sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

SEIS ANOS SEM REGINALDO ROSSI


 


Abílio Neto




Se no Rio de Janeiro existe a Alerj, famosa por seus esquemas de rachadinhas e outros mais sofisticados para enriquecer políticos, em Pernambuco fica a Alepe, destacada por esquemas fraudulentos de prestação de contas de deputados e também por seus velórios. 

Na idade em que estou, já conto mais do que uma centena de velórios e isso me incomoda. Da última vez que fui ao Parque das Flores, ao passar pelo portão, tive a impressão de ouvir uma voz fanhosa dizendo ‘seja bem-vindo'. Por via das dúvidas, vivo, não piso mais lá.  

Da classe artística de PE fui a vários velórios na Alepe, mas quero destacar apenas três: de Luiz Gonzaga (1989) e de Dominguinhos e Reginaldo Rossi, ambos no infeliz ano 2013. Reginaldo foi aquele homem que sem nenhum falso pudor declarou à Folha de São Paulo em 1998, quando seu sucesso chegou ao sudeste: ‘ao invés de cheirar cocaína é melhor cheirar a xereca das meninas’. E a frase foi publicada! 

Se nos velórios de Dominguinhos e Luiz Gonzaga o povo demonstrava uma tristeza tão grande que deixava a gente muito cabisbaixa, no velório de Reginaldo Rossi, o povo ria, chorava, bebia, cantava e fazia festa. Eu como fã de Rossi também entrei no clima. 

Dois famosos bailinhos com aqueles paredões tocando as músicas dele nas alturas houve naquele 21/12/2013: um na frente da Alepe e outro no fundo. Aqueles que saíam chorando depois de avistarem o corpo sem vida de Reginaldo, de repente se enchiam de bebida e haja dança, choro e canto, repetindo as músicas que tocavam nos aparelhos de som.  

Eu nunca vi na vida uma coisa nem parecida com aquela. Era algo que fazia rir e chorar ao mesmo tempo. Nunca vou esquecer de uma senhora idosa, de braços dados com duas jovens, que pareciam ser suas netas, bebendo muito, dançando, chorando e as jovens a segurando para que ela não caísse. O que eu ouvi de bêbado dizer que aquele era o dia mais triste da sua vida não está no gibi. Nunca imaginei que a morte do Rei do Brega pudesse provocar tamanha comoção popular. E quando a música se referia à Ilha de Itamaracá? Uma loucura! Com ‘Recife Minha Cidade’, a mesma alucinação. ‘Maior que Deus’? Sim, ele era. A letra explica! 

E os responsáveis pelas aparelhagens de som capricharam: tocavam não somente suas músicas de maior sucesso como também outras muito boas que eram novidade até para mim que acompanhei sua carreira no tempo da Jovem Guarda e depois a partir da década de oitenta.  

Reginaldo Rossi era de esquerda, porém nunca engajou a sua arte. Embora raramente fugisse do tema da dor de corno (que formava o universo ao seu redor) às vezes se mostrava um compositor preocupado em injetar ânimo nas pessoas diante das dificuldades que o povo vivia em plena ditadura. Sempre fui apaixonado pela música ARROZ com FEIJÃO, que é de 1976, composição de Rossi e Jorge Mello que exemplifica essa preocupação social dele.  

Também me alegra bastante outra composição de Reginaldo (versão) que tem o título TERNO AZUL que se destaca pelo humor. É do início da década de oitenta quando se vestia todo de branco e o povo reclamou e aí ele radicalizou passando a se vestir de preto total parecendo um urubu.  

Faleceu em 20/12/2013, de falência múltipla dos órgãos que teve início com a descoberta de um câncer de pulmão dois meses antes de partir. Artista boa gente, amável, solidário, bem humorado, que faz muita falta neste Brasil carrancudo e atrasado de Bolsonaro e afins. 

Imagine aquele traste militarista e miliciano dançando FÉRIAS EM ITAMARACÁ, composta e gravada em 1987 por Reginaldo para retratar o clima libertário da ilha, pregando a liberdade sexual de todas as tribos. Para quem não passa de uma transa evangélica do tipo ‘papai e mamãe’ com Michelle, seria uma coisa para ele cair durinho ou abrindo mão do falso moralismo que nele impera, se lambuzar todo. 

Seis anos após sua morte, meu coração ainda é um bar vazio tocando REGINALDO ROSSI!  


Se você parar pra pensar  

Verá que nada é melhor  

Do que viver meu irmão  

Mesmo com o risco que corre  

De ser rico ou pobre  

Empregado ou patrão  

 Faça a sua vida feliz  

Siga o ditado que diz  

Trabalhe e ganhe o seu pão  

E se seu dinheiro não dá  

Pra gostar de caviar  

Que tal arroz com feijão?  

  Não espere a sorte chegar  

Corra, vá encontrar  

Tente, seja bicão  

Pois se você não jogar  

Os treze nunca fará               (treze pontos da Loteria Esportiva)  

Somente olhando o cartão. 











Abílio Neto, pernambucano, 70 anos, é memorialista e pesquisador musical, além de  pequeno colecionador de discos. Seu arquivo contém algumas obras que se tornaram preciosas na música brasileira diante do mau gosto popular nessas duas primeiras décadas do século XXI. São frevos, sambas, maracatus, forrós, xotes, polcas, toadas, marchinhas, merengues e choros. Tem mais de 400 artigos escritos sobre música que foram publicados em sites da internet, ‘terreno’ que se notabiliza pela impermanência. Seus artigos provam que a História também se conta através da música.

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Música e sociedade, música e política, música e afeto, amizade, alegria e prazer. Uma delícia quando lemos o texto de uma pessoa que sabe fazer essa combinação. É o que faz Abilio Neto, o qual conhecemos nos anos do Overmundo, entre 2006 e 2011, primeiro portal nacional de internet dedicado a difusão  da  cultura independente, das periferias, dos sertões,   dos que mesmo produzindo com qualidade e compromisso, não conseguiam espaços para fazer divulgação nos cadernos culturais dos grandes jornais.
Ler o texto do Abilio Neto é como conversar ao cair da tarde em um alpendre de varanda das casas coloniais, cercados pela brisa suave que sopra das árvores, grandes e pequenas que cercam o redor da casa. Ou então,  é como conversar em uma barraca de praia, sentindo o vento que vem do mar soprando em nossas caras, bebendo uma boa caipirinha, intercalando com água de coco.

Abilio Neto passa a ser colaborador eventual do blog da Ação Cultural a partir desse mês de dezembro de 2019. Vida longa parceiro! 

Zezito de Oliveira

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