeera, há que diferenciar entre crescimento quantitativo e qualitativo. Ganha-se mais, mas os serviços são piores. Não estive no Brasil, mas muita gente me falou que a infraestrutura de transporte e o sistema de saúde são terríveis. Tudo isso afeta a qualidade de vida em um momento no qual o país parecia ir muito bem. Isso ocorre também na Turquia. Pode haver muito desenvolvimento, mas a resposta da população é que não se trata simplesmente de aumentar um critério abstrato de medição como é o PIB, mas sim de viver melhor.

Nestes episódios a reação dos governos e da polícia parece cumprir um papel disparador e aglutinador. Isso é uma parte essencial na aparição de movimentos como estes que, da noite para o dia, passam a dominar toda a agenda política?

Paolo Gerbaudo: Em princípio o que os une é o Estado. No Egito, o que uniu todo o mundo foi a polícia. Todo mundo odeia a polícia. A reação da polícia representa que só há a vara: não há a cenoura. E o Estado está representado na polícia. Não é a polícia usada para manter uma ordem social justa, mas sim a polícia que serve para a injustiça social, um imã que unifica todo mundo.

Uma coisa que estes movimentos trazem à superfície é o problema da representação política. Estes movimentos sociais são uma crítica implícita ou explícita aos partidos políticos tradicionais.

Paolo Gerbaudo: Os partidos sempre existiram. Nos tempos de Roma, existia o partido popular e o dos patrícios. Hoje se critica os partidos políticos, mas a realidade é que eles têm uma base massiva. Mesmo em um país tão apolítico como o Reino Unido, os conservadores têm cerca de três milhões de membros. Isso significa que esses partidos têm certa legitimidade. Inclino-me pela tese de Gramsci, que defende a convivência de movimentos e partidos.

Os movimentos podem ter um efeito autodestrutivo. É o que ocorreu em certa medida no Egito, onde os movimentos rejeitaram toda organização e estrutura e o resultado foi que abriram a porta para a vitória da Irmandade Muçulmana que hoje governa o país com resultados desastrosos. Quanto ao modelo de partido leninista, creio que o desafio é ver como nos movermos para novas formas de representatividade política que consigam ir além do centralismo democrático.

Não se trata simplesmente de uma discussão intelectual. Vê-se isso claramente no movimento na Itália, onde se coloca a criação de novas formas de participação democrática por meio da internet. Tudo isso é bastante problemático porque o movimento tem um terrível paradoxo entre ser participativo e ter um líder paternalista como Beppe Grillo que decide quem está no movimento. É algo que o Partido do Futuro, nascido do movimento dos indignados, está tentando responder na Espanha. Como vamos usar a internet e os meios de comunicação para reconstruir formas de participação que não são possíveis hoje com os partidos?

