O que pode resultar da atual tendência anti-intelectual, avessa à cultura, própria da sociedade contemporânea? Rodrigo de Lemos examina a questão para o Estado da Arte.
Estado da Arte
18 Agosto 2018 | 19h30
18 Agosto 2018 | 19h30
por Rodrigo de Lemos
Ócio e negócio; Marc Fumaroli lembra que o velho preconceito das classes superiores antigas opunha o otiume o negotium como dois tempos na vida do indivíduo: o primeiro correspondia ao da formação, ao da cultura da alma mencionada
por Cícero, apta a preparar o indivíduo ao gozo esclarecido e digno de
uma existência enquanto cidadão livre.
Essa liberdade na cidade, por sua
vez, equivaleria a um segundo tempo, ao do negotium, ao tempo
atarefado da decisão política e da existência econômica. Aos olhos
modernos, o paradoxal nas sociedades que gestaram esse ideal é que a
liberdade de poucos, assim como a educação necessária ao seu exercício,
fundou-se frequentemente na servidão de muitos, e acredita-se que
abolição dos privilégios em que repousava essa disparidade estendeu os
benefícios da existência livre às massas anteriormente dela excluídas.
Por sua vez, a irradiação desse acúmulo da cultura não seria – sob o
nome de esclarecimento – a condição mesma de conservação e de prosperidade de uma sociedade liberal baseada em uma discussão franca de muito por muitos?
Nem
sempre, bem entendido, a relação entre liberalismo e cultura seguiu uma
linha direta. Tocqueville foi dos autores a debruçar-se sobre esse
problema. Na sua descrição dos Estados Unidos democráticos dos anos
1830, a mobilidade social e o mercado livre teriam as consequências mais
importantes para a produção artística, tanto nas artes menores quanto
nas Belas-Artes.
Nas sociedades do privilégio, o exercício de uma arte é
um privilégio entre tantos, e os artistas formam corpos profissionais
dificilmente penetráveis, regidos por regras de excelência e por um
orgulho coletivo, de modo que “o objetivo das artes é então o de fazer o
melhor possível, e não mais rápido nem a melhor preço”.
É assim também
porque o público só pode ser o público em função de um privilégio. A
permanência incontestada por gerações e gerações no topo da sociedade
contribui a que o comprador favoreça a excelência do objeto, e a mesma
obra-prima que enobrece a guilda encontra como que seu termo natural em
uma aristocracia que não deseja outra coisa que uma obra-prima em
harmonia com sua posição excepcional na sociedade. Na antiga Europa do
privilégio, “os artesãos só trabalham para um número limitado de
compradores, muito difíceis de satisfazer. É da perfeição de seus
trabalhos que depende principalmente o ganho que esperam.”
Com
a desaparição dos privilégios, tanto da nobreza quanto dos corpos
profissionais, desaparecem igualmente essas condições favoráveis ao
extraordinário no terreno das produções do espírito – o que não implica,
por certo, que as obras-primas não mais se façam, mas que elas seguem
dependendo da aparição de um comprador que se assemelhe ao antigo
consumidor aristocrático, no que se refere à disponibilidade de tempo e
de meios financeiros, o que não é mais tão fácil encontrar em termos de
classe.
De resto, o mercado livre e a mobilidade social tomam o contrapé
dessa possibilidade. As fronteiras das profissões se abrem, e uma
“turba entra e sai incessantemente”, de maneira que “seus diferentes
membros se tornam estranhos, indiferentes e quase invisíveis uns aos
outros” e que “cada artesão é trazido a si mesmo, só buscando ganhar o
máximo de dinheiro possível aos menores custos”.
Ao mesmo tempo, o
comprador já não difere essencialmente do produtor. O gosto pelos
confortos materiais típicos das democracias, associado à possibilidade
mesma do rebaixamento social e de expansão ilimitada dos objetos de
cobiça, provoca a ansiedade pelo acúmulo de objetos de menor qualidade
que satisfaçam os caprichos ou que, por sua acumulação mesma, sejam
proveitosos nos tempos ruins.
Por sua vez, o artesão, sabendo-se feito
da mesma matéria ao comprador, adivinha seus desejos e suas
necessidades, buscando reduzir o valor unitário do que produz em favor
do ganho em escala e em detrimento da excelência do produzido. “Quando
só os ricos possuíam relógios de pulso, esses eram excelentes. Hoje se
fabricam somente medíocres, mas todos os têm”, observa Tocqueville.
O impacto de uma organização
social instável e de uma economia aberta sobre as Belas-Artes não é
menor do que sobre as “artes úteis”. Por um lado, “a maioria dos que já
haviam contraído o gosto pelas Belas-Artes tornam-se pobres”; por outro,
“muitos do que ainda não são ricos começam a conceber, por imitação, o
gosto pelas Belas-Artes”.
Há um acréscimo no número geral de
consumidores, acompanhado pelo decréscimo de compradores “muito ricos e
muito finos” – daí a multiplicação das obras, mas seu enfraquecimento em
mérito. Se esse é caso nas artes menores e nas maiores, por que não
seria assim também quanto a esses outros objetos artesanais tornados
itens de massa que são os livros ou mesmo quanto às artes da imagem
móvel que surgiriam no final do século XIX? Nos anos 1830, Tocqueville
já flagra, em estado nascente, as bases daquela indústria da cultura cujo advento atrairá a atenção da crítica no século seguinte.
A
visão de Tocqueville contribui à compreensão da ambiguidade subjacente
às democracias liberais quanto à vida intelectual e à cultura –
percebida também por liberais preocupados com o tema como Mario Vargas
Llosa em A civilização do espetáculo.
Por um lado, as tendências utilitárias e hedonistas identificadas em Da democracia na América nos
anos 1830 parecem motivar uma desconfiança global, ou ao menos um
menosprezo, das sociedades abertas autais quanto aos valores e às
atividades que distinguiam as antigas elites patrimoniais: por que as
elucubrações da ciência básica, da arte pura ou das humanidades
desinteressadas se a tecnociência e o tecno-entretenimento parecem
responder imediatamente aos imperativos de utilidade e de divertimento
que reinam como que fundados em si mesmos?
Por outro lado, as
democracias, no seu tempo de glória política, estabeleceram contrapesos
às forças de nivelamento propulsionadas pela mobilidade social e pelo
mercado, sob forma de instituições educativas e culturais – museus,
fundações, rádios e televisões públicas – que seguiam objetivos e tempos
próprios.
Os regimes livres agiram assim em coerência consigo mesmos,
conscientes do papel do esclarecimento como sua condição de
sobrevivência. Quais consequências pode sinalizar-lhes a contestação
desse estado de coisas por uma poderosa tendência anti-intelectual na
sociedade contemporânea, que por vezes se reclama paradoxalmente do
próprio idioma e do vocabulário do liberalismo?
Rodrigo de Lemos é professor na UFCSPA (RS) e doutor em Literatura pela UFRGS.
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