terça-feira, 28 de agosto de 2018

Danças Circulares, Cultura de Paz e Diversidades Culturais: Perspectivas e Práticas Transdisciplinares [1]

Andrea Paula dos Santos Oliveira Kamensky [2]
 



Uma proposta de construção de uma cultura de paz preconiza a não violência e a construção de ambientes livres de opressão e dominação. Mas, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, fortaleceu-se a noção de que o caminho para o estabelecimento de uma cultura de paz não será construído a partir do chavão: “vamos colocar as diferenças de lado” e exercer a “tolerância”. Pelo contrário, uma Cultura de Paz precisa colocar em pauta todas as nossas subjetividades e diferenças, buscando equidade na conquista de direitos humanos, realizando o exercício permanente do aprender a ser diferente, com­preender o outro, por meio de criação e reinvenção de novas práticas culturais e sociais democráticas e plurais.
As Danças Circulares são um importante movimento artístico e cultural na atualida­de que vem desenvolvendo, em diversas regiões do mundo e sob diferentes óticas e pers­pectivas, novas significações, apropriações e interpretações de seu legado histórico e de suas práticas tradicionais e contemporâneas. Seja a partir de vivências e perspectivas artís­ticas, culturais, terapêuticas, científicas, de saúde preventiva ou pedagógicas, as Danças Circulares constituem-se também como objetos de estudos e assumem centralidade em processos de ensino e aprendizagem para públicos variados.
Nesse sentido, as Danças Circulares, tal como são praticadas por milhares de pessoas e grupos neste início do século XXI, abarcam uma multiplicidade de reflexões e práticas, abrangendo aspectos diversificados da vida comunitária e de proposições quanto ao cui­dado de si e do outro. Num mapeamento de atividades e publicações nos últimos anos, observamos que as Danças Circulares se popularizaram e, no contexto atual, perpassam inúmeros espaços institucionais e independentes, mobilizando a atuação de pessoas for­madas em distintas áreas profissionais, desencadeando estudos a partir de perspectivas teóricas e metodológicas inter e transdisciplinares de vastos campos de conhecimentos.
Como exemplo, temos estudos e/ou práticas que partem de sujeitos ligados às áreas de Psicologia, Saúde Pública, Assistência Social, Neurociência, Gerontologia, Medicina, História, Antropologia, Sociologia, Filosofia, Educação Física, Pedagogia, Arte, entre outras. Isso significa que, por mais que o movimento das Danças Circulares tenha uma história inicial, com protagonistas que as conceberam com objetivos ligados à sua vida em comunidade e ao seu contexto histórico no final do século passado, hoje, a sua expansão e seus desenvolvimentos por pessoas e grupos muito diferentes em múltiplas localidades envol­vem dimensões amplas de diversidades culturais que proliferam e se renovam constantemente.
As histórias e experiências de sujeitos e coleti­vidades em rodas de Danças Circulares não com­portam mais visões únicas e homogeneizadoras, nem enquadramentos fechados e dogmáticos, muito menos tentativas de controle e de explica­ções consideradas melhores ou mais verdadeiras sobre o que essas práticas representam para tantos indivíduos e agrupamentos que cresceram e se es­palharam mundo afora. A tônica das Danças Cir­culares é, no início do século XXI, a da diversida­de cultural.
Assim, as rodas de Danças Circulares são lide­radas por focalizadores/as com formação livre, au­todidata ou em educação formal, que imprimem em seus grupos características de sua própria traje­tória de vida e de seu repertório cultural e social. Há rodas lideradas por pedagogas/os, educadores/ as populares, educadores/as físicos, arte-educado­res/as, psicólogas/as, médicos/as, enfermeiros/as, assistentes sociais, gestores/as e administradores/ as, artistas populares, artistas plásticos/visuais, bai­larinos, atrizes/atores, professores/as de História, Geografia, Filosofia, Arte, Sociologia, Ciências, Línguas e Literatura, que se unem eventualmente em projetos e práticas interdisciplinares em espa­ços públicos e privados de caráter educativo, de saúde, de assistência social, de cultura, de lazer e de esporte, entre outros.