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer



21/Jun
2013
Leonardo Sakamoto: E, em São Paulo, o Facebook e o Twitter foram às ruas. Literalmente
Postado por Marina Selerges
Os atos contra o aumento nas tarifas dos ônibus trouxeram centenas de milhares às ruas. Que defendiam a ideia e discordavam da violência com a qual manifestantes e jornalistas haviam sido espancados e presos pela Polícia Militar. Uma massa heterogênea, descontente, sob um guarda-chuva de uma pauta bastante concreta e objetiva. Que  foi atendida.
A manifestação de segunda, gigantesca, acabou por mudar o perfil dos que estavam protestando em favor da tarifa. O chamado feito pela redes sociais trouxe as próprias redes sociais para a rua. Quem não percebeu que boa parte dos cartazes eram comentários de Facebook e Twitter?
Portanto, nem todos os que foram às ruas são exatamente progressistas. Aliás, o Brasil é bem conservador – da “elite branca” paulistana à chamada “nova classe média” que ascendeu socialmente tendo como referências símbolos de consumo (e a ausência deles como depressão). É uma população com 93% a favor da redução da maioridade penal. Que acha que a mulher não é dona de seu corpo. Que é contra o casamento gay. Que tem nojo dos imigrantes pobres da América do Sul. Que apoia o genocídio de jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades. Ou seja, não é porque centenas de milhares foram às ruas por uma pauta justa que a realidade mudou e vivemos agora em uma comunidade de Ursinhos Carinhosos.
E dentre os conservadores, temos os que radicalizam. Seja por ignorância, seja por opção.
Desde que o quinto ato contra as passagens foi anunciado, grupos conservadores se organizaram na internet para pegar carona no ato. Lá chegando, foram colocando as mangas de fora com suas pautas paralelas. Na convocação do sétimo ato, isso ficou bem evidente. Estavam aos milhares na Paulista e arredores, mas ainda minoria em comparação ao total de participantes. Mas uma ruidosa, chata e violenta minoria. Com um discurso superficial, que cola fácil, traz adeptos. Parte deles usava o verde-amarelo, lembrando os divertidos e emocionantes dias com os amigos em que se pode ver os jogos da Copa do Mundo.
Nesta quinta (20), esse grupo sentiu-se à vontade para agir em público exatamente da mesma forma que já fazia nas áreas de comentários de blogs e nas redes sociais, mas sob o anonimato. Com isso, parte desse pessoal começou um ataque verbal e físico a militantes de partidos e sindicalistas presentes no ato.
Engana-se, porém, quem diz que essa era uma massa fascista uniforme. Havia, sim, um pessoal dodói da ultradireita, que enxerga comunismo em ovo e estava babando de raiva e louco para derrubar um governo. Que tem saudades de 1964 e fotos de velhos generais de cueca na parede do quarto. Essa ultradireita se utiliza da violência física e da intimidação como instrumentos de pressão e que, por menos numerosos que sejam, causam estrago. Estão entre os mais pobres (neonazistas, supremacia branca e outras bobagens), mas também os mais ricos – com acesso a recursos midiáticos e dinheiro. A saída deles do armário e o seu ataque a manifestantes ligados a partidos foi bastante consciente
Mas um grupo, principalmente de jovens, precariamente informado, desaguou subitamente nas manifestações de rua, sem nenhuma formação política, mas com muita raiva e indignação, abraçando a bandeira das manifestações. A revolta destes contra quem portava uma bandeira não foi necessariamente contra partidos, mas a instituições tradicionais que representam autoridade como um todo. Os repórteres da TV Globo, por exemplo, não estão conseguindo nem usar o prisma com a marca da emissora na cobertura – e não é só por conta de militantes da esquerda. Alckmin e Haddad, que demoraram demais para tomar a decisão de revogar e frear o caldo que entornava, ajudaram a agravar a situação de descontentamento com a classe política. “Que se vão todos”, pensam esses jovens. “Não precisamos de partidos para resolver nossos problemas”, dizem outros, que não conhecem a história recente do Brasil. “Políticos são um câncer”, que colocam todo mundo no mesmo balaio de gatos.
Elas não entendem que a livre associação em partidos e a livre expressão são direitos humanos e que negá-los é equivalente a um policial militar dar um golpe de cassetete em um manifestante pacífico. Dito isso, creio que foi um erro de análise de militantes de partidos estarem presentes no ato empunhando bandeiras. Direito eles tinham, mas não era a hora.
Conversei com muitos deles que pediam “abaixo os partidos políticos”, pauta que comecei a ouvir na segunda (17), quando aquele perfil diferente de manifestante engrossou os atos (lembrem-se, eu sou o #chatodepasseata, adoro cutucar). Perguntei o porquê dessa agressividade. Depois de cinco minutos, eles mesmos percebiam que não sabiam me responder a razão. Compravam um discurso fácil guiado pela indignação.
Dentre esses indignados que foram preparados, ao longo do tempo, pela família, pela escola, pela igreja e pela mídia para tratarem o mundo de forma conservadora, sem muita reflexão, tem gente simplesmente com muita raiva de tudo e botando isso para fora. O PSDB tem culpa nisso. O PT tem culpa nisso. Pois, a questão não é só garantir emprego e objetos de consumo. Sinto que eles querem sentir que poderão ser protagonistas de seu país e de suas vidas. E vêm as classe política e as instituições que aí estão como os problemas disso.
Aí reside um problema. Porque não se joga a criança fora porque a água do banho está suja. E não se expulsa políticos ou partidos do processo democrático por vias autoritárias – por mais que o sangue suba à cabeça.
Muitos entre os mais jovens desconhecem o valor das lutas que trouxeram a sociedade até aqui – e não fizemos questão de mostrar isso a eles. Muito menos como os mais velhos foram protagonistas dessas lutas. Eles não precisam ser mitificados (não gosto de heróis), mas também não podem ser desprezados. Pois, se daqui em diante, novos caminhos podem ser trilhados é porque alguém abriu uma estrada que nos trouxe até aqui.
É claro que os grupos conservadores mais radicais estão se aproveitando desse momento e botando lenha nesse descontentamento, apontando como culpados a classe política que está no poder e suas instituições. Flertam com ações autoritárias e, é claro, adorariam desestabilizar as instituições.
Não temos uma prática de debate político público como em outros lugares. Se, de um lado, vamos ter que aprender a conviver com passeatas conservadoras sem achar que vai rolar uma nova Macha da Família com Deus pela Liberdade nos moldes daquela que nos levou à Grande Noite, de outro, os reacionários extremistas vão ter que aprender a ser portar com decência – coisa que, nas redes sociais, já provaram que são incapazes de fazer.
O desafio é que, diante de comportamentos questionáveis e pouco democráticos desses jovens conservadores, externamos o nosso desprezo e nossa raiva. Podemos ignorá-los, enquanto crescem em número. Ou podemos conquistá-los para o diálogo e não o confronto.
Até porque, precisam compreender, por exemplo, que “o povo não acordou” agora. Quem acordou foi uma parte. Outra parte nunca dormiu, afinal não tinha cama para tanto. No campo, marchas reúnem milhares de pobres entre os mais pobres, que pedem terra plantar e seus territórios ancestrais de volta – grupos que são vítimas de massacres e chacinas desde sempre. Ao mesmo tempo, feministas, negros, gays, lésbicas, sem-teto sempre denunciaram a violação de seus direitos pelos mesmos fascistas que, agora, tentam puxar a multidão para o seu lado.
Enfim, o grosso do povo mesmo vai acordar no momento em que a maioria pobre deste país perceber que é explorada sistematicamente. Quando isso acontecer, vai ser lindo.
Uma vez, posto em marcha, um movimento horizontal, sem lideranças claras, tem suas delícias – como o fato de ser um rio difícil de controlar. E sua dores – como o fato de ser um rio difícil de controlar. Temos que aprender a não se assustar com isso.
Muitos desses jovens estão descontentes, mas não sabem o que querem. Sabem o que não querem. Neste momento, por mais agressivos que sejam, boa parte deles está em êxtase, alucinada com a rua e com o poder que acreditam ter nas mãos. Mas ao mesmo tempo com medo. Pois cobrados de uma resposta sobre sua insatisfação, no fundo, no fundo, conseguem perceber apenas um grande vazio.
O fato é que há um déficit de democracia participativa que vai ter que ser resolvido. Só votar e esperar quatro anos não adianta mais. Uma reforma política, que inclua ferramentas de participação popular, pode ser a saída. Lembrando que aumentar a democracia participativa não é governar por plebiscito – num país como o nosso, isso significaria que os direitos das minorias seriam esmagados feito biscoito. Como deu para ver em alguns momentos, nesta quinta, na avenida Paulista.
O momento é de respirar, ter calma, dialogar. Mas não abandonar o bom debate.




