sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Candidaturas coletivas: política do “nós” em superação ao “eu” enfrentam obstáculos dos sistemas político e de Justiça

 outubro 30, 2020

  • Eleições 2020 marcam recorde de candidaturas coletivas no Brasil,
  •  que têm seus registros questionados por órgãos eleitorais

Por Paulo Victor Melo*

Fonte original: https://reformapolitica.org.br/2020/10/30/candidaturas-coletivas-politica-do-nos-em-superacao-ao-eu-mas-enfrentam-obstaculos-dos-sistemas-politico-e-de-justica/?fbclid=IwAR2MkywuloCJZDR3B26L5a3TwuWjLZH0-0W3HionD1BSOxhb5j7LLwbvupY

Fortaleza, capital do Ceará, quinto maior contingente populacional do país. Ouricuri, sertão de Pernambuco, pouco mais de 64 mil habitantes. Geografias, culturas e economias distintas também marcam as diferenças entre esses dois locais. Mas nas eleições de 2020 um mesmo fato as coloca em convergência: nas duas cidades, órgãos eleitorais apresentaram restrições a candidaturas coletivas às Câmaras de Vereadores/as.

Em Fortaleza, o Ministério Público Estadual da 117ª Zona Eleitoral entrou com pedido de impugnação da candidatura coletiva Nossa Cara, do Partido Socialismo e Liberdade (Psol). Na ação, a promotora Ana Maria Gonçalves Basto de Alencer argumentou, dentre outras coisas, que um banner de campanha induzia os eleitores ao erro de votar em três candidatas, o que, como consta em seu parecer, é uma “situação não permitida em nosso sistema eleitoral, no qual as candidaturas são individualizadas”.

Formada por “três mulheres, negras, periféricas, ativistas”, como se autoafirmam no site oficial, a candidatura inicialmente inscrita com o nome “Nossa Cara” precisou, após interposição de recurso, ser registrada para o nome na urna como “Adriana do Nossa Cara”, uma espécie de empréstimo do nome de Adriana Gerônimo, assistente social que integra o coletivo junto com Louise Santana e Lila M. Salu. Conforme consta no site do Tribunal Superior Eleitoral, porém, há ainda recurso a ser julgado em instância superior.

Já em Ouricuri a situção revela-se ainda mais embaraçosa. Integrada por “mulheres sertanejas, trabalhadoras do campo e militantes do Fórum de Mulheres do Araripe”, como se caracterizam, a Coletivas Elas – uma candidatura coletiva também do Psol – foi impedida pelo Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco de fazer qualquer menção ou referência ao seu caráter coletivo. Com recurso impetrado ao TSE, o registro de nome na urna está, por ora, como “Adevania”, uma das integrantes da candidatura.

Essas decisões conflitam com o que pensam, por exemplo, a promotora de justiça Ana Laura Bandeira Lunardelli, assessora eleitoral do Ministério Público de São Paulo, e Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, procurador regional da República e ex-procurador regional eleitoral de São Paulo. Em artigo recente, publicado no site Consultor Jurídico, eles pontuam que “não havendo restrição legal, não convém retirar do processo eleitoral esse experimento social que busca facilitar a participação de setores da sociedade normalmente excluídos. A ideia de ampliação da representatividade da legislatura deve ser prestigiada na interpretação e aplicação da lei eleitoral, pois garante a pluralidade de visões e melhora a qualidade do debate democrático ao dar voz a sujeitos pouco visíveis dentro do atual modelo”.

Embora o pedido do MP do Ceará e a definição do TRE de Pernambuco baseiem-se no fato de não haver previsão legal desse formato de candidatura – questão que a PEC 379/17, em tramitação no Congresso Nacional, visa solucionar -, as tentativas de impedimento extrapolam o universo jurídico e dizem respeito a aspectos sobre participação, representatividade e democracia. Afinal, eleição após eleição as candidaturas coletivas crescem em termos quantitativos e espalham-se por todas as partes do país.

De acordo com levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e o coletivo científico Common.Data, 328 candidaturas coletivas às Câmaras de Vereadores/as e cinco às Prefeituras foram registradas nas eleições desse ano. Chama a atenção também o fato de que apenas 32% das candidaturas coletivas identificadas nas eleições do próximo 15 de novembro são em capitais, o que sinaliza um movimento de interiorização dessa modalidade de candidatura.

Superar a sub-representação

Para Carmela Zigoni, doutora em Antropologia Social e Assessora do Inesc, as candidaturas coletivas “representam uma tentativa de fazer a política de forma menos individual, de pensar construções coletivas e projetos que tenham base em colaboração, e não em uma pessoa individualmente, e sinalizam para a possibilidade de dividir o poder de decisão e os processos políticos de interesse público”.

A avaliação de Zigoni é compartilhada por Débora Rezende de Almeida, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB), para quem a ampliação das candidaturas coletivas expressa uma inovação no sistema político brasileiro, “especialmente no que tange ao baixo acesso aos espaços de poder de grupos sistematicamente excluídos devido à desigualdade de recursos e capitais políticos e culturais”.

Um dos grupos excluídos que Almeida faz referência é o das mulheres. Enquanto a participação feminina no Congresso Nacional é de 15%, as mulheres representam mais de 51% das pessoas com o nome na urna em candidaturas coletivas nas eleições desse ano, de acordo com os dados coletados pelo Inesc e Common.Data.

No entendimento da pesquisadora do Ipol/UnB, que qualifica a sub-representação das mulheres nos espaços de poder como “assombrosa” e avalia como insuficiente a política de cotas partidárias, muitas das candidaturas coletivas surgem para “superar as barreiras de entrada não seguindo estritamente as suas regras, e estão diretamente relacionadas às lutas e bandeiras dos movimentos sociais para aumentar a representação”.

Zigoni, do Inesc, afirma que “essas candidaturas são muito mais representativas dos grupos populacionais e acabam sendo mais inclusivas neste sentido. Enquanto no geral os homens são maioria, e as candidaturas de homens brancos mais viáveis (pelo recurso maior, principalmente), 52% das candidaturas coletivas são encabeçadas por mulheres e 50% por pessoas negras, sinalizando que é possível fazer política com representatividade, e que estando em coletivo podem tentar romper com as dificuldades impostas pelas desigualdades do próprios sistema eleitoral”.

“Empurrar a porta” e enfrentar o autoritarismo

Socióloga e ex-Ouvidora Geral da Defensoria Pública da Bahia, Vilma Reis compreende as candidaturas coletivas como um “esforço de transformar a política em algo possível para a nossa existência, porque, como me disse Andreia de Jesus [advogada e atualmente Deputada Estadual em Minas Gerais] nosso sonho é transformar a política em uma política feita por nós e para nós, fazer dela uma política do nosso povo”.

Mas para que essa transformação aconteça, diz Reis, são necessários sucessivos atos de “empurrar a porta”.  “Temos que continuar empurrando a porta do Parlamento para que a agenda política das mulheres negras, dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, das pescadoras artesanais e outros segmentos sejam discutidas no Legislativo”, defende.

Analisando o processo eleitoral no contexto mais amplo da democracia, Renata Rolim, professora do Departamento de Direito da Universidade Federal da Paraíba, reconhece ser um avanço a maior participação das mulheres em candidaturas eletivas, mas ressalta que “a participação política das mulheres não deveria ser medida pela ocupação de postos institucionais, mas pela organização combativa das próprias mulheres”. “Como estamos na defesa de nossos direitos democráticos que estão sob o ataque da extrema direita?”, questiona Rolim, ao frisar que “a luta política consiste, entre outras questões, em demarcar um terreno de opiniões e projetos”.

Nesse sentido, a professora da UFPB acredita que as tentativas de inviabilização das candidaturas coletivas são apenas uma face da mesma concepção judicial que se alinhou aos processos antidemocráticos em curso desde 2016. “O Sistema de Justiça – Poder Judiciário, Ministério Público, Polícias etc. – participaram ativamente do golpe de 2016 e, posteriormente, de sua consolidação, com a prisão do ex-Presidente Lula. Se uma pessoa com a popularidade de Lula sofreu um processo judicial absolutamente ilegal, ninguém mais está seguro nesse país, em especial os políticos da esquerda”.

Como saída para este cenário de aprofundamento autoritário, Rolim aposta numa “mobilização de amplas massas”. “E temos que fazer isso o quanto antes”, alerta.

