Aquarius é um totem da resistência permanente dos brasileiros contra o esbulho dos usurpadores e da energia da qual precisamos para botá-los para fora.
Léa Maria Aarão Reis* - http://www.umacoisaeoutra.com.br/
Quando um evento gera imensa
expectativa antes de se concretizar, é frequente a decepção quando ele
acontece. O objeto da espera invade a imaginação dos que aguardam e
inflaciona, na fantasia, a versão do acontecimento. Perde-se a dimensão
do real. A data da partida, o dia da chegada, a noite da grande festa,
do encontro decisivo. Da estreia de um filme muito badalado.
Não é o caso de Aquarius, cujo autor, de 48 anos, é um dos mais competentes cineastas brasileiros da sua geração, o pernambucano Kléber Mendonça Filho, de Recife, de formação jornalística. Aquarius não desaponta. Pelo contrário. Eletriza milhares de espectadores e é consagrado, durante e no final das sessões dos cinemas onde é exibido, como ocorreu no último fim de semana.
Depois de quatro meses aguardando para estrear no Brasil, desde o histórico fora-temer da sua equipe, nas escadarias do Festival de Cinema de Cannes, em maio passado, o filme protagonizado por Sonia Braga atinge uma marca rara de bilheteria - duzentos mil espectadores nos seus dez primeiros dias; sessões lotadas, calorosos aplausos e gritos de protesto das plateias contra o mordomo e o golpe de estado.
Aquarius se firma além da sua dimensão estritamente cinematográfica, que é admirável, e se torna um filme/ícone. É o totem da resistência permanente dos brasileiros contra o esbulho dos meliantes usurpadores do governo e da energia da qual precisamos para botá-los para fora.
Não é o caso de Aquarius, cujo autor, de 48 anos, é um dos mais competentes cineastas brasileiros da sua geração, o pernambucano Kléber Mendonça Filho, de Recife, de formação jornalística. Aquarius não desaponta. Pelo contrário. Eletriza milhares de espectadores e é consagrado, durante e no final das sessões dos cinemas onde é exibido, como ocorreu no último fim de semana.
Depois de quatro meses aguardando para estrear no Brasil, desde o histórico fora-temer da sua equipe, nas escadarias do Festival de Cinema de Cannes, em maio passado, o filme protagonizado por Sonia Braga atinge uma marca rara de bilheteria - duzentos mil espectadores nos seus dez primeiros dias; sessões lotadas, calorosos aplausos e gritos de protesto das plateias contra o mordomo e o golpe de estado.
Aquarius se firma além da sua dimensão estritamente cinematográfica, que é admirável, e se torna um filme/ícone. É o totem da resistência permanente dos brasileiros contra o esbulho dos meliantes usurpadores do governo e da energia da qual precisamos para botá-los para fora.
Neste
começo de carreira a sua trajetória é notável embora acabe de ter sido
golpeado pelo governo através de uma comissão, sem representatividade e
sem ética (um dos membros é daquela crítica mal cheirosa donão-vi-e-não-gostei
de certos filmes), que tradicionalmente aponta as produções brasileiras
a serem escolhidos por Hollywood como candidatas ao Oscar de Melhor
Filme Estrangeiro.
Apesar do revanchismo político com gosto de vingança infantil, Aquarius já pode prescindir da benção de um Oscar. Ganhou prêmios nos festivais de Amsterdã, no Transatlantyk, da Polônia, em Lima, no Peru e em Sidney, na Austrália. Fez furor na Europa e esta semana está sendo mostrado no Festival de Cinema de Toronto – isto, por enquanto.
Já está vendido para o Netflix internacional, comprado para exibição em cinemas de 60 países e é praticamente unânime a crítica que recebe dos mais influentes jornais ocidentais. Um grande filme.
Portanto, não conceder ao Brasil a honra de apresentar Aquarius como candidato ao Oscar, é como não convocar Neymar para a seleção de futebol porque ele seria contra o golpe, diz-se nas redes sociais. Mais um escândalo internacional do governo temer. Mais um tiro no pé.
