fonte: https://outraspalavras.net/brasil/a-possivel-reinvencao-da-politica/
– on 01/10/2018
Manifestações gigantescas foram muito além do
#elenão e sugerem que há, nas ruas, enorme potência repolitizadora – não
captada pelos partidos. Como articulá-la?
A multidão que se uniu contra o fascismo, no
sábado, foi imensa e ubíqua. Centenas de milhares em São Paulo, Rio,
Salvador, Recife, Belo Horizonte, Manaus e tantas outras capitais.
Passeatas como há muito não se via em cidades médias de quase todos os
Estados. Presença de grupos importantes mesmo nas ruas de muitas
localidades menores. Sons e cores do Brasil em capitais do mundo,
sugerindo que, depois de dois anos de infâmia, o país pode voltar a ter
presença internacional importante. A multidão autoconvocou-se
rapidamente pela internet, para lembrar que a rede, mesmo em tempos de
vigilância, precisa ser disputada e pode ser ferramenta indispensável de
convocação. Em duas semanas, um chamamento lançado por poucas mulheres –
porém, capaz de dialogar com o desejo políco te muit@s, articulou o que foi, de longe, a manifestação mais numerosa e mais importante e da campanha eleitoral.
A multidão foi alegre, criativa, irônica,
muitas vezes mordaz. O ódio, os berros e vociferações, tão constantes
entre os que vestem o amarelo, são expressões de quem tenta bloquear o
inesperado provocando medo – e se defende cercando-se de privilégios,
normalidades e passados. Mas a irreverência é a arma afiada d@s
que zombam das misérias do presente, pois apostam que podem construir
outros futuros. Por isso, a multidão cantou, dançou, beijou-se, inventou
coros e músicas.
A multidão foi diversa e plural, porém tinha
lado. Em São Paulo, as centenas de milhares de pessoas reunidas no Largo
da Batata não eram uma massa informe, reunida para ouvir um grande
líder. Pareciam muito mais um organismo vivo, composto de incontáveis
grupos políticos, coletivos, turmas de amigos ou colegas, famílias (não
eram raros os bebês de colo). Muita gente havia chegado em cortejos, que
percorreram a cidade com a leveza dos blocos de carnaval. Todos puderam
expressar-se – como muitas vezes não se vê inclusive nos atos da
esquerda. Diante da ausência de caminhões de som, tonitruantes e
silenciadores, emergiu a voz dos cartazes, dos corpos pintados, das
vestes com cores e desenhos alusivos a causas. Não uma plateia passiva,
mas centenas de milhares que não cessaram – e não cessarão, nas próximas
semanas – de inventar formas múltiplas de dizer #elenão ao fascismo.
A multidão quis dizer algo que vai além
dos partidos. Militantes de agremiações diversas participaram com suas
bandeiras e símbolos – e foram acolhidos como tod@s. Mas eram poucos e
souberam diluir-se na massa. Porque não se tratava de manifestar adesão a
quem supostamente nos representa, mas de expressar diretamente desejos e
projetos.
A multidão foi autônoma e horizontal, mas com claro sentido de estratégia política. Não havia lideranças, nem causas prioritárias. Tod@s
eram iguais: dos coletivos feministas que convocaram o ato aos
sindicatos, aos lutadores pela diversidade sexual, aos ambientalistas,
aos jovens – vastíssima maioria –, aos ciclistas. Porém, esta ausência
de hierarquia não gerou caos nem diluição. Os inúmeros grupos e pessoas
presentes, ligadas a múltiplas causas transformadoras, haviam definido
de antemão que todas estas devem, no momento dar prioridade a uma outra,
comum: derrotar a ameaça fascista, sem o quê não haverá país
respirável.
A mundidão foi profundamente feminista, ao
agir orientada por valores como a colaboração, o cuidado, a partilha –
em vez da disputa, da violência ou do rivalismo. Ninguém enfrentou-se
por um microfone ou um lugar no palanque. Nenhum carro de som elevou o
volume dos alto-falantes para que as falas de seus ocupantes encobrissem
as dos demais. Nenhuma central sindical posicionou seus balões em
espaço mais visível que os das outras. A ausência de hierarquias
permitiu que, no mesmo plano e transitando pelos mesmos espaços, os que
apoiam diferentes causas ou se orientam por distintas sensibilidades
políticas pudessem se enxergar, interagir, confraternizar.
A multidão foi intensamente política. As
causas presentes compõem o mosaico de outro país possível. Um país que
trate como iguais as mulheres e que acolha as múltiplas expressões do
amor e da sexualidade. Um país em que a vida digna seja um direito
assegurado por políticas e serviços públicos – não uma mercadoria cada
vez mais cara, que se vende a quem possa pagar. Um país em que trabalhar
não seja martírio e em que a lei não estimule a brutalidade dos
patrões. Um país de cidades sem cercas e catracas, livre da ditadura do
automóvel e do cimento. Um país descolonizado, que projete no mundo seus
valores sem arrogância, mas sem voltar à condição de quintal; e que não
regrida à categoria submissa de produtor de minérios e commodities
agrícolas.
Há muitos anos, os partidos deixaram de liderar a
luta por tais causas, tão políticas. Reduziram-se – inclusive os de
esquerda – à condição de máquinas eleitorais. Relacionam-se com os
cidadãos como vendedores de um produto. No Brasil, são distintos
produtos, é verdade – e por isso, as eleições já eram importantes antes
deste ano, quando elas serão a chave ou para a possível reversão do
golpe de 2016, ou para sua continuidade e aprofundamento. Porém, ficaram
para trás os tempos em que os partidos refletiam, formulavam, debatiam e
mobilizavam pela transformação social.
* * *
A multidão, que deu ontem novo
rumo e novo clima à disputa eleitoral, mostrou que este lugar não
precisa permanecer vazio: ele pode ser ocupado pela rua. Não foi, é
claro, a primeira vez em que isso ocorreu, desde o golpe e o início da
onda de grandes retrocessos. Em 2016, as ruas se encheram de gente que
protestava contra a deposição arbitrária de Dilma e a tomada do poder
pelos não-eleitos; porém, esvaziaram-se a partir do meio do ano, quando a
disputa pelas eleições municipais dividiu os manifestantes e os
subordinou à agenda dos candidatos. Em 2017, duas greves gerais
extravasaram a dinâmica dos sindicatos e se converteram em protestos
populares generalizados. Em março deste ano, as ruas voltaram a se
autoconvocar e se abarrotar de gente, em protesto contra o assassinato
de Marielle Franco e Anderson Gomes.
A multidão, que agora se propõe
como personagem central da luta contra o fascismo, poderá ser também, a
partir de 2019, ator decisivo para reveter os retrocessos, resgatar a
democracia e os direitos, ensaiar o desenho de um novo país? Numa
conjuntura em que Congresso, mídia e Judiciário manterão ser caráter
ultra-conservador, e em que um eventual governo de esquerda firmará os
acordos previsíveis, as ruas saberão ser o contraponto? Como oferecer
respostas tão potentes como as de ontem, em situações muito mais
complexas? Como estabelecer algum tipo de articulação entre sujeitos
políticos tão diversos, e ao mesmo tempo tão unidos por valores comuns?
Da resposta a estas perguntas dependerá, em grande medida, nosso futuro
comum.
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