Uma breve história das candidaturas e mandatos coletivos no Brasil

Não se pode falar necessariamente em consenso sobre o início das candidaturas e mandatos coletivos no Brasil. Alguns estudos colocam como marco inaugural o mandato de João Yuji, eleito vereador pelo antigo PTN (atual Podemos) em Alto Paraíso de Goiás, nas eleições de 2016, integrante de uma coalizão com outras quatro pessoas.

Já segundo pesquisa da Rede Política de Ação pela Sustentabilidade (Raps) essas experiências existem no Brasil desde 1995 e foram sendo ampliadas a cada processo eleitoral. Coordenada por Leonardo Secchi, professor de Políticas Públicas da Universidade do Estado de Santa Catarina, a pesquisa mapeou 110 iniciativas de candidaturas coletivas ou compartilhadas entre as eleições de 1994 e 2018 para cargos em Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, Câmara dos Deputados e Senado.

Ainda de acordo com o levantamento, essas candidaturas aconteceram em 50 municípios de 17 estados do país, com representação em 22 partidos polítcos e atingiram, juntas, mais de 1 milhão e 200 mil votos.

A Pesquisa da Raps localiza a situação brasileira dentro de um contexto internacional de profusão de movimentos que propõem a coletivização das tomadas de decisão legislativa, citando experiências de outros países, como Suécia, Austrália, Itália, Islândia, Argentina e Espanha. “Em diferentes culturas e locais do globo, há um movimento semelhante que visa incluir os cidadãos no processo decisório de forma compartilhada, buscando inovar a partir das oportunidades surgidas da crise da democracia e da revolução tecnológica, com potencial para revitalizar a relação entre representantes e representados em distintos continentes”, aponta trecho do estudo.

O caso da Coletiva Elas como simbólico dos óbices enfrentados pelas candidaturas coletivas

Como dito no início dessa reportagem, a Coletiva Elas (formada por Adevania Coelho, Rozy Silva e Jane Lopes) solicitou, no processo de registro de candidatura, que em seu nome de urna constasse apenas “Coletiva Elas” ou, subsidiariamente, “Adevania do Coletiva Elas”, inserindo o nome da titular da candidatura, mas garantindo menção ao projeto coletivo. O Juiz Eleitoral de Ouricuri-PE rejeitou os pedidos, deferindo sua candidatura apenas com o nome “Adevania”.

Frente a essa decisão, o escritório Lavor, Novaes e Leandro, que representa as candidaturas do PSOL em Pernambuco (incluindo 20 candidaturas coletivas), interpôs recurso ao Tribunal Regional Eleitoral e apresentou sustentação oral defendendo os pedidos. Intimado, o Ministério Público Eleitoral se manifestou favorável ao pedido constante no recurso (inserção do termo ‘”Coletiva Elas” no nome de registro). O Desembargador Relator do pedido, Des. Ruy Trezena Patu, votou pelo provimento parcial dos pedidos – ou seja, pela manutenção do nome subsidiário “Adevania da Coletiva Elas” e foi seguido pelo Des. Edilson Pereira Nobre.

Contudo, os outros cinco desembargadores do TRE/PE apresentaram dissidência e votaram contra os pedidos e favoráveis à manutenção da sentença do 1º grau, logo pela manutenção do nome “Adevania”.

Vale ressaltar que um dos votos contrários foi proferido pelo Presidente do TRE/PE, Desembargador Frederico Neves, que embora tenha afirmado ter “simpatia” com as candidaturas coletivas já havia se posicionado publicamente defendendo a inexistência de previsão legal desses projetos, conforme declaração concedida ao jornal Diário de Pernambuco, em 30 de setembro deste ano.

A partir do caso da Coletiva Elas, na última segunda-feira, 26, o TRE/PE aprovou uma Orientação Normativa, estabelecendo que, para constar na urna eletrônica, o nome “não poderá conter qualquer expressão que, ainda que aliada ao prenome, sobrenome, cognome, nome abreviado, apelido ou nome pelo qual é mais conhecido o candidato, sugira ao eleitor que o mandato será exercido coletivamente”.

Ao interpor recurso junto ao TSE, o advogado da Coletiva Elas, Roberto Leandro, salienta que os pedidos apresentados pela Coletiva Elas não descumprem qualquer instrumento da legislação eleitoral. “A resolução 23.609/2019 do TSE, que trata do Registro de Candidatura, em seu Artigo 25, apresenta as exigências legais dos nomes para urna: ter até 30 caracteres; não estabelecer dúvida sobre identidade; não atentar contra o pudor, ser “ridículo ou irreverente”. Coletiva Elas e Adevania da Coletiva Elas nitidamente não afrontam nenhum dos dispositivos citados”, argumenta.

Para o advogado, a impugnação de candidaturas coletivas é, em verdade, “uma resposta institucional à estratégia de grupos sociais historicamente excluídos, que não detêm a devida representação nos espaços institucionais”, já que nas eleições de 2018 o TRE/PE deferiu registros de candidaturas com nomes para urna como “Biu da Macaxeira”, “Alberi dos Caminhoneiros”, “GG do Gás”, “Inaldo do Raio-X”, “Tony da Igreja”, “Jane de Bocão”, “Jacó do Povo”, dentre outros.

Uma das componentes da Coletiva Elas, Jane Lopes afirma que essa decisão judicial “só reforça a cultura machista de que o lugar da mulher não é na política”, sendo o propósito da candidatura “justamente ocupar esse espaço e mostrar que a política é lugar de todas as pessoas que votam e podem ser votadas”.

Ao sublinhar que esse é um direito constitucional, Lopes lamenta ao dizer que “quando vamos para a prática temos vários empecilhos e esse julgamento é mais uma prova que esses empecilhos estão cada vez mais evidentes fortalecidos”.

O que se passa com a candidatura coletiva de Ouricuri chama ainda mais atenção pelo fato da Assembleia Legislativa de Pernambuco ter, desde janeiro de 2019, uma das suas cadeiras ocupada pelas Juntas, mandato coletivo que reúne cinco mulheres de diferentes segmentos sociais e recebeu mais de 39 mil votos nas eleições de 2018.

Em Manifesto publicado esse mês e entregue ao presidente do TRE/PE, as Juntas se posicionaram em defesa da legalidade das candidaturas coletivas e reivindicaram o amparo da Justiça Eleitoral e dos partidos a essas experiências compartilhadas. “Importante ressaltar que além de um novo jeito de organizar um mandato, as candidaturas coletivas reestruturam toda lógica político-partidária brasileira. Elas carregam em sua gênese princípios como coletividade na construção de decisões, horizontalidade e despersonalização da política”, citam em uma passagem do documento.

Paulo Victor Melo, jornalista. Reportagem produzida para a campanha #QueroMeVerNoPoder, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O que Boulos e equipe estão fazendo na campanha em SP é guerrilha cultural e comunicacional.


Fala na Lata - Faria Lima

https://www.youtube.com/watch?v=xFC89NUg2iI

 O bolsonarismo também fez/faz isso, porém com retaguarda do exército regular dos grandes meios de comunicação, mesmo que a intenção desses  inicialmente tenha sido “jogar água no moinho” do Alckimin.

Um exemplo disso   pode ser conferido em uma publicação da Fundação Frienderich Ebert, a qual mostra o que foi feito do noticiário sobre Lula e Dilma quando estes governaram o país.

O Bolsonarismo também se nutriu/nutre  com farta verbas de empresários e governo federal, assim como  tecnologia de “guerrilha” cultural e comunicacional com viés de extrema direita desenvolvida nos EUA, em especial por meio da construção e disseminação das fakenews.

E para fazer bem a guerrilha cultural e comunicacional com viés de esquerda, Boulos e equipe reúne algumas vantagens e qualidades.

1 – São jovens e muito deles  nativos no mundo da comunicação  digital. 2 – Tem a exata dimensão do papel da cultura e da comunicação e são bastantes qualificados neste campo. Sem contar que essa  qualificação antes da campanha, no caso de muitos,  foi e é realizada na base do  aprender fazendo e no meio da correria.

3 – Boulos  e equipe trabalham  com conceitos construídos como projeto de vida e  não apenas como palavras, discurso, propaganda. Podemos citar, entre outros,  verdade, lealdade, transparência, diálogo, criatividade, inovação.

