Entrevista
Para professor, o presidente do
Uruguai, que deixa o cargo hoje (1º), é exceção entre governantes da
região: 'É o único que não é demonizado pela grande mídia
latino-americana nem odiado pela direita'
por Vitor Nuzzi, da RBA
publicado
01/03/2015 10:11,
última modificação
01/03/2015 11:00
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São Paulo – A partir deste domingo (1º), o ex-presidente Tabaré
Vázquez voltará a ser o mandatário do Uruguai. Reeleito no ano passado,
ele entrará no lugar de José "Pepe Mujica", seu sucessor em 2010. A
chapa da Frente Ampla, que ambos integram, foi eleita em segundo turno e
garantiu um terceiro governo sucessivo de esquerda no pequeno país da
América do Sul, com pouco mais de 3 milhões de habitantes.
Avesso a formalidades, Mujica tornou-se uma espécie de celebridade
por seu comportamento inusitado, ao
senso comum, em relação a
praticamente todos os governantes. Também chamou a atenção por
apresentar propostas polêmicas no campo do comportamento. Para o
professor Wagner Iglecias – de Gestão de Políticas Públicas na Escola de
Artes, Ciências e Humanidades e do programa de pós-graduação em
Integração da América Latina –, da USP, as propostas liberais não são a
marca da gestão do governante uruguaio. Ele acredita que o legado de
Mujica está no combate à pobreza e no que ele chama de "simbologia do
cidadão comum", pelo desapego ao poder.
O presidente uruguaio se destaca entre outros líderes populares do
continente. De alguma maneira, conseguiu escapar da fúria que a mídia
exibe contra alguns governantes. "É o único que não é demonizado pela
grande mídia latino-americana nem odiado pela direita", diz Iglecias. "É
difícil não gostar de Mujica."
Sobre Tabaré, o professor acredita na implementação de políticas de
distribuição de renda e aumento tributação aos mais ricos. A defesa da
integração do continente deve ser mantida, possivelmente com menos
ímpeto e combatida pela direita (em todos os países), pouco entusiasta
por projetos autônomos de desenvolvimento.
O Uruguai talvez seja uma exceção em um momento turbulento na América
Latina, com os governistas progressistas, incluindo o Brasil, em
situação delicada. Às voltas com uma pressão que nada tem a ver com o
alegado propósito de combate à corrupção. "Trata-se, na visão dos
opositores destes governos, de recolocar a América Latina na posição em
relação ao mundo que ela teve desde o século 16", afirma Iglecias, que
teme uma volta da onda neoliberal dos anos 1990.
Qual o legado de Mujica? Ele, de fato, pôs o Uruguai no mapa
mundial, principalmente com propostas relacionadas a comportamento
social?
O Uruguai é um país muito pequeno, tanto em termos demográficos como
econômicos. Não creio que as propostas defendidas pelo governo Mujica,
como o reconhecimento legal da união homoafetiva, do direito da mulher
sobre seu corpo, no caso do aborto, e do consumo da maconha, sejam
bandeiras suficientes para ter colocado o país no mapa mundial. Acho que
se for este o critério, Ghiggia e Schiaffino, que marcaram os gols na
final da Copa do Mundo de 1950 (contra o Brasil, no Maracanã),
foram talvez até mais importantes para tornar o Uruguai mais conhecido
em outras partes do mundo. E de mais a mais essas bandeiras abraçadas
pelo governo Mujica são bandeiras liberais, ligadas aos direitos civis e
adotadas em outros países há mais tempo. O legado do governo Mujica foi
o combate à pobreza e a simbologia que ele conseguiu transmitir, a do
cidadão comum que chega à presidência de seu país e continua sendo
exatamente isso, um cidadão comum, sem se deixar levar pela vaidade nem
se apegar às delícias do poder, como é tão corriqueiro em tantas partes
do mundo e com tantos governantes.
Ambos são representantes da Frente Ampla, mas isso não representa
um alinhamento automático. Houve divergências públicas entre eles
durante a campanha eleitoral. Como diferenciá-los em termos de prática
política, e o que esperar deste novo mandato de Tabaré?