As rodas de Danças Circulares são focalizadas e frequentadas por indivíduos que buscam tanto um horizonte de aprendizados culturais e educacionais quanto um contexto de promoção do esporte, do lazer, do bem-estar, da saúde, da qualidade de vida, do convívio comunitário, do cuidado intergeracio­nal (crianças, jovens, idosos) ou de desenvolvimen­to humano e espiritual. A partir dessa realidade concreta, os itinerários e percursos desses indivíduos nos grupos são fontes de pesquisas, com estudos e trabalhos de campo, passí­veis de interpretações com aportes teóricos e metodológicos que provêm de diversas áreas do saber, não apenas científicas ou culturais, mas também espirituais, profissionais e lei­gas, que buscam compreender o fenômeno das Danças Circulares como dado complexo da vida contemporânea, mobilizador de identidades individuais e coletivas.
Entendemos que todas as contribuições para estudar e compreender o impacto das Danças Circulares em nossa sociedade são igualmente importantes e ampliam nossa per­cepção do que estas representam e significam para muita gente. Apesar de, num primeiro momento, aparentar um discurso unificado e uma construção histórica comum e compar­tilhada sobre seus propósitos e finalidades, as rodas podem ser totalmente diferentes, conforme os locais em que acontecem, as pessoas que participam, as músicas e coreogra­fias que são trabalhadas, a organização de suas práticas por profissionais de áreas discipli­nares com conhecimentos e métodos muito diferentes entre si.
Sabemos, pelos estudos e práticas vivenciados ao longo dos anos, que as pessoas tomam contato com as Danças Circulares e procuram participar de grupos de pratican­tes entre as/os quais se sintam acolhidas, valorizadas, confortáveis e felizes, desenvol­vendo suas potencialidades afetivas, de sociabilidade, corporais e de muitos aprendiza­dos em temáticas tranversalizadas. Uma roda pode ser pouco convidativa para uma determinada pessoa e, ao mesmo tempo, extremamente atraente para outra, dependen­do do equacionamento de fatores objetivos, subjetivos e imponderáveis que, por vezes, mesmo as pesquisas e os estudos, por mais dedicados que sejam, não poderão entender em sua complexidade, ainda mais se tentarem encaixar tais práticas em modelos teóri­cos que simplificam, homogeneízam e, assim, levam a tirar conclusões mais fechadas e mais fáceis de elaborar. Há rodas de Danças Circulares predominantemente com crianças, ou adolescentes, ou jovens, ou adultos ou pessoas idosas, mas também aqueles que reúnem grupos intergeracionais, em que todas essas pessoas se misturam. Há rodas com públicos mistos ou frequentadas apenas por mulheres; por pessoas de determina­das práticas espirituais e religiosas; por pessoas com deficiências; por pessoas de deter­minadas instituições educacionais (nos mais variados níveis de ensino); culturais; de lazer e esporte; de saúde, etc.
O importante é destacar que nesse panorama plural das Danças Circulares existem possibilidades de se constituírem práticas sempre educativas, em torno da defesa e pro­moção de uma cultura de reconhecimento e valorização de diversidades culturais para a construção de relações e comunidades, que tenham como meta o convívio respeitoso e pacífico, entre seres humanos, paradoxalmente iguais enquanto espécie humana e diferen­tes como sujeitos singulares, históricos e culturais. Com suas práticas culturais e corporais coletivas, as Danças Circulares trazem à tona nossas diferenças sem intenção de transfor­má-las em desigualdades. Através da linguagem e da cultura corporal dos/as próprios participantes e de diversos povos espalhados no tempo e no espaço, surgem conhecimentos parti­lhados por focalizadores/as, mediadores/as da roda, e por pessoas dançantes de várias identidades cultu­rais, políticas, socioeconômicas, geracionais, de gê­nero, sexuais, étnico-raciais, religiosas.
O curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE), oferecido pela Universidade Federal do ABC (UFABC) em parceria com o Ministério da Educação e a Prefeitura de São Paulo, teve como um de seus principais objetivos teóricos e metodo­lógicos a proposição da compreensão e do convívio plural e democrático entre pessoas e grupos ligados às diversidades para a promoção de uma Cultura de Paz nos ambientes escolares. E, para tanto, trouxe para a prática pedagógica de formação docente as rodas de Danças Circulares, que sensibilizaram e possibilitaram vivenciar com todo o corpo a quebra de preconceitos e a compreensão efetiva e sensível, corporalizada, do que significa conviver e aprender com as diversidades culturais.