Os produtores do filme formam um time da pesada. Além dos franceses Michel Merkt e Emilie Lascaux, Saïd ben Saïd está no grupo. É o respeitado produtor franco-tunisiano que costuma captar recursos para filmes de Polansky, Brian de Palma e Barber Schroeder. Os brasileiros Walter Salles e Carlos Diegues são co-produtores.
A espinha dorsal do roteiro de autoria de Mendonça traz um admirável e fascinante retrato de mulher forte e potente - idosa? madura? velha? meia-idade? -, a Clarade Sonia Braga, de 66 anos. Clara é o símbolo da mulher da geração libertária dos meados dos anos 60, corajosas mulheres da contracultura que romperam os padrões patriarcais vigentes até então. Clara é da leva de geração que se seguiu, nos anos 70/80.
Viúva, mãe de três jovens adultos, tem netos e é jornalista aposentada. Desde a juventude vive no apartamento do primeiro andar do Aquarius (na realidade, o edifício Oceania) defronte do mar, na praia da Boa Viagem, no Recife, onde criou os filhos e viveu boa parte de sua vida.
Interessados em construir uma torre, um prédio/pombal moderno, naquele espaço, os responsáveis pela empresa Bonfim já adquiriram todos os apartamentos do prédio, menos o de Clara. Por mais que tenha deixado claro que não pretende vendê-lo – o seu ninho afetivo -, ela sofre um assédio cada vez mais agressivo para mudar, por parte de um coronel transmutado (hoje) em empresário, e seus filho coxa que estudou nos Estados Unidos (netos dos entulhos da ditadura civil-militar de 64) e voltam “com os olhos cheios de sangue” (como diz o personagem) para começar a trabalhar aqui.
Com habilidade, o tom da narrativa pouco a pouco vai transformando o universo plácido da protagonista numa história de quase-suspense onde o pano de fundo permanece a questão urbana e social desumana: a gentrificação de bairros e quarteirões das grandes cidades brasileiras entregues à sanha de grupos da indústria imobiliária e da construção civil.
Em Boa Viagem, por exemplo, em determinado momento, Clara mostra ao filho e à jovem nora a língua negra de esgoto, na areia, que divide a avenida da praia das edificações onde mora a classe média e alta separada dos casebres da favela. Insinua-se que a favela, é óbvio, com o tempo será engolida. “Num país em que para tudo há um jeitinho, as cidades acabam sendo uma grande confusão,” diz o diretor.
Para ele “o filme é de resistência e é um pouco um filme de sobrevivência.” Mas “trata-se de um filme sobre a energia necessária para existir. Às vezes cansa, mas há que encontrar mais energia para continuar a lutar.“
Na perspectiva cinematográfica, Aquarius me empolga por três principais razões: é cinema de substantivos fortes com pouca adjetivação. Como nos filmes de mestres, uma imagem nele vale por toda uma sequência, o que dá vontade de assisti-lo novamente. Por isto, Mendonça é saudado, com razão, como um diretor com domínio absoluto do cinema.
O trabalho poderoso de Sonia Braga é um capítulo á parte ao qual se deve voltar. E me fascina porque é impregnado da sensualidade de Recife e do Nordeste, no sentido mais largo, como é O Som ao redor (2013) outro belo filme do cineasta. A sensualidade trazida pela própria sedução e pela sexualidade intacta, apesar do câncer de mama e da idade, da vigorosa Clara cujo nome é um dos inúmeros símbolos, signos e chaves que permeiam a narrativa clara e serena tocada com a trilha musical deliciosa.
Na sua sensualidade Aquarius tem o doce perfume dos cajus que o lendário escritor Rubem Braga sempre pedia aos amigos - “uma caixinha” - para trazerem para ele, na sua cobertura em Ipanema.