A Frente Ampla, como diz o próprio nome, e como é comum a qualquer
partido, tem diversas correntes, e portanto pessoas que têm posições
diferentes e divergentes sobre inúmeros assuntos. No caso de Tabaré e
Mujica não é diferente. A questão da legalização do aborto, por exemplo,
é apenas um exemplo das posições diferentes que cada um tem. Sobre o
mandato de Tabaré, creio que se pode esperar empenho em medidas
distributivistas, com alívio de carga tributária para os mais pobres e
aumento da tributação aos mais ricos, especialmente os detentores de
grandes fazendas. Também espera-se a criação de um sistema nacional de
saúde e assistência social mais moderno e abrangente e o reforço a
iniciativas que visem a elucidar e, na medida do possível, reparar os
crimes de Estado cometidos na época da ditadura militar que o país
viveu, entre as décadas de 1970 e 1980.
As políticas de integração do continente continuarão sendo valorizadas, apesar da pressão contrária?
Creio que se depender do Uruguai, sim. Embora pense que Tabaré talvez
não seja tão entusiasta destas políticas como foi Mujica enquanto
presidente. Mas independente da posição do governo uruguaio, podemos
esperar para o curto prazo pressões contrárias à integração que vão se
tornar cada vez maiores. Tanto por parte de potências estrangeiras
quanto por parte da direita interna a cada país. Que no fim das contas é
toda ela muito parecida, nunca acreditou num projeto autônomo de
desenvolvimento e acha, não sei se por ideologia ou outros motivos, que a
adesão subordinada às grandes potências é o caminho único para a nossa
região.
Em artigo recente, o sr. perguntava que fim haviam levado os
líderes latino-americanos dos anos 1990: Menem, Salinas, Fujimori, FHC,
entre outros. Era o auge do conceito neoliberal, com as propostas de
desregulamentar a economia, privatizar, reduzir o papel do Estado. Em
que momento a onda começou a virar?
A onda começou a virar, favoravelmente a alternativas políticas mais
progressistas, na hora em que a população percebeu o completo fracasso
social daqueles governos neoliberais: fome, desemprego, exclusão social
em larga escala nos setores populares e prejuízos até para outros
segmentos sociais, como as classes médias, que se empobreceram em vários
dos nossos países durante os anos 1990. No entanto, o momento atual da
América Latina é preocupante, especialmente em termos de crescimento
econômico, e uma nova onda pode virar. E provavelmente em direção, de
novo, aos fundamentalistas do neoliberalismo que governaram a região 20
anos atrás.
Mesmo os governos progressistas parecem não ter escapado do
domínio e da influência do mercado financeiro. Faltaram alternativas?
Há como escapar? A economia hoje é globalizada, os mercados
financeiros e a especulação em sentido mais amplo têm de fato muito
poder. Não só econômico, capaz muitas vezes de fazer vergar um país e
impor perdas enormes à maioria de sua população. Mas também poder
político, financiando partidos, indicando ministros. As alternativas têm
sido tentadas, e a resistência interposta a essas forças tão poderosas
por governos como os de Mujica, Chávez, Evo etc. são exemplos disso.
Nesse sentido, qual o simbolismo de um líder como Mujica,
que dispensava formalidades do cargo, continuou a viver na mesma chácara
e recusou-se a vender seu Fusca por uma fortuna? Ele chegou a dizer que
era preciso retirar da política "todos os que gostam muito de
dinheiro". Utópico?
Não é utópico. Mas é possível de fazer num país pequeno e distante
dos grandes centros do poder mundial como é o Uruguai. Não sei se um
presidente brasileiro teria condições de abrir mão do Palácio do
Alvorada e ir morar num sítio em alguma cidade-satélite do Distrito
Federal. Acho que mais do que dispensar os rapapés do cargo, o que
Mujica deixa como legado é a ideia de que é possível você ser um
cidadão, um militante, ir ao poder e depois voltar à sua condição
anterior, de uma pessoa como todas as outras. Nesse sentido ele
dessacralizou o poder. Alguns outros líderes latino-americanos do mesmo
período também dessacralizaram, cada qual a seu modo, usando a linguagem
do povo, ou o humor, ou metáforas de fácil assimilação, por exemplo.
