Nunca houve tanto “vinho tinto de
sangue” no Brasil (62.517 mortes violentas e intencionais por ano). A
censura, sem assumir seu nome e sua natureza, tenta silenciar vozes e
asfixiar as artes
por Mário Magalhães, The Intercept
publicado
05/08/2018 10h05
Fernanda Piccolo/Fotoarena/Folhapress
Chico Buarque e Gilberto Gil durante
Festival Lula Livre, nos Arcos da Lapa, Rio, pela libertação do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
The Intercept e Portal RBA – Quando os ponteiros se roçaram à meia-noite, ou os relógios digitais e
telefones celulares só mostraram números zero na virada do sábado para o
domingo, bom seria que os dois senhores classudos vestindo camisas
azuis para fora da calça, no palco montado sob os arcos da Lapa carioca,
estivessem acertando contas com um passado amargo, e nada mais.
Mas Chico Buarque e Gilberto Gil falaram ao presente, ao
cantar 45 anos mais tarde “Cálice”, parceria deles proibida pela
ditadura. Foi a canção que elegeram para abrir sua breve apresentação
conjunta no Festival Lula Livre, perante dezenas de milhares de manifestantes.
Nunca houve tanto “vinho tinto de sangue” no Brasil (62.517
mortes violentas e intencionais por ano). A censura, sem assumir seu
nome e sua natureza, tenta silenciar vozes e asfixiar as artes.
“Cale-se!”, diz, fingindo que não diz. A Constituição veda censura “política, ideológica e artística”.
Gil teve a ideia do mote de “Cálice” na Sexta-Feira Santa
de 1973. Ele e Chico criaram a maior parte da música no Sábado de
Aleluia, duas estrofes cada um. Com poesia e ginga para confundir os
censores, fustigaram tortura e censura recorrendo às palavras homófonas
“cálice” e “cale-se”. Não funcionou. Ao lado de “Cálice”, datilografada
no título e em versos, um burocrata solerte manuscreveu: “Cale-se”. E
carimbou, garrafal: “VETADO”.
Em maio daquele ano, na mostra Phono 73, os compositores
sabiam que a censura encrencara. Ainda assim, ousaram enunciar um ou
outro verso e preencheram com onomatopeias o restante da melodia. Não
chegaram ao fim, porque os microfones foram desligados. Por agentes da
ditadura, como alguns supuseram. Ou, hipótese mais provável, por ordem
da gravadora Phonogram, temerosa de punições.
Liberada em 1978, a canção agoniada foi gravada por Chico e
Milton Nascimento. No fim de semana, o público pronunciou
compassadamente “cale-se”, como segunda voz dos autores. Ex-ministro da
Cultura na administração Lula e apoiador de Marina Silva em 2014, Gil se
referiu ao ex-presidente como “nosso líder”. Ele e Chico reivindicaram
“Lula livre!”. Horas antes, a atriz Maeve Jinkings alertara no palco: a
censura voltou.
‘Mesmo calada a boca resta o peito’
Na sexta-feira, na terra onde Lula nasceu, uma peça de
teatro foi excluída do Festival de Inverno de Garanhuns por decisão do
desembargador Roberto da Silva Maia, do Tribunal de Justiça de
Pernambuco. Ele atendeu a pedido da Ordem dos Pastores Evangélicos de
Garanhuns e Região.
Os pastores alegaram que o monólogo “O Evangelho Segundo
Jesus, Rainha do Céu” retrata Cristo como uma figura transsexual,
desvirtuando o ensinamento histórico-dogmático e violando o sentimento
religioso de toda uma nação cristã”. Na peça da dramaturga escocesa Jo
Clifford, Jesus é interpretado pela atriz trans Renata Carvalho.