Discriminar Aquarius é passar mais um recibo da grossura e da burrice do governo golpista. É reforçar o que escreveu o crítico do jornal The Guardian Peter Bradshaw – será ele um petralha?:
"Essa rica e misteriosa história brasileira é sobre desintegração social. Metáfora do Brasil com temas sobre nepotismo, corrupção e cinismo.”
Vamos mudar esta imagem. Fora, temer.
*Jornalista
Apesar do revanchismo político com gosto de vingança infantil, Aquarius já pode prescindir da benção de um Oscar. Ganhou prêmios nos festivais de Amsterdã, no Transatlantyk, da Polônia, em Lima, no Peru e em Sidney, na Austrália. Fez furor na Europa e esta semana está sendo mostrado no Festival de Cinema de Toronto – isto, por enquanto.
Já está vendido para o Netflix internacional, comprado para exibição em cinemas de 60 países e é praticamente unânime a crítica que recebe dos mais influentes jornais ocidentais. Um grande filme.
Portanto, não conceder ao Brasil a honra de apresentar Aquarius como candidato ao Oscar, é como não convocar Neymar para a seleção de futebol porque ele seria contra o golpe, diz-se nas redes sociais. Mais um escândalo internacional do governo temer. Mais um tiro no pé.
Os produtores do filme formam um time da pesada. Além dos franceses Michel Merkt e Emilie Lascaux, Saïd ben Saïd está no grupo. É o respeitado produtor franco-tunisiano que costuma captar recursos para filmes de Polansky, Brian de Palma e Barber Schroeder. Os brasileiros Walter Salles e Carlos Diegues são co-produtores.
A espinha dorsal do roteiro de autoria de Mendonça traz um admirável e fascinante retrato de mulher forte e potente - idosa? madura? velha? meia-idade? -, a Clarade Sonia Braga, de 66 anos. Clara é o símbolo da mulher da geração libertária dos meados dos anos 60, corajosas mulheres da contracultura que romperam os padrões patriarcais vigentes até então. Clara é da leva de geração que se seguiu, nos anos 70/80.
Viúva, mãe de três jovens adultos, tem netos e é jornalista aposentada. Desde a juventude vive no apartamento do primeiro andar do Aquarius (na realidade, o edifício Oceania) defronte do mar, na praia da Boa Viagem, no Recife, onde criou os filhos e viveu boa parte de sua vida.
Interessados em construir uma torre, um prédio/pombal moderno, naquele espaço, os responsáveis pela empresa Bonfim já adquiriram todos os apartamentos do prédio, menos o de Clara. Por mais que tenha deixado claro que não pretende vendê-lo – o seu ninho afetivo -, ela sofre um assédio cada vez mais agressivo para mudar, por parte de um coronel transmutado (hoje) em empresário, e seus filho coxa que estudou nos Estados Unidos (netos dos entulhos da ditadura civil-militar de 64) e voltam “com os olhos cheios de sangue” (como diz o personagem) para começar a trabalhar aqui.
Com habilidade, o tom da narrativa pouco a pouco vai transformando o universo plácido da protagonista numa história de quase-suspense onde o pano de fundo permanece a questão urbana e social desumana: a gentrificação de bairros e quarteirões das grandes cidades brasileiras entregues à sanha de grupos da indústria imobiliária e da construção civil.
Em Boa Viagem, por exemplo, em determinado momento, Clara mostra ao filho e à jovem nora a língua negra de esgoto, na areia, que divide a avenida da praia das edificações onde mora a classe média e alta separada dos casebres da favela. Insinua-se que a favela, é óbvio, com o tempo será engolida. “Num país em que para tudo há um jeitinho, as cidades acabam sendo uma grande confusão,” diz o diretor.
Para ele “o filme é de resistência e é um pouco um filme de sobrevivência.” Mas “trata-se de um filme sobre a energia necessária para existir. Às vezes cansa, mas há que encontrar mais energia para continuar a lutar.“
Na perspectiva cinematográfica, Aquarius me empolga por três principais razões: é cinema de substantivos fortes com pouca adjetivação. Como nos filmes de mestres, uma imagem nele vale por toda uma sequência, o que dá vontade de assisti-lo novamente. Por isto, Mendonça é saudado, com razão, como um diretor com domínio absoluto do cinema.
