Uma proposta
de construção de uma cultura de paz preconiza a não violência e a construção de
ambientes livres de opressão e dominação. Mas, desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, fortaleceu-se a noção de que o caminho para o estabelecimento de uma
cultura de paz não será construído a partir do chavão: “vamos colocar as
diferenças de lado” e exercer a “tolerância”. Pelo contrário, uma Cultura de
Paz precisa colocar em pauta todas as nossas subjetividades e diferenças,
buscando equidade na conquista de direitos humanos, realizando o exercício
permanente do aprender a ser diferente, compreender o outro, por meio de
criação e reinvenção de novas práticas culturais e sociais democráticas e
plurais.
As Danças
Circulares são um importante movimento artístico e cultural na atualidade que
vem desenvolvendo, em diversas regiões do mundo e sob diferentes óticas e perspectivas,
novas significações, apropriações e interpretações de seu legado histórico e de
suas práticas tradicionais e contemporâneas. Seja a partir de vivências e
perspectivas artísticas, culturais, terapêuticas, científicas, de saúde
preventiva ou pedagógicas, as Danças Circulares constituem-se também como
objetos de estudos e assumem centralidade em processos de ensino e aprendizagem
para públicos variados.
Nesse sentido,
as Danças Circulares, tal como são praticadas por milhares de pessoas e grupos
neste início do século XXI, abarcam uma multiplicidade de reflexões e práticas,
abrangendo aspectos diversificados da vida comunitária e de proposições quanto
ao cuidado de si e do outro. Num mapeamento de atividades e publicações nos
últimos anos, observamos que as Danças Circulares se popularizaram e, no
contexto atual, perpassam inúmeros espaços institucionais e independentes,
mobilizando a atuação de pessoas formadas em distintas áreas profissionais,
desencadeando estudos a partir de perspectivas teóricas e metodológicas inter e
transdisciplinares de vastos campos de conhecimentos.
Como exemplo,
temos estudos e/ou práticas que partem de sujeitos ligados às áreas de
Psicologia, Saúde Pública, Assistência Social, Neurociência, Gerontologia,
Medicina, História, Antropologia, Sociologia, Filosofia, Educação Física,
Pedagogia, Arte, entre outras. Isso significa que, por mais que o movimento das
Danças Circulares tenha uma história inicial, com protagonistas que as
conceberam com objetivos ligados à sua vida em comunidade e ao seu contexto
histórico no final do século passado, hoje, a sua expansão e seus
desenvolvimentos por pessoas e grupos muito diferentes em múltiplas localidades
envolvem dimensões amplas de diversidades culturais que proliferam e se
renovam constantemente.
As histórias e
experiências de sujeitos e coletividades em rodas de Danças Circulares não comportam
mais visões únicas e homogeneizadoras, nem enquadramentos fechados e
dogmáticos, muito menos tentativas de controle e de explicações consideradas
melhores ou mais verdadeiras sobre o que essas práticas representam para tantos
indivíduos e agrupamentos que cresceram e se espalharam mundo afora. A tônica
das Danças Circulares é, no início do século XXI, a da diversidade cultural.
Assim, as rodas de
Danças Circulares são lideradas por focalizadores/as com formação livre, autodidata
ou em educação formal, que imprimem em seus grupos características de sua
própria trajetória de vida e de seu repertório cultural e social. Há rodas
lideradas por pedagogas/os, educadores/ as populares, educadores/as físicos,
arte-educadores/as, psicólogas/as, médicos/as, enfermeiros/as, assistentes
sociais, gestores/as e administradores/ as, artistas populares, artistas plásticos/visuais,
bailarinos, atrizes/atores, professores/as de História, Geografia, Filosofia,
Arte, Sociologia, Ciências, Línguas e Literatura, que se unem eventualmente em
projetos e práticas interdisciplinares em espaços públicos e privados de
caráter educativo, de saúde, de assistência social, de cultura, de lazer e de
esporte, entre outros.
As rodas de
Danças Circulares são focalizadas e frequentadas por indivíduos que buscam
tanto um horizonte de aprendizados culturais e educacionais quanto um contexto
de promoção do esporte, do lazer, do bem-estar, da saúde, da qualidade de vida,
do convívio comunitário, do cuidado intergeracional (crianças, jovens, idosos)
ou de desenvolvimento humano e espiritual. A partir dessa realidade concreta,
os itinerários e percursos desses indivíduos nos grupos são fontes de
pesquisas, com estudos e trabalhos de campo, passíveis de interpretações com
aportes teóricos e metodológicos que provêm de diversas áreas do saber, não
apenas científicas ou culturais, mas também espirituais, profissionais e leigas,
que buscam compreender o fenômeno das Danças Circulares como dado complexo da
vida contemporânea, mobilizador de identidades individuais e coletivas.