4 – Boulos e equipe, ou uma grande parte, tem a exata noção do papel dos movimentos sociais, organizações e coletivos sociais na construção da campanha e no programa de governo. Assim o PSOL em SP, refaz o caminho abandonado pela REDE SUSTENTABILIDADE como  partido movimento. Um caminho relativamente bem sucedido realizado pelo   PODEMOS  na Espanha e ainda mais bem sucedido no caso do MAS da  Bolivia, conforme mostra a resistência ao golpe de 2019.

E então, com base nesse conceito, como será o governo BOULOS/ERUNDINA em caso de vitória? Que tensões surgirão desse cenário?  Aí teremos que esperar.

 O PT também nasceu com esse papel, porém também abandonou esse caminho de  partido movimento ou de partido ônibus. E mais,  em que medida uma gestão pública radicalmente democrática, descentralizada e inclusiva,  precisará impactar o PSOL internamente? Para não suceder o que acontece com o PT, o qual realizou gestões públicas bastante avançadas  no campo da democracia, participação popular e inclusão, porém com menos impacto dentro do partido, o que leva a muitas direções politicas envelhecidas, enrijecidas, estáticas...

E voltando a questão da comunicação, O PT na campanha presidencial de 1989 também fez uma campanha com essas características que apontamos com relação a Boulos/PSOL 2020, mas com os limites do tempo histórico.

Por isso merece ser objeto de pesquisa,  estudo e publicação, o que talvez já tenha sido feito, porém  nunca é demais,  assim como a atual campanha do Boulos, porque, mesmo sem o término da atual campanha eleitoral, já faz parte da História como campanha exemplar e memorável.

Zezito de Oliveira

Para participar da campanha, mesmo quem mora fora de SP.

https://virasp.com.br/home

 


 

sábado, 24 de outubro de 2020

Periferias nas Eleições 2020 - Roda de Conversa Virtual no Facebook - 4 e 5 de Novembro, às 20 horas

fonte da foto: https://enoisconteudo.com.br/2020/10/20/enois-realiza-serie-de-encontros-com-agencia-mural-sobre-eleicoes/

A roda de conversa com candidatos a vereador será realizado em 04 (quarta-feira)  e 05 de Novembro (quinta-feira), às 20 horas. 

A transmissão será através da página da Ação Cultural, https://www.facebook.com/acaocultur

O conceito PERIFERIA, não está sendo utilizado aqui,   apenas restrito a ideia de território, mas também relacionada à  eixos ou conceitos marginalizados nos debates e ações politicas, os quais foram priorizados nas Lives ou "Ao Vivo" da Ação Cultural, e que também serviram/servem como base conceitual  para  iniciativas culturais realizadas ou apoiadas pela Associação Cultural (Ação Cultural),  desde o ano de fundação, 2004, a partir de uma ação local e de mobilização social e cultural realizada no Conjunto Jardim em Nossa Senhora do Socorro,  municipio localizada na região metropolitana de Aracaju e posteriormente ampliada para outros territórios. 

Memória das lives da Ação Cultural na quarentena

Os convidados do dia 04 (quarta-feira) confirmados , são os seguintes:    Marco Vieira  PC do B (Aracaju)  – Vinicius Oliveira {Bancada Comunitária} - PSOL (Aracaju)  – Cláudia Pereira PT (Aracaju)   - Iza Negratcha PT  (Socorro) - Profº Silvaney PT (Santo Amaro das Brotas). 

Os convidados para o dia 05 de novembro (quinta-feira), confirmados,  são os seguintes: Ângela Melo PT (Aracaju) -  Luciano Acciole PT  (Japaratuba) –  Luiz Torres PT (Barra dos Coqueiros) - Professora Renata  Rede Sustentabilidade - (São Cristóvão)

Os convidados são professores/agentes culturais e artistas/agentes culturais. 

A proposta é conversarmos inicialmente com base nos eixos  que nortearam as escolhas dos temas e dos convidados em  nossas lives anteriores, que são: 

Ação Cultural – Educação Popular – Juventudes – Ação Local e Mobilização Social – Memória como Resistência  - Universidade e Escola Pública na relação com os conceitos anteriores.

Sequência do debate

1º BLOCO - Dessa maneira,  o primeiro bloco de até 5 minutos , será para o candidato discorrer de um a três eixos  apresentados na relação acima.  Nesse caso, o candidato deverá apresentar a sua compreensão sobre os eixos ou conceitos e quais e de que maneira pretende priorizar no mandato.

Mas sugerimos que, para abordagem,  seja escolhido um ou dois no máximo.

APRESENTAÇÃO - Mas antes, os candidatos deverão responder em até 3 minutos,  o que na sua biografia credencia a sua candidatura para representar  trabalhadores (as),  periféricos (as),  negros (as)  e/ou mestiços (as). 

Daí,  teremos  comentários de internautas. Com perguntas para cada um dos candidatos. Das perguntas enviadas, caso tenha mais perguntas para um dos candidatos, sortearemos uma. Os que  não tiverem perguntas enviadas pelo público, responderão a perguntas formuladas pelo mediador do debate.

2º BLOCO - No segundo bloco, cada candidato escolhe um, dois ou três  eixos/conceitos/temas da sua escolha e que pretende priorizar no seu mandato, caso eleito. Sugerimos um ou dois para discorrer. Com 5 minutos 

3º BLOCO - O último bloco será respostas a uma pergunta formulada pelo mediador do debate e mais uma pergunta formulada pelos internautas. Havendo ,mais de uma, faremos sorteio. O candidato que não tiver sido perguntado, responderá a uma pergunta realizada pelo mediador.

Leia também:

No Brasil, tornaram-se território de medo e desigualdades. Transformação exigirá resgatar ideias de Cuidado e Bem-viver. Primeiro 

passo: enfrentar oligopólios dos serviços públicos e adotar nova economia, limpa e comunitária.

As fotografias abaixo estão publicadas por ordem de chegada.



Jornalista, Produtor Audiovisual, Professor de Fotografia, Estudante de Direito e propagador da cultura de paz. Tem 46 anos, é pai de 5 e avô de 6. Em 2019 lançou seu primeiro livro, o Salinas.

 Mãe, historiadora, ativista Social, nascida e criada na periferia de Aracaju. Atualmente resido no Bairro Santa Maria.  Iniciei a minha militância durante a minha juventude na União Sergipana dos Estudantes Secundaristas em defesa dos direitos estudantis e melhorias na política e educação do Estado. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Como a Bolívia profunda derrotou a fraude

Um antropólogo sonda a ética de reticência andina e as reviravoltas políticas num país submetido à guerra híbrida. A tentativa de manipular o resultado a partir do exterior. A avalanche de votos de protesto. O erro de Evo e a autocrítica do MAS

OUTRASPALAVRAS - DESCOLONIZAÇÕES

por Ricardo Cavalcanti-Schiel

Publicado 20/10/2020 às 19:20 - Atualizado 20/10/2020 às 19:38

https://outraspalavras.net/descolonizacoes/como-a-bolivia-profunda-derrotou-a-fraude/?fbclid=IwAR2HmVG2s-qQVMfMIso4tfsuxxY2WWVenOxjBywKNnFSStlCdFZ8vhEXB50


Por Ricardo Cavalcanti-Schiel | Imagem: Satori Gigie

Para Memélia Moreira, jornalista veterana, pela sua insistência por esse artigo

Quem já viveu e, sobretudo, realizou pesquisas sobre as dinâmicas sociais na Bolívia durante alguns anos, sabe que os cenários políticos contingentes naquele país são, por regra, instáveis e, em boa medida, inusitados. Os sucessivos e notavelmente estáveis governos de Evo Morales estão mais próximos da exceção que da regra, como também o esteve a sequência de governos neoliberais entre 1985 e 2003. Por um lado, as castas senhoriais do país sempre tiveram que se ver à voltas com disputas faccionais intestinas, além de irrupções contestatárias e eventualmente insurgentes de parte da maioria da população, o que contribuiu para um longo rosário de golpes de Estado ao longo da história republicana do país. Por outro lado, os últimos vinte anos foram marcados pela emergência decisiva das forças populares, de extração indígena andina, nos espaços institucionais de poder de Estado, o que implica, muitas vezes, em lógicas distintas, e não facilmente perceptíveis, de legitimação da representação.