O trabalho poderoso de Sonia Braga é um capítulo á parte ao qual se deve voltar. E me fascina porque é impregnado da sensualidade de Recife e do Nordeste, no sentido mais largo, como é O Som ao redor (2013) outro belo filme do cineasta. A sensualidade trazida pela própria sedução e pela sexualidade intacta, apesar do câncer de mama e da idade, da vigorosa Clara cujo nome é um dos inúmeros símbolos, signos e chaves que permeiam a narrativa clara e serena tocada com a trilha musical deliciosa.
Na sua sensualidade Aquarius tem o doce perfume dos cajus que o lendário escritor Rubem Braga sempre pedia aos amigos - “uma caixinha” - para trazerem para ele, na sua cobertura em Ipanema.
Discriminar Aquarius é passar mais um recibo da grossura e da burrice do governo golpista. É reforçar o que escreveu o crítico do jornal The Guardian Peter Bradshaw – será ele um petralha?:
"Essa rica e misteriosa história brasileira é sobre desintegração social. Metáfora do Brasil com temas sobre nepotismo, corrupção e cinismo.”
Vamos mudar esta imagem. Fora, temer.
*Jornalista
Leia também:
Cavalcantis e cavalgados
10 de set 2016
Há ainda em 'Aquarius' um sentido político mais sutil, expresso na crueza com que trata de temas-tabu, como a sexualidade na velhice
A cena que correu o mundo quando “Aquarius” foi exibido em Cannes – o
elenco e parte do público com cartazes denunciando o golpe no Brasil –
deixava dúvida sobre o tipo de resistência que estava em jogo. O filme
perigava se resumir à condição de bandeira lustrosa da campanha
#foratemer.
Mas convém cautela. Se há um pressuposto de militância no filme, ele é nuançado e disposto a encarar contradições e aceitar pontos cegos por trás das boas intenções. Exatamente o que tem faltado a uma parte expressiva da esquerda brasileira.
Seria fácil tachar “Aquarius” de libelo contra a especulação imobiliária. Clara, interpretada por Sonia Braga, mora num predinho antigo de frente para o mar de Boa Viagem, no Recife. Uma grande construtora quer demolir o edifício para ali construir um espigão cheio de câmeras de segurança e espaços gourmet.
Os demais moradores já aceitaram a oferta para sair de casa. Mas Clara está disposta a ir até o fim. Ela recusa as propostas de compra e leva ao limite a resistência contra os invasores. Resumido assim, o quadro parece de fato esquemático.
Mas essa é apenas a fachada de um edifício dramático mais complicado. Clara vive há mais de trinta anos num dos endereços mais nobres da cidade porque herdou, além deste, “mais cinco apartamentos” que garantem vida confortável, com carro importado e uma empregada para preparar uma “verdurinha” enquanto ela vai nadar na praia.
Como lhe joga na cara a filha antipática, ansiosa por convencê-la da venda do imóvel, “não foi como jornalista e escritora” que ela conquistou tudo isso. Também o engenheiro empenhado em sua saída, numa das cenas finais do filme, faz questão de ironizar o “esforço de sua família de pele mais morena” para lhe garantir esse conforto.
Há nobreza na resistência de Clara, mas há também arrogância. E essa é uma arrogância intelectual, de quem preza finos LPs, romances literários e filmes de Kubrick, mas também – e sobretudo – uma arrogância de classe.
Não se trata, pois, de um confronto de uma intelectual bem intencionada e uma elite financeira inescrupulosa, mas de um embate entre duas modalidades da elite pernambucana que encarnam as contradições da classe alta brasileira.
Para seguir resistindo, é preciso enfrentar orgias no apartamento de cima, merda espalhada nas escadas, cultos evangélicos no prédio e outras sabotagens mais graves.