Mas de fato Mujica, neste aspecto, foi além de todos eles. É difícil não
gostar de Mujica. Tanto é que, de todos os líderes esquerdistas da
região (Lula, Chávez, Evo, Correa, Cristina, etc.), é o único que não é
demonizado pela grande mídia latino-americana nem odiado pela direita.
Mujica pode ter ajudado a fazer com que as pessoas vissem de outra forma os políticos, uma classe tão desprestigiada?
Sem dúvida. Pelos motivos que citamos. Mas
acho que ele ajudou mais a alimentar a frustração que as pessoas têm em
relação a seus representantes, quase sempre tão comprometidos com
interesses duvidosos, apegados ao que chamei de “delícias do poder” e
ostentando um ego super insuflado.
Que importância terá Mujica no Senado, na sustentação dos projetos do governo?
Para além da figura mítica, Mujica é um experiente articulador político. Ainda que tenha divergências em relação a algumas questões em relação a Tabaré, será alguém importante para ajudá-lo, desde o Parlamento, a governar e consolidar avanços que o país teve desde 2005, quando a Frente Ampla chegou ao poder. E não me parece que Pepe, por ser a figura fraterna que é e por ter uma dimensão muito aguçada das delicadas e complexas questões que estão em jogo não só para o Uruguai mas como para a América Latina neste momento, vá querer competir com Tabaré desde o Senado ou prejudicar de alguma forma a sua presidência.
Para além da figura mítica, Mujica é um experiente articulador político. Ainda que tenha divergências em relação a algumas questões em relação a Tabaré, será alguém importante para ajudá-lo, desde o Parlamento, a governar e consolidar avanços que o país teve desde 2005, quando a Frente Ampla chegou ao poder. E não me parece que Pepe, por ser a figura fraterna que é e por ter uma dimensão muito aguçada das delicadas e complexas questões que estão em jogo não só para o Uruguai mas como para a América Latina neste momento, vá querer competir com Tabaré desde o Senado ou prejudicar de alguma forma a sua presidência.
Pode-se dizer que a região hoje tem uma predominância de
governos ditos progressistas/populares, com tendências de esquerda
(embora alguns contestem essa visão). Alguns governantes atuaram na
resistência à ditadura em seus países. O sr. vê alguma ameaça a essa
hegemonia no futuro próximo? No Brasil, por exemplo, há setores se
movimentando pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. E a
Venezuela vive um período turbulento.
Vejo. A ameaça é enorme. Todo governo e todo projeto de poder em
algum momento enfrenta seus limites. Exceções talvez da Bolívia e do
Uruguai, e em menor medida do Equador, os governos progressistas da
região estão em situação delicada. Enfrentam com dificuldade crescente
opositores internos e externos. As razões, acho, são as de sempre, e não
têm absolutamente nada a ver com corrupção: trata-se, na visão dos
opositores destes governos, de recolocar a América Latina na posição em
relação ao mundo que ela teve desde o século 16.
A geração atual de governantes terá uma acolhida histórica melhor que a imediatamente anterior?
Não só terá como já teve. As reeleições de Lula, Chávez, Evo, Correa e
tantos outros mostram o reconhecimento da massa da população em relação
a lideranças que, com todos os seus erros e suas limitações, pela
primeira vez governaram invertendo prioridades e ampliando direitos a
quem historicamente foi marginalizado. Não foram os primeiros que
tentaram, tivemos outros governos na América Latina em décadas passadas
que também buscaram dar mais atenção aos mais pobres. No entanto, estes
governos não tiveram condições políticas de se manter no poder, e muito
menos de reeleger-se e fazer perdurar um projeto mais distributivista.
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