No caso da ação política direta dessas forças populares, é notável como os circuitos de informação e de decisão são sutis e mutáveis. No final do século passado e início deste século, o canal de informação fiável por excelência eram as rádios locais, que transmitiam em quéchua e em aymara, como também as rádios católicas, como a Erbol e a Fides. A partir das mobilizações populares que levaram à queda do neoliberal Gonzalo Sánchez de Lozada em 2003, os celulares passam a servir de canal privilegiado. Em termos ainda mais capilares, a conversação entre membros e representantes sindicais nas comunidades rurais e entre compadres no campo em geral conformam um espaço “invisível”, onde decisões são tomadas e, ao dia seguinte, alguma estrada é bloqueada logo pela manhã, deixando viajantes no meio do caminho, salvo aqueles que, por alguma razão, têm acesso a esses circuitos de informação. É por aí que se desenrola a mobilização popular.

Não é fácil ter informações precisas, na Bolívia, sobre o rumo exato dessas mobilizações, mesmo porque, no nível local, particularmente na porção andina, a tomada de decisões é regida por uma espécie de ética da reticência. Ninguém se adianta às decisões coletivas e tampouco se presta a exibir conhecimento analítico ou prospectivo. A sabedoria (em quéchua, yachay) não se conforma como um cabedal de experiências ou técnicas, que leve ao reconhecimento de uma autoridade diretiva ou instrutiva, mas como uma capacidade de fazer e de realizar esforço, que se expressa como potência de interação e de intercâmbio. As decisões coletivas são sempre comunitárias e consagram-se como consensos. Posições eventualmente divergentes se acomodam a esse consenso ou, do contrário, tenderão progressivamente a se consolidar como uma cisão da comunidade local, como foi o caso da comunidade quéchua onde realizei pesquisas ao longo de muitos anos e onde fiz inumeráveis compadres (leia-se também, inclusivamente, comadres). Nesse mundo, ter compadres é, na realidade, um dos poucos canais eficientes de acesso a informações. O compadrio implica uma relação de lealdade de parte a parte, e sua lógica já chegou a ser eficientemente apropriada, ao final do século passado, para o meio urbano, por um hábil comunicador social, Carlos Palenque, para consolidar seu próprio movimento político, o CONDEPA (“Conciencia de Patria”), o primeiro a lançar mão, em sua discursividade, e de forma sistemática, da simbologia andina e o primeiro a eleger uma “chola”, Remedios Loza, para a Assembleia Nacional Boliviana.

Ainda assim, mesmo entre compadres, a prospecção das movimentações políticas da base popular na Bolívia é um exercício imponderável e arriscado. Sabiamente, se inquirido sobre o rumo das coisas, um compadre diria a outro: “Não sei, compadre. O que será que a comunidade vai decidir?” E esse tempo da decisão é crucial. Depois dele, tudo se precipita.

No mundo popular boliviano (em especial o andino), o voto até pode ser individual, mas a ação política sempre tende a ser coletivamente orientada ou, ao menos, induzida. E isso vale para o campo, para as minas, para os mercados urbanos, para os sindicatos de motoristas, toda uma extensa malha de inclusão das pessoas sociais, que, nesses espaços, compartilham festas e santos padroeiros. Nesse circuito fechado de intercâmbio muito próximo de lealdades, fake news, por exemplo, podem ter uma enorme dificuldade para prosperar. Fake news parece ser, mais, um fenômeno característico de um mundo de individualidades conectadas digitalmente e desconectadas socialmente.

Na última vez que estive na Bolívia, por um mês, imediatamente antes da conflagração da pandemia de coronavírus, havia, por um lado, no meio urbano, uma sensação generalizada de desorientação política, e, por outro, uma bronca surda contra Evo Morales. E ambas as coisas pareciam se misturar. No meio rural, a bronca dos meus compadres com Evo Morales era menor, mas era o mesmo o desconhecimento sobre o que realmente aconteceu por ocasião do golpe de Estado. A mídia local bombardeara exaustivamente ― e tratou-se, de fato, de um bombardeio de saturação ― a versão preparada pelo plano da CIA (com o auxílio da OEA e do Grupo de Lima), de que as eleições tinham sido fraudadas. E essa versão havia se assentado como consenso irrefletido, a ponto de produzir o fenômeno inusitado de que, enquanto todo o resto do mundo sabia que as eleições de 2019 não sofreram qualquer fraude, só na Bolívia a fraude era largamente admitida como fato.

Por alguns meses, a operação de guerra híbrida a que a Bolívia havia sido submetida conseguiu produzir uma asfixia dos canais de informação, que se combinou com os movimentos rápidos e previamente planejados do golpe, sobrepondo-se ao tempo das coletividades, e que incluiu a ação intimidatória quase generalizada de grupos paramilitares de extrema direita (uma breve notícia sobre eles encontra-se aqui), culminando com vários massacres de cidadãos, dos quais se destacam os de Senkata (El Alto) e Sacaba (Cochabamba), que somaram 36 mortos e 50 feridos. E no meio dessa operação de desinformação, choque e pavor estava a bronca com Evo. Uma coisa não parece funcionar bem sem a outra.

Pode-se dizer que a manobra judicial de Evo Morales para concorrer na marra, pela quarta vez, à Presidência foi a culminação de uma atitude que esteve na base do desgaste político do MAS (Movimiento al Socialismo). Ela é a mesma que diz respeito ao PT e a aos outros “progressismos” latino-americanos. Trata-se de uma espécie de chantagismo absolutista: “ou eu ou o dilúvio”. No Brasil, sociedade “cordial” (o que também pode significar “biliar”), apostou-se cegamente no dilúvio. Na Bolívia, enquanto Evo caía, o ambiente majoritário era semelhante ao do impeachment de Dilma Roussef: indiferença ― ou, antes, um implícito “bem feito para ele!”.

Aquele fechar-se em copas, não admitindo qualquer revisão crítica de rumos, acaba funcionando como um blefe de tudo ou nada. Depois de postas as cartas na mesa, só resta ao blefador choramingos de autovitimização. No caso da Bolívia, essa arrogância característica, além de produzir ― tal como no Brasil ― um cegamento para as manobras do inimigo (nem de longe trata-se simplesmente de “adversários” políticos, pois estamos falando de guerra híbrida), também patrocinou uma espécie de sectarismo clientelar, que é muito próprio de certos meios sindicais bolivianos: aos amigos, tudo; aos que não nos dizem amém e não se incorporam à nossa máquina, o desprezo, a anulação e o pior dos mundos. Foi assim no caso do Tipnis. Foi assim em muitos outros casos. Quando veio o golpe, para além do acomodamento de uma rede clientelar (tal como existira no ocaso da hegemonia política do velho MNR), o MAS só contava com o voluntarismo agonístico de algumas tropas de choque de ação inócua e desesperada.

Não foi tão difícil assim derrubar Evo Morales. Bastou a oportunidade e uma boa coordenação. O que, sim, mostrou-se muito mais difícil, após o primeiro momento de desorientação induzida e de ações rápidas, foi conquistar legitimidade para a agenda política da direita, tão mais obtusa quanto predatória. Porque aqui se trata de outra e bem conhecida obtusidade, que na Bolívia vem sendo sistematicamente impugnada nos últimos vinte anos: a obtusidade senhorial.

Com Evo fora de jogo, choramingando na Argentina, batendo na tecla monocórdia do “racismo” ― que cai bem para uma certa agenda liberal internacional, mas diz muito pouco sobre a complexidade boliviana e parece não mais que sufragar a velha teoria política das elites, pois não faz mais do que comprar a perspectiva política das castas senhoriais do país―, com a pandemia e a direita boliviana mostrando a que veio, com a reinstauração do tempo das coletividades, com a admissão pelo MAS de que era preciso corrigir rumos, com um candidato convincente que representa, antes de mais nada, onde os governos do MAS deram certo ―na soberania econômica do país―, algo de novo parece ter mudado no cenário da política, e não meramente no cenário eleitoral. Ainda não tenho muitos dados para julgar com precisão, mas a suspeita lógica (pode-se até chamá-la de “hipótese de trabalho”) é que, mais uma vez, as forças populares na Bolívia, em cenário adverso, fizeram política, e não apenas se agarraram a instrumentos formais de representação. Porque “eleitoralmente”, os rumos apontavam para outra direção.