Mas os expedientes de que ela se vale para enfrentar seus algozes revelam sua posição confortável no xadrez social da cidade. Para descobrir podres da firma de engenharia, ela aciona um amigo dono de jornal.
O jornal depende dos anúncios da construtora, naturalmente. Seu dono é um Cavalcanti – o oposto dos “cavalgados”, no célebre adágio pernambucano. Mas é de um Cavalcanti que Clara é amiga. E é graças a um favor dele que consegue instrumento para sua cartada final.
Também o jovem engenheiro que lhe inferniza a vida é um sujeito de modos polidos. Acabou de voltar de um curso de business nos Estados Unidos, teria tudo para ser a caricatura da elite coxinha, mas é mais afável com Clara do que seus três filhos.
Kléber Mendonça Filho é um craque em mostrar como a violência de classe se agudiza por trás desses modos educados. Em “Som ao Redor” isso já aparecia, mas agora parece levado ao paroxismo.
Clara é consciente da crueldade dos desníveis sociais e amiga da empregada. Ela vai até a favela próxima prestigiá-la no aniversário. Mas quando a subordinada mostra à família de Clara uma foto do filho morto num acidente, o constrangimento é geral – inclusive por parte da patroa.
Há ainda em “Aquarius” um sentido político mais sutil, expresso na crueza com que trata de temas-tabu, como a sexualidade na velhice.
Clara é de uma beleza brutal, mas sua idade, temperamento e uma cirurgia de mama em decorrência de um câncer a tornam vulnerável. Ela enfrenta as agruras dessa condição – sai para a balada com as amigas, mas o sexo lhe é negado pelo sujeito atraente com quem vai embora da festa.
Ela preenche o vazio com um michê que não se importa em lhe dar prazer apenas no seio certo. Mas isso não aparece como indício de sua solidão profunda, e sim como alternativa legítima de sexo satisfatório. Clara também não hesita em se valer de sua sensualidade para manter próximo de si o salva-vidas da praia, de quem é amiga e que a socorre numa cena chave do filme.
O modelo para o comportamento de Clara é tia Lucia, presente apenas no prólogo, que recua ao ano de 1980. Enquanto os filhos pequenos de Clara leem textos elogiosos à tia em sua festa de 70 anos, a senhora divaga em lembranças de sexo livre, ali mostradas sem pudor algum, mas também sem regozijo com a própria ousadia.
“Aquarius” é um filme de detalhes – cada móvel da casa tem história, cada música da trilha acrescenta uma camada de sentido à narrativa.
A repercussão dos protestos em Cannes envolveu o filme numa atmosfera de ingenuidade e bom-mocismo. Mas “Aquarius” é bem maior do que isso.
Flávio Moura, jornalista e doutor em Sociologia pela USP, é editor na Companhia das Letras.
Mas convém cautela. Se há um pressuposto de militância no filme, ele é nuançado e disposto a encarar contradições e aceitar pontos cegos por trás das boas intenções. Exatamente o que tem faltado a uma parte expressiva da esquerda brasileira.
Seria fácil tachar “Aquarius” de libelo contra a especulação imobiliária. Clara, interpretada por Sonia Braga, mora num predinho antigo de frente para o mar de Boa Viagem, no Recife. Uma grande construtora quer demolir o edifício para ali construir um espigão cheio de câmeras de segurança e espaços gourmet.
Os demais moradores já aceitaram a oferta para sair de casa. Mas Clara está disposta a ir até o fim. Ela recusa as propostas de compra e leva ao limite a resistência contra os invasores. Resumido assim, o quadro parece de fato esquemático.
Mas essa é apenas a fachada de um edifício dramático mais complicado. Clara vive há mais de trinta anos num dos endereços mais nobres da cidade porque herdou, além deste, “mais cinco apartamentos” que garantem vida confortável, com carro importado e uma empregada para preparar uma “verdurinha” enquanto ela vai nadar na praia.