Ao longo do curso, em nossos encontros pre­senciais, dançamos músicas de diversos povos, tra­dicionais e contemporâneas, em diferentes focali­zações como performances artísticas realizadas para construir novos saberes em conjunto com os/ as participantes. As linguagens artísticas da música e da dança tornaram-se, assim, novas pontes, cami­nhos, trajetos possíveis para a mediação de confli­tos e construção cotidiana da Cultura de Paz. A Dança Circular, sempre presente, logo de cara des­constrói nossas relações com o outro, elimina dis­tanciamentos e visibiliza nossas diferenças reco­nhecidas como diversidades ao nos colocar todos juntos, de mãos dadas, olhando uns nos olhos dos outros e realizando danças coletivas de diferentes culturas ao longo do tempo.
Desta forma, as Danças Circulares mostram-se necessárias e poderosas não só no auxílio da cons­trução da Cultura de Paz, mas também nas reinvenções de nós mesmos em diálogo e afetividade com o outro, evidenciando nossos corpos e nossas diferenças que estão pre­sentes e constituem todos os seres humanos, e que por vezes estão suprimidas ou são apontadas de forma negativa. As Danças Circulares derrubam atitudes e comportamen­tos simbolicamente desrespeitosos e violentos, expressos em preconceitos velados e explí­citos em nossos cotidianos no ambiente escolar, de trabalho, familiar etc. que, infelizmen­te, perpetuam em palavras e gestos muitas discriminações contra mulheres, populações negras e indígenas, pessoas LGBT que expressam diversidades sexuais, pessoas de cultu­ras e regiões distantes, pessoas idosas, pessoas deficientes, enfim, pessoas de grupos histo­ricamente marginalizados, que compõem a beleza plural e a riqueza cultural da humani­dade. No círculo, aprendemos que somos iguais e diferentes, que precisamos conviver e aprender uns com os outros, e que esse rico e novo aprendizado pode ser prazeroso, alegre, lúdico, libertador, terapêutico e transformador.
Para desenvolvermos e refletirmos sobre estas questões e outras correlacionadas, ela­boramos um volume dedicado à sistematização e disseminação de algumas experiências com Danças Circulares e Educação e promoção da Cultura de Paz, realizadas nos últimos anos em nosso país.
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Este volume foi pensado como um repertório afetivo e criativo de linguagens artísticas, sobre­tudo da dança e da música, com foco no movi­mento cultural das Danças Circulares, contendo também reflexões pedagógicas que transitam no campo das Humanidades, das Artes e da Saúde Pública. Trata-se de um produto cultural, que pretende ser um dispositivo provocador de novas ideias, práticas e caminhos para a construção de uma educação para as diversidades e para a paz. A Cultura de Paz que queremos ensina a reconhe­cer, valorizar e respeitar as riquezas culturais de todos os povos que constituem uma única huma­nidade em meio a tantas diversidades, sem trans­formá-las em desigualdades.
Esperamos que cada pessoa, educadora ou de outra formação profissional, construa novos conhe­cimentos em conjunto com autoconhecimento, que possa fortalecer, empoderar e inspirar, dando legiti­midade e criando oportunidades para a realização de novos projetos inter/transdisciplinares em que as Danças Circulares estejam presentes em seus am­bientes de trabalho e de convívio, em novas rodas de afetos, amizades, compreensões e aprendizados mútuos, com respeito e solidariedade numa Cultura de Paz. Gratidão a todos/as que estão nas rodas de Danças Circulares, es­palhadas nas escolas, parques, praças, universidades, centros de convivência, em espaços públicos e privados no Brasil e mundo afora, cultivando círculos para que mais pessoas possam aprender a dançar, corporificar, incorporar as diversidades culturais como cida­dãos e cidadãs dançantes em busca do estabelecimento da paz e do convívio saudável entre diferenças que constroem igualdade de direitos humanos com equidade e justiça como legado histórico e cultural para as futuras gerações.

Andrea Paula dos Santos Oliveira Kamensky
Professora Dra. da UFABC, Coordenadora do Projeto Gênero e Diversidade na Escola (GDE /UFABC), Professora Pesquisadora do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência – CESIMA/PUC-SP e do Núcleo de Estudos em História Oral – NEHO/USP


[1] In: KAMENSKY, Andrea Paula et alli (orgs.) CIRCULARIDADES – Danças Circulares e Diversidades Culturais: Educação para uma Cultura de Paz. Série Direitos Humanos, Gênero e Diversidade na Escola (GED-UFABC), vol.8. Apresentação. São Paulo: Editora Pontocom, 2016, p. 14-22.
[2] Professora Dra. da UFABC (Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo-São Paulo), Coordenadora do Projeto Gênero e Diversidade na Escola (GDE/UFABC), Professora Pesquisadora do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência – CESIMA/PUC-SP e do Núcleo de Estudos em História Oral – NEHO/USP.

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