Não é difícil suspeitar que as eleições bolivianas de 2020, essas sim, estavam prontas para serem fraudadas. Partamos das impressões, que não parecem ser fortuitas. No dia das eleições, o portal web iraniano HispanTV (em espanhol, e que por vários anos albergou o programa Forte Apache, dirigido por Pablo Iglesias), um meio lido por um público mais crítico, divulgou o resultado da enquete entre seus leitores, pela qual 49,4% deles acreditavam que as eleições seriam fraudadas, enquanto 46,6% acreditavam na vitória do candidato do MAS. Dois analistas ouvidos pelo mesmo meio, Cristina Reyes e Jorge Richter também apontavam para o elevado risco de fraude. No sábado, véspera das eleições, o governo golpista despachou 23.000 militares para ocupar as ruas de La Paz e El Alto. A anulação, poucas horas antes das eleições, do sistema de contagem rápida, pelo presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, nomeado pela presidente golpista Jeanine Áñez, lançou a apuração dos votos no escuro.

Antes de tudo isso, no entanto, o sistema de votação nos países do exterior que mais concentram imigrantes bolivianos dos extratos populares (Argentina, Brasil e Chile) foi deliberadamente desarticulado, para produzir confusão e abstenção. A intenção parecia simples: como os votos no exterior são apurados primeiro, resultados distorcidos serviriam como a cabeça de ponte para a fraude. Com efeito, no final da manhã de segunda-feira, dia seguinte à votação, a apuração internacional indicava o candidato Carlos Mesa, da frente Comunidad Ciudadana (CC), com 42,22% dos votos, e Luis Arce, do MAS, com 38,45%.

Fonte: Jornada, La Paz.

Na terça-feira, com a vitória eleitoral do MAS dada como fato consumado, a apuração da votação internacional já indica Mesa com 31,73% e Arce com 50, 35%:

Fonte: Jornada, La Paz.

O que parece ter frustrado a fraude foram as apurações de boca de urna dando uma vitória acachapante para o candidato do MAS. Ou seja, nem tanto a vitória, mas a vitória acachapante. Antes disso, o empresário Arturo Murillo Prijic, pertencente ao clã croata dos ustacha de Santa Cruz de la Sierra (os nazistas balcânicos emigrados para a Bolívia após a derrota nazi na Segunda Guerra Mundial), um dos cabeças do golpe e homem de conexão com o Departamento de Estado de Mike Pompeo e a OEA, além de ministro “de Gobierno” (equivalente à Casa Civil) de Jeanine Áñez, responsável por acusar judicialmente Evo Morales de terrorismo, tentou pressionar os meios de comunicação, as empresas de sondagem e até mesmo o Tribunal Supremo Eleitoral, no sentido de impedir a divulgação das pesquisas. A queda-de-braço durou quatro horas, até que, logo depois da meia-noite, os resultados começaram a ser divulgados. A vitória política do MAS, em lugar da sua possível derrota eleitoral, começava a se consumar. Tentar revertê-la por fraude pode ser um lance extremamente arriscado para os golpistas, e que virtualmente incendiaria o país.

O trabalho político que está por trás dessa vitória acachapante do MAS, e que dispôs o tabuleiro de modo a tornar inócua uma previsível operação de fraude eleitoral, é que é a crônica ainda a ser contada. Suas lições podem nos dizer se a mobilização popular na Bolívia encontrou um antídoto eficiente para a guerra híbrida, em cenário geopolítico extremamente adverso, ou se tudo se tratou apenas de mais uma dessas inusitadas particularidades bolivianas, onde as lógicas locais acabaram impondo mais uma fragorosa derrota à hegemonia global do Império.

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No México, resistência nas grandezas ancestrais

https://www.youtube.com/watch?v=0qkYUDqnaKI&feature=emb_title

País de aprendizagens. Raízes pré-colombianas, que emergem mostrando outros modos de vida possíveis; muralismo moderno, com seu poder de alfabetização política; tradições indígenas e camponesas, que materializam potência de luta.

OutrasPalavras  Descolonizações - Fonte: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/pegadas-no-mexico-resistencia-nas-grandezas-ancestrais/

por Roberta Traspadini

Publicado 20/10/2020

Por Roberta Traspadini | Imagem: Diego Rivera, “A Família” (1934)

Neste vídeo, transitaremos pelas aprendizagens histórico-populares de um México ainda bem distante da cotidianidade brasileira. As atuais fronteiras nacionais se chocam com outro sentido de percurso histórico. Os povos latinos, de hoje, mantenedores de culturas, ciências, linguagens e sobrevivências, nos acercam a outros sentidos possíveis sobre o viver-produzir-existir.

É isso o que a região Mesoamericana anterior à invasão colonial de 1492, nos brinda: uma expressiva compreensão histórica de que nosso presente está assentado sobre uma diversidade de experiências na produção material da vida. E que, a ideia de modernidade atual, ancorada na lógica da dependência de nossas economias às regras internacionais do capital financeiro, não é única que existe. Sob nossos pés, re-existem, histórias soterradas que gritam por vir à luz. Sobre nossos pés, insiste apresentar-se um cotidiano excludente, estereotipador, que subjuga, nega, maltrata seres e natureza para conformar uma lógica recente na história de produção de vida, mediada pelo dinheiro que vira mais dinheiro.

Transitar, na memória e na história pré-colombiano viva no cotidiano do México entre 2000 e 2004, é reverenciar três grandezas:

A grandeza de povos construtores de imponentes cidades, culturas, políticas, como Tenotchitlán, Teothioacán, Xochimilco. Por trás das estruturas piramidais, do processo de agricultura das chinampas, apresenta-se a substância de algo difícil de nos acercarmos, tamanha a destruição instituída na forma de soterramento, apagamento, fundação de um novo à custa da morte do encontrado (morte da alteridade). O historiador Valdir Rampinelli nos ajuda, neste item, a entender a história da América Latina apagada a partir da transitividade presente no que denominamos Viajar pela memória e assentar-nos nas histórias rebeldes de resistente existente sobrevivência.

A grandeza do Moderno Muralismo Mexicano. Processo aberto após a Revolução Mexicana que instituía a arte como movimento estético próprio que, compreendendo o caráter internacional presente no século XX, não o dissocia da particularidade histórica do que-fazer político na América Latina. David Alfaro Siqueiros, Diego Rivera, Clemente Orozco e Aurora Reyes, somados às suas respectivas escolas de trabalho coletivo, dão a dimensão da arte como caráter alfabetizador político, como ato educativo. A estética latino-americana, sua poética e sua leitura de mundo expõe a era das guerras, das torturas, dos desaparecimentos, e também as histórias das resistências que ocorrem ao longo destes tormentos socialmente construídos. O mexicano Alberto Híjar, uma das mais importantes referências no tema da estética marxista latino-americana em geral, e do Moderno Muralismo Mexicano, em particular, que foi presenteado pelo convívio com esta geração e a aproximação camarada com Siqueiros, nos ajuda a narrar um exemplo concreto da complexidade presente no retrato mural do Sindicato dos Eletricistas Mexicanos (1939): Retrato de la burguesia.

A grandeza da dignidade popular indígena-camponesa. Em toda América Latina é nas origens camponesas-indígenas, de um passado ainda vivo em nosso cotidiano e presentes nas nossas cidades, que se apresentam nossos temas-problemas, nossos dilemas e nossas potências de ação frente ao vivido. Em países como o México, em que a população indígena é expressiva, e guarda junto consigo a herança da resistência, conviver com esses homens, essas mulheres e suas crianças, é aprender uma multiplicidade de coisas, inclusive sobre a força da palavra presente no silêncio. Nos corpos trazem indumentárias milenares. Nos cantos, ecoam línguas apagadas e desmerecidas pela história oficial. Nas celebrações, nos círculos, cantam e ecoam o que entendem ser a mediação entre a vida-morte, seres vivos-natureza e suas deidades. Em meio à construção material de uma sociedade que amplia o fosso da pobreza via concentração da riqueza monopolista, homens e mulheres indígenas-camponeses materializam a revanche, apenas por existirem e resistirem às mortes anunciadas no tempo. São seus olhos os mais expressivos marcos da dignidade rebelde. Uma vez que eles se fixam nos nossos, o transitivo torna-se intransitivo e a caminhada até o momento é substituída por outro sentido de caminhar (junto, sem olhar para o chão, como nos educaram na submissão). A partir dos olhos, que tocam profundamente nossa existência, pulsa “abaixo e a esquerda” um sentimento genuíno de que existem outros modos de perceber-produzir-entender a vida em comunidade. O discurso da Comandanta Ester no parlamento mexicano, em 2011, sobre o direito à vida, em um país que insiste formalmente em não reconhecer a diversidade de seus povos, é um ponto forte da referência sobre paz-justiça-democracia, em síntese, de dignidade rebelde.