Como lhe joga na cara a filha antipática, ansiosa por convencê-la da venda do imóvel, “não foi como jornalista e escritora” que ela conquistou tudo isso. Também o engenheiro empenhado em sua saída, numa das cenas finais do filme, faz questão de ironizar o “esforço de sua família de pele mais morena” para lhe garantir esse conforto.
Há nobreza na resistência de Clara, mas há também arrogância. E essa é uma arrogância intelectual, de quem preza finos LPs, romances literários e filmes de Kubrick, mas também – e sobretudo – uma arrogância de classe.
Não se trata, pois, de um confronto de uma intelectual bem intencionada e uma elite financeira inescrupulosa, mas de um embate entre duas modalidades da elite pernambucana que encarnam as contradições da classe alta brasileira.
Para seguir resistindo, é preciso enfrentar orgias no apartamento de cima, merda espalhada nas escadas, cultos evangélicos no prédio e outras sabotagens mais graves.
Mas os expedientes de que ela se vale para enfrentar seus algozes revelam sua posição confortável no xadrez social da cidade. Para descobrir podres da firma de engenharia, ela aciona um amigo dono de jornal.
O jornal depende dos anúncios da construtora, naturalmente. Seu dono é um Cavalcanti – o oposto dos “cavalgados”, no célebre adágio pernambucano. Mas é de um Cavalcanti que Clara é amiga. E é graças a um favor dele que consegue instrumento para sua cartada final.
Também o jovem engenheiro que lhe inferniza a vida é um sujeito de modos polidos. Acabou de voltar de um curso de business nos Estados Unidos, teria tudo para ser a caricatura da elite coxinha, mas é mais afável com Clara do que seus três filhos.
Kléber Mendonça Filho é um craque em mostrar como a violência de classe se agudiza por trás desses modos educados. Em “Som ao Redor” isso já aparecia, mas agora parece levado ao paroxismo.
Clara é consciente da crueldade dos desníveis sociais e amiga da empregada. Ela vai até a favela próxima prestigiá-la no aniversário. Mas quando a subordinada mostra à família de Clara uma foto do filho morto num acidente, o constrangimento é geral – inclusive por parte da patroa.
Há ainda em “Aquarius” um sentido político mais sutil, expresso na crueza com que trata de temas-tabu, como a sexualidade na velhice.
Clara é de uma beleza brutal, mas sua idade, temperamento e uma cirurgia de mama em decorrência de um câncer a tornam vulnerável. Ela enfrenta as agruras dessa condição – sai para a balada com as amigas, mas o sexo lhe é negado pelo sujeito atraente com quem vai embora da festa.
Ela preenche o vazio com um michê que não se importa em lhe dar prazer apenas no seio certo. Mas isso não aparece como indício de sua solidão profunda, e sim como alternativa legítima de sexo satisfatório. Clara também não hesita em se valer de sua sensualidade para manter próximo de si o salva-vidas da praia, de quem é amiga e que a socorre numa cena chave do filme.
O modelo para o comportamento de Clara é tia Lucia, presente apenas no prólogo, que recua ao ano de 1980. Enquanto os filhos pequenos de Clara leem textos elogiosos à tia em sua festa de 70 anos, a senhora divaga em lembranças de sexo livre, ali mostradas sem pudor algum, mas também sem regozijo com a própria ousadia.
“Aquarius” é um filme de detalhes – cada móvel da casa tem história, cada música da trilha acrescenta uma camada de sentido à narrativa.
A repercussão dos protestos em Cannes envolveu o filme numa atmosfera de ingenuidade e bom-mocismo. Mas “Aquarius” é bem maior do que isso.
Flávio Moura, jornalista e doutor em Sociologia pela USP, é editor na Companhia das Letras.
Os artigos publicados no NEXO Ensaio são de
autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias
ou opiniões do NEXO.
O NEXO Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade
do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e
internacional.
Para participar, entre em contato por email: ensaio@nexojornal.com.br.
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