O magistrado escreveu, em pleno ano da graça e da desgraça
de 2018, que a peça “desvirtua” Jesus Cristo, “de modo a causar veemente
repúdio e, por que não, ódio da comunidade cristã”; “o desvirtuamento
de um profeta religioso […] fomenta o ódio e a intolerância, máxime
quando diz respeito a uma religião sabidamente conservadora e que
valoriza sua historicidade e os escritos estanques da Bíblia Sagrada”.
A peça já havia sido censurada pelo prefeito do Rio,
Marcelo Crivella, sob o pretexto de “ofender a consciência dos
cristãos”. E, na cidade paulista de Jundiaí, proibida pelo juiz Luiz
Antonio de Campos Júnior, para quem “figuras sagradas” não podem ser
“expostas ao ridículo”.
Antes do despacho em Pernambuco, uma sessão ocorrera às
cinco da tarde. Oficiais de Justiça e policiais militares tentaram
impedir a das nove horas. Trezentas pessoas não obedeceram e entraram no
local da encenação, uma casa que mais cedo tinha sido alvo de uma
bomba. Gritavam “Não vai ter censura!”, contou o repórter Leonardo Vila
Nova. Sob vaias, servidores do Estado retiraram equipamentos de luz e
som.
Na cara e na coragem, Renata foi à luta. Seu Jesus
transgênero ensinou: “Eu nunca disse que perseguissem homossexuais,
transexuais e travestis”. No frio das alturas do agreste, a noite
iluminou-se de compaixão e liberdade. Será que naquele dia em Garanhuns
deu para ver o mais longo eclipse lunar deste século, a Lua de Sangue,
avermelhada?
‘Esse silêncio todo me atordoa’
Na era Temer, o presente se conjuga no passado. Em 1986,
depois do fim da ditadura, o governo José Sarney cedera à cruzada da
Igreja Católica e vetara a exibição de “Je Vous salue, Marie”. O filme
de Jean-Luc Godard, queixavam-se os bispos, blasfemaria contra a mãe de
Jesus.
Completou 50 anos em julho a noite sórdida em que
alucinados do Comando de Caça aos Comunistas depredaram o Teatro Galpão,
em São Paulo. Os invasores agrediram os atores da peça “Roda Viva”,
escrita por Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez Corrêa.
A censura do século 21 parte tanto do Estado, em especial
dos Poderes Executivo e Judiciário, quanto de bolsos privados e
intolerâncias particulares. Em setembro, o Santander Cultural
interrompeu em Porto Alegre a mostra “Queermuseu: Cartografias da
Diferença na Arte Brasileira”. Os expositores, pusilânimes,
humilharam-se diante de pressões de grupelhos como o MBL.
Crivella, novamente associado ao obscurantismo, empenhou-se
em boicotar a “Queermuseu”. “Saiu no jornal que vai ser no MAR [Museu
de Arte do Rio]; só se for no fundo do mar”, pilheriou o bispo
licenciado da Igreja Universal. O prefeito mantém distância da Sapucaí,
onde a faixa presidencial do vampiro da Paraíso do Tuiuti sumiu entre o
desfile competitivo e o das campeãs – censura? No festival na Lapa, o
público entoou o samba-enredo com que a escola sacudira a avenida em
fevereiro.
Em outubro, intimidado, o Masp interditara a exposição
“Histórias da Sexualidade” a menores de 18 anos, mesmo acompanhados
pelos responsáveis. Um grupo de artistas protestou em frente ao museu.
No Pará, uma ilustração do artista Gidalti Moura Jr. foi removida em abril de exposição no Parque Shopping de Belém. A imagem mostra um policial de cassetete na mão tentando atingir um menino de rua da cidade. O garoto é personagem da novela gráfica “Castanha do Pará”, que recebeu em 2017 o Prêmio Jabuti de história em quadrinhos. A aquarela censurada, devido sobretudo a reclamações de policiais, está reproduzida na capa do livro.