27/06/2013

A esquerda não pode piscar

O Brasil ingressa num ciclo de turbulência do qual a democracia participativa poderá emergir como parteira de uma sociedade mais equilibrada e justa.

Mas a esquerda não pode piscar.

A disputa fratricida, hoje, é o coveiro das esperanças nacionais.

Nos anos 50, um pedaço das forças progressistas só foi perceber o seu lado no jogo quando o povo já incendiava os carros do jornal 'O Globo', em resposta ao tiro com o qual Getúlio encerrou a sua resistência e convocou a das massas.

Ontem, como agora, o enclausuramento ideológico, o acanhamento organizativo e a dispersão programática pavimentam o caminho da ameaça regressiva.

É a hora da verdade de toda uma geração.

Cabe-lhe sustentar um novo desenho progressista para o desenvolvimento do país.

Um notável volume de investimentos é requerido para adequar a logística social e a infraestrutura às dimensões de uma nação que incorporou milhões de pobres ao mercado de consumo nos últimos anos.

Agora lhes deve a cidadania.

O novo giro da engrenagem terá que ocorrer num momento paradoxal.

A recuperação norte-americana encoraja as apostas no fim da crise, mas complica a mecânica do crescimento na periferia do mundo, encarecendo o custo do capital.

Asfixiada antes pela valorização do Real, a indústria brasileira agora é o canal de transmissão da alta do dólar nos índices de preços, por conta das importações.

Dotado de uma base fabril atrofiada pelo irrealismo cambial, o país importa quase 25% das manufaturas que consome.

A sangria destrói empregos e desperdiça receitas que faltam ao gasto público, ademais de fragilizar as contas externas.

O déficit comercial da indústria este ano alcançará o equivalente a 20% das reservas cambiais.

É só um vagalhão da tempestade perfeita que cobra respostas em várias frentes: prover a infraestrutura, combater a inflação, resgatar a industrialização, dar progressividade ao sistema tributário, ajustar o câmbio, modular o consumo.

Tudo junto e com a mesma prioridade.

A urgência das ruas sacudiu essa equação que há menos de um mês tornava a economia cada vez mais permeável a uma transição preconizada pelo conservadorismo.