Juntas, estas três grandezas definem uma cartografia das resistências indígenas-camponesas da América Latina presentes nas nossas cidades. E dão a dimensão da beleza, da tristeza e da digna raiva frente ao que ainda temos que produzir para nos libertar das amarras que, histórica e violentamente, nos prendem.

Tremores de terra na América Central expõem histórias pré-colombianas soterradas. Escavações científicas explicitam riquezas não mercantis soterradas de tempos históricos anteriores à era cristã. Novas tecnologias de ponta, via raios ultravioletas, explicitam centros-cidades pré-colombianas na região. Entre os tremores, as escavações e a tecnologia de ponta, brotam histórias de resistências que precisam ser conhecidas e entendidas em profundidade. Quiçá, a partir delas, ganhemos o fôlego necessário para pulsarmos lado a lado com esses povos indígenas e camponeses latinos.

Em tempo: falar da dignidade indígena-camponesa latina em pleno momento histórico de revanche eleitoral boliviana é confirmar todo o dito acima: as raízes estruturais da dignidade rebelde quando brotam, na revanche contra a exclusão e imprimem as cores – wiphala – que compõem a diversidade popular latina. Entre os golpes contra os povos e a resistência colorida da dignidade dos mesmos, resistimos, existimos, e em certos contextos, vencemos! Também na Colômbia as cores da wiphala se apresentam fortes, vivas, fazendo-se presentes em Bogotá, sede política do capital. Pelos caminhos da América, indígenas e camponeses rompem o silêncio e fazem a terra tremer no tom dos passos coletivos de suas resistências pela dignidade rebelde.

Roberta Traspadini - Educadora Popular e Professora Pesquisadora da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Latino-americanista, é uma estudiosa dos seguintes temas: pensamento social latino-americano, movimentos sociais e luta popular na América Latina, de uma propagadora da Teoria Marxista da Dependência


terça-feira, 20 de outubro de 2020

POR QUE O MAS/EVO MORALES TIVERAM VITÓRIA ACACHAPANTE CONTRA O GOLPE? O QUE O CAMPO PROGRESSISTA NO BRASIL PODE APRENDER?



Um antropólogo sonda a ética de reticência andina e as reviravoltas políticas num país submetido à guerra híbrida. A tentativa de manipular o resultado a partir do exterior. A avalanche de votos de protesto. O erro de Evo e a autocrítica do MAS

 Luis Arce será o próximo presidente da Bolívia com o apoio dos indígenas e do “voto oculto” da classe média

O candidato do MAS, o partido de Evo Morales, se impõe frente ao principal concorrente Carlos Mesa, segundo resultados preliminares

FERNANDO MOLINA

La Paz - 19 OCT 2020 - 19:41 BRT

A contagem oficial dos votos nas eleições bolivianas de domingo avança lentamente, mas a vitória do candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), Luis Arce, é um fato, segundo o rápido escrutínio elaborado por empresas privadas endossadas tanto pela presidenta interina, Jeanine Áñez, como pelo principal concorrente dele, o ex-presidente Carlos Mesa. Os “votos ocultos” da classe média e o alinhamento quase unânime dos indígenas devolveram o poder ao partido do ex-presidente Evo Morales.

Para ler na fonte original da noticia... https://brasil.elpais.com/internacional/2020-10-19/luis-arce-sera-o-proximo-presidente-da-bolivia-com-o-apoio-dos-indigenas-e-do-voto-oculto-da-classe-media.html#?sma=newsletter_brasil_diaria20201020

Áñez reconheceu na mesma noite das eleições, por meio de um tuíte, que Arce era o novo presidente da Bolívia. Horas depois, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, publicou seu próprio tuíte de felicitação. Este gesto foi carregado de um simbolismo especial pelo papel que essa organização internacional desempenhou na queda do MAS e do presidente Morales em novembro do ano passado. Finalmente, foi a vez de Mesa dar os parabéns ao novo presidente. “O resultado é muito contundente, a diferença entre o primeiro e nós é ampla. Cabe a nós, como corresponde a quem acredita na democracia, reconhecer que houve um vencedor nesta eleição. É um resultado que não acreditamos que vá modificar-se”, disse o ex-presidente boliviano.

A diferença conquistada por Arce não admitia esperar mais tempo. De acordo com a rápida apuração, ele obteve 53% dos votos, enquanto Mesa ficou com 30%; o terceiro, o direitista Luis Fernando Camacho, venceu na região a que pertence, Santa Cruz, mas obteve apenas 14% dos votos nacionais. Segundo cálculos de especialistas em estudos de opinião, a diferença entre os resultados oficiais e os dados que serão divulgados será de apenas 1% a 2%.

Arce será acompanhado em seu Governo por um dos fundadores do MAS e a segunda figura mais importante desse partido, depois de Evo Morales, David Choquehuanca. Ele será o segundo indígena da história a ocupar o cargo de vice-presidente do Executivo e, simultaneamente, o de presidente da Assembleia Legislativa Plurinacional. O primeiro foi, nos anos 90, Víctor Hugo Cárdenas. Quando Arce e Choquehuanca assumirem o poder, entre 31 de outubro e 14 de novembro (dependendo da necessidade ou não de repetir a votação em algumas seções eleitorais), Cárdenas deixará de ser ministro da Educação de Áñez.

As pesquisas pré-eleitorais previam que Arce venceria, mas com uma vantagem muito menor sobre Mesa, o que abria a possibilidade de um segundo turno. Para o especialista Julio Córdova, as pesquisas não se enganaram, pois detectaram um alto percentual de indecisos, em torno de 24%. “Essa identificação estava correta. O erro foi nosso, por não saber ler esses dados. Acreditávamos que, como os indecisos estão em todos os segmentos sociais, eles estariam distribuídos por todos os candidatos. Mas não foi assim, a grande maioria optou pelo MAS”, reconheceu. Para o historiador Pablo Stefanoni, foi um “voto oculto”, ou seja, o sufrágio de pessoas que esconderam sua adesão ao MAS em razão do ambiente de desqualificação e perseguição a esse partido que se instalou nas cidades após a derrubada de Morales, e isso foi intensamente encorajado pelo Governo de Áñez.

A força do triunfo de Arce relativiza o relato dos rivais do MAS sobre as causas da queda de Morales no ano passado. Desde então, os partidários do ex-presidente defendem a tese de que em novembro houve um “golpe de Estado” das forças conservadoras, da Polícia e do Exército. Simultaneamente, as elites tradicionais que então derrotaram o partido de esquerda, apoiando-se nos relatórios eleitorais da OEA, argumentaram que tinha ocorrido “fraude” e que esta provocou uma revolta democrática da população.

O MAS sempre negou a acusação de fraude, argumentando que sua grande força eleitoral tornava desnecessário o recurso a uma ferramenta ilegal. Porém, para Córdova não há dúvida de que Arce é mais forte do que Morales em seu último e pior momento: “Entre 2014 e 2016 o MAS perdeu 13% de seu apoio eleitoral. Muitos eleitores do MAS não gostaram da busca de Evo por uma nova reeleição. Muitos dos eleitores que não o apoiaram em 2019 agora optaram pelo MAS, especialmente por rejeitar a repressão de Añez. Foi um voto de resistência”, sentencia.

Outro analista, Andrés Gómez, acredita que o MAS acertou ao propor uma dupla de candidatos “étnico-classista”. Essa estratégia deu certo porque “quatro em cada dez bolivianos se identificam com algum povo indígena, segundo o censo de 2012. Ao mesmo tempo, cinco em cada dez se consideram mestiços. O binômio Arce (mestiço) e Choquehuanca (indígena) foi uma mensagem à identidade da maioria boliviana”. Por outro lado, segundo Gómez, a aposta dos adversários do MAS não deu certo porque, no caso do Mesa, não fez alianças com o mundo indígena e popular, limitou-se a contar com as classes médias urbanas que odiavam o MAS. Camacho, por sua vez, optou pelo regionalismo, que não é um mecanismo tão eficaz porque “pelo menos sete em cada dez bolivianos se mudaram de seu lugar de origem e se integraram culturalmente ao país. Por isso, o MAS ficou em segundo lugar em Santa Cruz”.

O sentimento de surpresa com o país “invisível” que acabava de emergir se espalhou pelas redes sociais, dominadas pela classe média urbana, após as eleições. Um meme dizia: “A Bolívia é maior do que meu minúsculo círculo social.” Alguém comentou: “Quero ir embora deste país. Não me representa”. Muito polêmico foi o post no Facebook de uma cantora local de ópera: “Meus pedreiros vão ficar felizes”.