No Pará, uma ilustração do artista Gidalti Moura Jr. foi removida em abril de exposição no Parque Shopping de Belém. A imagem mostra um policial de cassetete na mão tentando atingir um menino de rua da cidade. O garoto é personagem da novela gráfica “Castanha do Pará”, que recebeu em 2017 o Prêmio Jabuti de história em quadrinhos. A aquarela censurada, devido sobretudo a reclamações de policiais, está reproduzida na capa do livro.
‘Essa palavra presa na garganta’
A barra pesou na academia. O Ministério da Educação
anunciou em fevereiro ações contra um curso opcional da UnB sobre o
golpe de 2016. O Ministério Público Federal apelou à Justiça, sem
sucesso, para suspender matéria semelhante na Universidade Federal de
Goiás.
E investigou a disciplina “Golpe de 16 e o Futuro da
Democracia no Brasil”, da Universidade Federal do Ceará. Os procuradores
só se aquietaram depois de a Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão se declarar favorável à autonomia universitária na formulação de
disciplinas.
Na véspera do Festival Lula Livre, tomou-se conhecimento de
que a Polícia Federal intimara o professor Aureo Mafra de Moraes, chefe
de gabinete da reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina. Ele
seria suspeito de atentar contra a honra da delegada Erika Mialik
Marena, por participar de um ato contra o “abuso de poder”.
O rosto dela aparece numa faixa exposta no protesto. A
policial comandou a operação Ouvidos Moucos, que prendeu em setembro o
então reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Logo depois ele se
suicidou. Até hoje se desconhece prova ou indício digno de consideração
sobre crime cometido por Cancellier.
Na ação em curso contra o professor Moraes, opinou a Folha
de S.Paulo, “intimidação e arbítrio se mostram evidentes, dando
indicação do despreparo de autoridade da PF para agir numa democracia”. A
delegada foi uma das inspirações da personagem vivida pela atriz Flávia
Alessandra no filme de ficção – põe ficção nisso – “Polícia Federal: a
lei é para todos”.
É um caso atrás do outro. A Universidade Federal do ABC
abriu no mês passado uma sindicância contra os docentes Gilberto
Maringoni, Valter Pomar e Giorgio Romano. O crime teria sido organizar
na UFABC o lançamento de um livro com entrevista de Lula, “A verdade
vencerá”. Uma pergunta, típica de ditaduras, do questionário oficial
encaminhado aos investigados: “Durante o evento ocorreram manifestações
de desapreço e contra o presidente Temer e integrantes do Poder
Judiciário-MP”?
Não é só o ensino superior que padece. No começo do ano,
mães e pais de alunos espernearam contra o livro “Omo-Oba: Histórias de
Princesas”, indicado por uma escola de Volta Redonda. A bronca era com
as lições sobre cultura africana.
Pensamentos dissonantes perturbam. A professora Debora
Diniz, da UnB, teve de deixar Brasília duas semanas atrás por receber
ameaças de morte. Seu pecado: defender o direito ao aborto.
Em novembro, um grupo queimou uma bruxa com o rosto da
filósofa norte-americana Judith Butler, presente em um seminário em São
Paulo. Um abaixo-assinado com 300 mil signatários exigira o cancelamento
do evento.
‘Mesmo calado o peito, resta a cuca’
O jornalismo é mutilado e, com a autocensura,
automutila-se. O gerente de redação da Empresa Brasileira de
Comunicação, Roberto Cordeiro, ordenou a redução da cobertura da morte
de Marielle Franco e Anderson Gomes. Os jornalistas da casa reclamaram. A
EBC informou que advertiu o gerente.
A pedido da delegada Erika Marena, o juiz Nei Roberto de
Barros Guimarães, do 8º Juizado Especial Cível do Paraná, determinou a
supressão de reportagens do blog do jornalista Marcelo Auler com
críticas à operação Lava Jato. Auler e numerosas entidades civis
denunciaram censura prévia. Em junho, a Primeira Turma do Supremo
Tribunal Federal autorizou as matérias.
O mesmo STF, por meio do ministro Ricardo Lewandowski,
manteve uma proibição de mais de 3.000 dias: o jornal O Estado de S.