Com o título sugestivo de, ‘Um Plano para Dilma’, coube ao editorial da Folha de 02/06, como já comentou Carta Maior, enunciá-la em detalhes.

O ‘plano’ consistia em impor ao país o projeto derrotado em 2002, 2006 e 2010. A saber: arrocho fiscal e monetário; entrega do pré-sal às petroleiras internacionais; redução dos gastos sociais e dos ganhos reais de salários; renúncia ao Mercosul e adesão aos tratados de livre comércio.

Essa plataforma envelheceu miseravelmente nas últimas horas.

Mas não foi arquivada.

O interesse conservador que antes pretendia usar o governo para escalpelar as ruas, subtraindo-lhe conquistas e recursos na ordenação de um novo ciclo econômico, agora quer usar as ruas para desidratar o governo.

Mas oscila.

A bipolaridade reflete a ansiedade típica de quem sabe que joga a carta do tudo ou nada.

Não por acaso, o jornalismo a serviço do dinheiro já constata receoso: ‘o que a rua pede colide com o que o mercado pretende’.

Curto e grosso: o espaço para um ajuste estritamente convencional se esgotou.

Quem dará coerência ao desenvolvimento brasileiro a partir de agora? -- perguntava Carta Maior há menos de um mês.

Antes turva, a resposta desta vez emerge mais limpa.

A nova coerência macroeconômica terá que ser buscada na correlação de forças redesenhada pelas grandes multidões que invadiram as ruas nas últimas semanas.

Emparedado pela lógica conservadora o governo Dilma passou a ter escolhas (leia a advertência de Paulo Kliass, na coluna nesta pág).

E o PT a chance de se reinventar, explicitando uma agenda clara para o passo seguinte da história.

Sua e a do país.

O bônus não autoriza o conjunto das forças progressistas a adotar a agenda da fragmentação suicida.

O focalismo cego às interações estruturais é confortável.

O descompromisso com partidos e organização dá leveza e audiência na mídia conservadora.

Mas levam ao impasse autodestrutivo e à inconsequência histórica (leia a entrevista do pesquisador Paolo Gerbaldo, do Kings College, de Londres, a Marcelo Justo; nesta pág).

Não se faz política sem poder; não se conquista poder sem disputar o Estado.

A responsabilidade de interferir num processo histórico pressupõe a adoção de balizas e estruturas que impeçam o retrocesso e assegurem coerência às mudanças.

Sem alianças aglutinadoras, nada acontecerá.

O jogo é pesado.

Limites estritos à ação convergente do Estado (mínimo) foram erguidos em todo o mundo nos últimos 30 anos.

A liberdade dos capitais manteve nações, projetos, partidos e governos sob chantagem impiedosa.

Domínios insulares foram instalados no interior do aparato público.

O conjunto elevou a tensão política que explode periodicamente quando os mercados blindados enfrentam a democracia insatisfeita nas urnas.

Teoricamente, essa é a hora em que o bancário e o banqueiro tem o mesmo peso no escrutínio do futuro.

Na prática, porém, é a locomotiva dos grandes levantes populares que delimita a fronteira da democracia social em cada época.

A alavanca brasileira, neste caso, foram os levantes operários do ABC paulista dos anos 70/80 e a luta cívica contra a ditadura militar.

Daí nasceria o PT.

E o subsequente ciclo de governos do partido, caracterizado pela negociação permanente do divisor entre os dois domínios, o do dinheiro e o dos interesses gerais da sociedade.

Negociou-se ‘sem romper contratos’ nos últimos 12 anos.

Com acertos, equívocos e hesitações fartamente listados.

Ainda assim, o saldo configura ‘um custo Brasil’ intolerável aos interesses acantonados no polo oposto do braço de ferro.

Avançar à bordo da composição de forças que delimitou a ação progressista até aqui tornou-se cada dia mais penoso.

Faltava a locomotiva da história apitar outra vez para esticar os limites do possível na discussão do novo ciclo de crescimento que o país requer.

Foi o que fizeram as ruas.

A presidenta Dilma viu o bonde passar e não hesitou: ao redesenhar os perímetros da democracia com a reforma plebiscitária, tornou implícito --queira ou não-- que a soberania popular é também o único impulso capaz de harmonizar as balizas do novo ciclo de desenvolvimento.

Vive-se um meio fio.

De um lado, há a chance de uma ruptura efetiva do desenvolvimento com a camisa de força do neoliberalismo.

De outro, a espiral descendente dos impasses pode jogar o país no abismo de uma recaída ortodoxa devastadora.

O tempo urge.

Se a esquerda piscar, a vaca vai para o brejo.

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