Evo: Como reconstruir o Socialismo Comunitário

Líder boliviano reflete sobre país fraturado por golpe. Redistribuir renda foi crucial, mas liberação política requererá eliminar as brutais desigualdades entre famílias. Para isso, será preciso uma indústria forte e nacional, com respeito à Natureza

por Fabián Kovacic

Publicado 13/02/2020 às 21:08 - Atualizado 13/02/2020 às 21:42

Evo Morales em entrevista a Fabián Kovacic, na Brecha | Tradução: Rôney Rodrigues e Simone Paz

Camisa branca de manga curta, calça preta e sapatos combinando, Evo Morales circula pelos escritórios de seu bunker portenho na rua Chile, bairro de San Telmo, grudado no seu celular. É uma quarta-feira de manhã e o fechamento de candidaturas na Bolívia é premente: o último dia é 3 de fevereiro. Desde cedo esteve reunido com mais de 20 candidatos em forma de assembleia, todos em círculo. Atrás da porta fechada dá para ouvir diferentes vozes. Morales observa, escuta, opina. Sai do escritório e, diante da expectativa dos jornalistas, cumprimenta sorridente, caminha, entra em outro escritório, fala com um interlocutor na Bolívia. A equipe de Brecha agendara a entrevista com o ex-presidente às 8h30. A espera termina às 12h45, quando Evo Morales finalmente ingressa no salão e se dispõe a sentar-se para responder as perguntas. “Peço desculpas pela demora”, diz.

Leia na fonte original da noticia - https://outraspalavras.net/descolonizacoes/evo-como-reconstruir-o-socialismo-comunitario/

Um dia antes, Luis Arce, o candidato presidencial do Movimento ao Socialismo (Mas) e ex-ministro de Economia de Morales, aterrissou em solo boliviano para iniciar a campanha eleitoral. O governo de Jeanine Áñez o esperava com a ameaça de prendê-lo sob acusações de corrupção, o lawfare da moda: por não controlar o uso do Fundo Indígena em diferentes projetos aprovados para sua execução. A própria promotora do processo se encarregou de desmentir a existência de uma ordem de detenção contra Arce e só colheu o depoimento dele para que seus advogados tenham acesso ao volumoso arquivo de vinte tomos que formam o processo.

Isso foi motivo de debate nos escritórios da rua Chile, onde já analisam os números das primeiras pesquisas: 35% de intenção de voto para Arce e pouco mais de 15% para Carlos Mesa. A mandatária Áñez aparece um pouco abaixo. O dirigente cívico Fernando Camacho e Jorge “Tuto” Quiroga nem sequer figuram com números significativos, ao menos segundo sondagem em mãos da equipe de imprensa de Morales. “Eles vão tentar nos perseguir”, diz o ex-presidente, e os assembleistas assentem.

Quando Brecha pergunta sobre sua possível candidatura prefere se esquivar do tema. “Estou aqui para apoiar os companheiros”, diz de passagem. Ao entardecer sairá o comunicado do Mas que informará se Evo aceitou inscrever-se como candidato à Assembleia Legislativa Plurinacional. No entanto, o documento esclarece que a inscrição é só para habilitar, legalmente e nos prazos estabelecidos pelo cronograma eleitoral, uma eventual candidatura caso as assembleias decidam elegê-lo como representante. “O debate das candidaturas finais ainda está em desenvolvimento”, esclarece o comunicado à imprensa.

Depois de 14 anos no poder e após um golpe de Estado já consumado, que lições foram tiradas e que autocrítica faz hoje sobre sua gestão?

Primeiro, sempre com o povo, tudo para o povo. Essa é a luta histórica das pessoas marginalizadas. A luta vem desde a colônia, passando pela república. E para estar com o povo nos pareceu importante ter em conta três coisas: no político, a refundação da Bolívia; no econômico, a nacionalização; e, no social, a redistribuição da riqueza. O mais difícil para minha gestão foi a refundação, abandonar o Estado colonial e passar a ter um Estado plurinacional na Bolívia, onde todos tivessem os mesmos direitos. Acabou-se o Estado impostor, as autoridades aparentes, o Estado falido, as ameaças de fazer desaparecer a Bolívia. A partir do Estado plurinacional [foram impulsionadas] as melhores oportunidades para os mais excluídos, que estão dentro do movimento indígena, e para as mulheres. E tudo incluído na Constituição. No econômico, para estar com o povo, foram importantes as nacionalizações dos recursos naturais e das empresas estratégicas.

Nessa questão, existe uma profunda diferença com a direita boliviana e com o sistema capitalista, que consideram saúde e moradia como serviços. Para nosso movimento são direitos. Os serviços básicos são um negócio privado para o capitalismo. Enquanto que para nós, no socialismo comunitário, são direitos humanos. Portanto, nossa defesa passa não só pelos direitos individuais e pessoais, mas também pelos direitos coletivos e da comunidade. Quanto ao comércio, para estar com o povo, é importante um programa de solidariedade, complementaridade e competitividade.

E a autocrítica de sua gestão?

[Hesita antes de responder] A questão da autocrítica e das debilidades… Quando seu irmão é presidente, alguns setores têm muita e exagerada ambição. Alguns reivindicam inclusive coisas indesejáveis para outros setores sociais. Então, não estão pensando na Bolívia, mas somente para seu setor ou para uma legião de cidadãos. Mas quando se dirige com transparência o governo, com dados econômicos, esses setores entendem, ainda que custem aceitar. E quero dizer que na luta de classes, ideológica, programática, é necessário discutir e trabalhar. Os próprios movimentos sociais nos diziam nas reuniões que eles não vinham para discutir e avaliar políticas, mas para distribuir projetos e obras. Não queriam debate ideológico. E isso tem que ser trabalhado durante o processo de transformação. A realidade é que são quase três milhões de bolivianos e bolivianas que subiram da classe baixa ou pobre para a classe média e que esqueceram de onde vieram, preferiram não ter compromissos com a sociedade, já trazendo novas expectativas. Não consideram que ainda há muitas famílias na situação em que eles estavam antes.

Isso é um desafio para todos os governos progressistas da região: como reagir diante das novas expectativas geradas após as melhorias que foram conquistadas por meio das gestões governamentais.

Foi um grande desafio para nosso governo, e falta muito para saber como reagir e seguir avançando. No caso da administração, nós trabalhamos os dados e chegamos à conclusão de que exagerados subsídios estatais são uma sangria para a economia nacional. Não garantem o futuro econômico do país. Deve-se combinar o investimento público feito para ampliar o sistema produtivo com aspectos trabalhistas e sociais. Daí vem a redistribuição da riqueza que permite acabar com a pobreza.

Esses setores que, segundo o senhor, reclamam demais do governante de plantão são os mesmos que em novembro pediram sua renúncia? Refiro-me à Central Obrera Boliviana (Cob) e a alguns sindicatos de mineração.

Não diria isso… Acredito que o pedido de renúncia que eles fizeram contra mim foi por medo. Eu mesmo não podia entender como a Cob podia pedir minha renúncia para dar oportunidade para a direita. Esse foi um erro político da Cob, mas não pelas reivindicações setoriais de que falei antes. Porque eles mesmos me propuseram que eu fosse candidato a presidente, defenderam minha candidatura e se mobilizaram por ela. Houve um momento em que o medo tomou conta deles e se lançaram a pedir minha renúncia. Isso eles levarão como um erro histórico.

A candidatura de Andrónico Rodríguez e de Orlando Gutiérrez, dirigente da Cob, marca as diferenças entre o Mas, a Cob e os mineiros?

Não. Estamos unidos. Nunca antes houve quatro candidatos. Estamos todos convencidos de que é importante a unidade, porque quem tiver a responsabilidade de conduzir o novo processo contará com o apoio de todos.

O modelo extrativista

Uma das questões comuns aos governos progressistas ou de esquerda nos últimos anos é a geração de riqueza através de uma matriz similar à do neoliberalismo: o extrativismo. Como enfrentar esse problema?