Paulo não pode publicar notícias a respeito da operação policial Boi
Barrica e suas descobertas sobre o empresário Fernando Sarney. Trata-se
de censura, qualificou a Associação Brasileira de Imprensa.
Há um mês, o Grupo Globo estabeleceu suas “diretrizes sobre
uso de redes sociais por jornalistas”. O conglomerado proibiu
“mensagens que revelem posicionamentos políticos, partidários ou
ideológicos”. Concordar ou discordar do sistema de cotas no acesso a
instituições públicas é escolha ideológica. Bem como repudiar juros
bancários extorsivos. Cale-se?
“Precisamos agir de tal modo que nossa isenção não seja
questionada”, argumentou o presidente do Conselho Editorial do grupo,
João Roberto Marinho. O blog Nocaute, do jornalista e escritor Fernando
Morais, entendeu que a Globo instituiu “censura patronal”, um “AI-5
interno”.
Um constrangimento eficaz ao exercício do jornalismo provém
hoje de indenizações vultosas e muitas vezes desproporcionais
deliberadas pela Justiça.
Outro constrangimento é obra da própria imprensa: o
silêncio indecoroso sobre fatos e ideias de desagrado dos donos. A
multidão na Lapa representou a maior manifestação pela libertação do
ex-presidente, preso há quase quatro meses. Houve quem nem tenha
noticiado o show de protesto. Eis um exemplo de censura empresarial.
‘Pai, afasta de mim esse cale-se/cálice’
A juíza Carolina Lebbos negou em julho recurso contra
decisão que proibira Lula, pré-candidato à Presidência, de dar
entrevistas e participar de sabatinas. Ela julgou o petista
“inelegível”, embora a Justiça eleitoral não tenha tratado da
candidatura ainda não inscrita. Deram entrevistas no cárcere Marcinho
VP, Paulo Maluf, Roger Abdelmassih, Suzane Von Richthofen e outros
presos. Com Lula foi diferente.
No Festival Lula Livre, o Tribunal Regional Eleitoral
apreendeu até bandeira do PT. Quem não gosta de partido é ditadura.
Outdoors de propaganda de Jair Bolsonaro, em contraste, espalham-se por
todos os Estados. Quem disse que a Justiça não tem lado?
O Tribunal Superior Eleitoral censurou perguntas “não
eleitorais” nas pesquisas durante a campanha. Não se poderá indagar ao
eleitor sobre o crescimento patrimonial de Bolsonaro. Como o
entrevistado avalia Michel Temer. Se pensa ser democrático alijar Lula
do pleito. São restrições com tempero passadista.
“A gente não deve permitir que o presente leve o futuro de
volta para o passado”, discursou Odair José na Lapa. Artista censurado
com voracidade pela ditadura, ele cantou “Eu vou tirar você desse
lugar”, clássico do cancioneiro romântico que conta o amor por uma
prostituta. Ovacionaram-no.
Há quase meio século, na mesma mostra Phono 73 em que
cortaram o som de Chico e Gil, Odair foi vaiado por um público que se
imaginava muito sabido e que na verdade não sabia de nada. Mais esperta,
a censura desconfiou que o título fosse um recado sibilino ao
general-presidente Médici. No sábado, pegadinha da história, partidários
da libertação de Lula deram outra conotação à promessa “eu vou tirar
você desse lugar…”.
No princípio da madrugada dominical, puxados por Beth
Carvalho, vários artistas encerraram o festival com “Deixa a vida me
levar”. É o mesmo samba que Lula pediu para ouvir no palanque de São
Bernardo em 7 de abril, antes de se entregar à polícia.
Chico Buarque já havia cantado “Gota d’água”. No Brasil
surtado, muitos se reconheceram em seus versos: “Deixa em paz meu
coração/ Que ele é um pote até aqui de mágoa/ E qualquer desatenção,
faça não /Pode ser a gota d’água”.
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