O sistema capitalista, além de destruir o planeta, quer que os chamados países subdesenvolvidos cuidemos dele para seu benefício. Dessa ideia eu não compartilho. É evidente que temos que cuidar do meio ambiente, estou convencido disso. O ser humano não vai poder viver sem a Mãe Terra. E ela vai existir melhor sem o ser humano. Nós sugerimos à ONU os direitos da Mãe Terra como prioridade. Há apenas 70 anos o mundo de seu conta de que os seres humanos têm direitos e, assim, apareceram os direitos humanos, os direitos políticos, sociais e econômicos. E só em 2007 é que foram declarados os direitos dos povos indígenas. Mas o mais importante é que os direitos da Mãe Terra não existem. Sem a Mãe Terra não há vida, e portanto, não há humanidade.

Quando tentamos aproveitar nossos recursos naturais com um planejamento a curto, médio e longo prazo, respeitando os direitos da terra, eles dizem que não pode. Quando o neoliberalismo explorava petróleo em reservas florestais, ninguém reclamava, nem as ONGs nem as fundações. Quando nós chegamos ao governo e começamos a fazer explorações, respeitando as áreas de reserva natural, começaram os protestos financiados pelos EUA ou por multinacionais.

Há setores da esquerda, não financiados pelos EUA, que reclamam contra o modelo extrativista…

Quem são esses setores na Bolívia? São os troskos que se transformam na extrema-direita. Hoje se ouve na Bolívia a frase “outra esquerda é possível”. E isso é levantado pelos troskos. Durante o golpe [não fizeram] nem uma manifestação contra a ditadura, e se dizem de esquerda. Não sou capaz de falar sobre o que ocorre em outros países nesse quesito da exploração dos recursos naturais. Mas te digo o que fizemos com a Bolívia. Demos valor agregado a nossos recursos naturais para não ter dependência em ciência e tecnologia. Isso foi uma prioridade.

Qual é o problema que temos, não só os sul-americanos, mas os latino-americanos em geral? Alguns países propõem a liberação política, social e cultural. E minha experiência me diz que ela precisa ser acompanhada da libertação econômica. A libertação política ou ideológica sem libertação econômica não tem muito futuro. Nós, com as nacionalizações, temos garantido essa libertação, econômica e política. Mas o grande problema latino-americano é que depois temos que passar da nacionalização à industrialização, com ciência e tecnologia.

E não dá para conseguir isso com as chamadas tecnologias limpas?

Temos que conseguir, evidentemente, em defesa da Mãe Terra, procurando e discutindo novos caminhos. Mas, para isso, os latino-americanos precisamos avançar nas áreas da ciência e da tecnologia.

O golpe e a OEA

Falando em golpe, em 2015 e 2016, tanto Nicolás Maduro, desde a Venezuela, como Pepe Mujica, no Uruguai, já tinham rejeitado e criticado a atuação do secretário geral da OEA, Luís Almagro. Por quê você, mesmo com o golpe sendo gestado, demorou tanto para perceber o papel que hoje você atribui a Almagro, e que segue essa mesma linha de raciocínio?

Foi um erro do governo nacional [referindo-se ao seu próprio governo]. Almagro tem um discurso de duas caras. Elogiava nossa economia, os processos de mudança. Entendo que ele seja um grande agente do império estadunidense e que opere com planos contra os povos, inclusive sem respeitar os estatutos de base da OEA. Devo reconhecer, como boliviano e como ex-presidente, que foi um erro acreditar que Luis Almagro pudesse garantir um processo democrático em nosso país.

Porém, apesar do relatório final da auditoria eleitoral, ganhamos no primeiro turno. O relatório aponta irregularidades em 226 mesas. Sendo assim, é só convocar novas eleições nessas mesas e não no país inteiro. Se considerarmos as 36 mil mesas da Bolívia, 226 significam menos do que o 1%. Mesmo se todos esses votos fossem computados para a oposição, ainda assim ganharíamos no primeiro turno. É um golpe da OEA.

Novas eleições e referendo

Muitos dos governos de esquerda ou progressistas latino-americanos não souberam criar uma descendência política a partir de suas lideranças. Como resolver essa lacuna?

[Faz cara de dúvida, percorre a mesa com o olhar e brinca com o gravador] Eu não acreditava muito nisso… mas agora tenho me convencido de que é uma questão importante. Não sei se teria a ver com o fato de preparar lideranças de forma conjunta ou qual seria a solução. Nunca imaginei que o líder que gerasse transformações profundas em seu respectivo país fosse tão importante. É preciso repensar essa situação.

De todo modo, continuo pensando que sempre que esse projeto político de liberação está em primeiro lugar, o programa do povo e, depois, vem os cargos correspondentes. Assim deve ser. Mas o que parece ser uma característica latino-americana de que o povo dependa sempre de um líder. Temos que mudar a mentalidade dos latino-americanos.

Pergunto porque você perdeu um plebiscito popular em 2016, quando desejava se apresentar novamente como candidato presidencial — e, mesmo assim, decidiu insistir no argumento de que “o povo pediu”. E, no fim, tudo acabou em golpe de Estado. Como interpretar esse argumento?

Naquele referendo venceu a mentira.

Mas você mesmo já tinha reconhecido que estaria preparado para uma possível derrota…

Mas foi exatamente por isso que diversos setores sociais e políticos reagiram e procuraram outras vias constitucionais para me apresentar como candidato. Minha candidatura não foi ilegal nem inconstitucional. Procuramos jurisprudência na América Latina com casos exemplares em Honduras, Nicarágua, Costa Rica… não foi uma invenção nossa, dos bolivianos.

Os dois femininos

Faz alguns meses, Sergio Ramírez, ex-vice-presidente da Nicarágua (durante a revolução sandinista), declarou que a nova esquerda deveria focar na redistribuição da renda, mas não discutir a supremacia do capital. Você compartilha a mesma visão sobre o papel da nova esquerda?

A redistribuição é importante, mas, junto com isso, é importante fechar gradualmente as grandes brechas de desigualdade entre as famílias. É a única maneira de garantir o socialismo comunitário, do século XXI, ou como você queira chamá-lo. Saúde e educação precisam ser direitos básicos dentro dos Direitos Humanos. E, além disso, ter uma economia sem maiores assimetrias, é nesse ponto que entra a importância da redistribuição de renda.

Como você enxerga o movimento feminista, que tem crescido na América do Sul?

Sou feminista. Desde os meus tempos de luta sindical até os de luta eleitoral eu tenho batalhado para que nossas irmãs tenham os mesmos direitos. Porém, há duas linhas dentro do feminismo: para um grupo, o maior inimigo é o homem; para o outro, somos uma família, todos, respeitando os direitos de igualdade e justiça. Na Bolívia, até 1952 as mulheres eram completamente marginalizadas, assim como o movimento indígena. Não tinham nenhuma participação. Sendo que, tanto na política eleitoral como na sindical, mulheres são sempre mais honestas do que os homens.

Você acha que seu governo conseguiu melhorar a situação dos direitos das mulheres?

Totalmente. Hoje em dia, muito mais mulheres têm acesso ao Ensino Fundamental e Médio, bem como à Universidade — e mais mulheres se tornam profissionais. Aumentou a expectativa de vida e, acima de tudo, hoje temos mais mulheres na Assembleia Legislativa Plurinacional. No mundo, somos o segundo ou terceiro país com maior participação legislativa das mulheres.

Você já proferiu algumas frases machistas que a imprensa se dedicou a divulgar, como aquela em que você disse “depois desses anos de gestão, vou embora com meu plantio de coca, minha novinha e meu violão…”

[Ele ri] Sou cheio de fazer piadinhas, adoro as cantigas populares. E essas cantigas de carnaval têm um quê de machista. Mas, na minha gestão, como nunca antes, foi garantida a justiça e igualdade de gênero. Repito, as brincadeiras têm um lado picante e são machistas, tanto nas cantigas como nos versos. Mas todas as bolivianas sabem que eu sou feminista.

Eleições e Plano B

Que dados vocês têm visto nas pesquisas para as eleições de 3 de maio?

Antes de definir os candidatos o Mas já estava em primeiro lugar em todas as pesquisas.

Você será candidato?

Por enquanto, como estou aqui, não tenho candidatura

O que acontece se o Mas ganhar as eleições e o governo de Áñez não reconhecer sua vitória?

Isso pede um plano B. Eu também penso que isso pode acontecer. Mas, falta muito ainda, haverá observadores internacionais e o processo eleitoral está em pleno desenvolvimento.

Bom dia 247: socialismo vence na Bolívia (19.10.20) 

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SOCIALISMO VENCE NA BOLÍVIA


Conjuntura internacional: eleições na Bolívia. Com Breno Altman