Entendemos que
todas as contribuições para estudar e compreender o impacto das Danças
Circulares em nossa sociedade são igualmente importantes e ampliam nossa percepção
do que estas representam e significam para muita gente. Apesar de, num primeiro
momento, aparentar um discurso unificado e uma construção histórica comum e compartilhada
sobre seus propósitos e finalidades, as rodas podem ser totalmente diferentes,
conforme os locais em que acontecem, as pessoas que participam, as músicas e
coreografias que são trabalhadas, a organização de suas práticas por
profissionais de áreas disciplinares com conhecimentos e métodos muito
diferentes entre si.
Sabemos, pelos
estudos e práticas vivenciados ao longo dos anos, que as pessoas tomam contato
com as Danças Circulares e procuram participar de grupos de praticantes entre
as/os quais se sintam acolhidas, valorizadas, confortáveis e felizes, desenvolvendo
suas potencialidades afetivas, de sociabilidade, corporais e de muitos
aprendizados em temáticas tranversalizadas. Uma roda pode ser pouco
convidativa para uma determinada pessoa e, ao mesmo tempo, extremamente
atraente para outra, dependendo do equacionamento de fatores objetivos,
subjetivos e imponderáveis que, por vezes, mesmo as pesquisas e os estudos, por
mais dedicados que sejam, não poderão entender em sua complexidade, ainda mais
se tentarem encaixar tais práticas em modelos teóricos que simplificam,
homogeneízam e, assim, levam a tirar conclusões mais fechadas e mais fáceis de
elaborar. Há rodas de Danças Circulares predominantemente com crianças, ou
adolescentes, ou jovens, ou adultos ou pessoas idosas, mas também aqueles que
reúnem grupos intergeracionais, em que todas essas pessoas se misturam. Há
rodas com públicos mistos ou frequentadas apenas por mulheres; por pessoas de
determinadas práticas espirituais e religiosas; por pessoas com deficiências;
por pessoas de determinadas instituições educacionais (nos mais variados
níveis de ensino); culturais; de lazer e esporte; de saúde, etc.
O importante é
destacar que nesse panorama plural das Danças Circulares existem possibilidades
de se constituírem práticas sempre educativas, em torno da defesa e promoção
de uma cultura de reconhecimento e valorização de diversidades culturais para a
construção de relações e comunidades, que tenham como meta o convívio
respeitoso e pacífico, entre seres humanos, paradoxalmente iguais enquanto
espécie humana e diferentes como sujeitos singulares, históricos e culturais.
Com suas práticas culturais e corporais coletivas, as Danças Circulares trazem
à tona nossas diferenças sem intenção de transformá-las em desigualdades.
Através da linguagem e da cultura corporal dos/as próprios participantes
e de diversos povos espalhados no tempo e no espaço, surgem conhecimentos partilhados
por focalizadores/as, mediadores/as da roda, e por pessoas dançantes de várias
identidades culturais, políticas, socioeconômicas, geracionais, de gênero,
sexuais, étnico-raciais, religiosas.
O curso Gênero e
Diversidade na Escola (GDE), oferecido pela Universidade Federal do ABC (UFABC)
em parceria com o Ministério da Educação e a Prefeitura de São Paulo, teve como
um de seus principais objetivos teóricos e metodológicos a proposição da
compreensão e do convívio plural e democrático entre pessoas e grupos ligados
às diversidades para a promoção de uma Cultura de Paz nos ambientes escolares.
E, para tanto, trouxe para a prática pedagógica de formação docente as rodas de
Danças Circulares, que sensibilizaram e possibilitaram vivenciar com todo o
corpo a quebra de preconceitos e a compreensão efetiva e sensível,
corporalizada, do que significa conviver e aprender com as diversidades
culturais.
Ao longo do curso,
em nossos encontros presenciais, dançamos músicas de diversos povos, tradicionais
e contemporâneas, em diferentes focalizações como performances artísticas
realizadas para construir novos saberes em conjunto com os/ as participantes.
As linguagens artísticas da música e da dança tornaram-se, assim, novas pontes,
caminhos, trajetos possíveis para a mediação de conflitos e construção
cotidiana da Cultura de Paz. A Dança Circular, sempre presente, logo de cara
desconstrói nossas relações com o outro, elimina distanciamentos e visibiliza
nossas diferenças reconhecidas como diversidades ao nos colocar todos juntos,
de mãos dadas, olhando uns nos olhos dos outros e realizando danças coletivas
de diferentes culturas ao longo do tempo.
Desta forma,
as Danças Circulares mostram-se necessárias e poderosas não só no auxílio da
construção da Cultura de Paz, mas também nas reinvenções de nós mesmos em
diálogo e afetividade com o outro, evidenciando nossos corpos e nossas
diferenças que estão presentes e constituem todos os seres humanos, e que por
vezes estão suprimidas ou são apontadas de forma negativa. As Danças Circulares
derrubam atitudes e comportamentos simbolicamente desrespeitosos e violentos,
expressos em preconceitos velados e explícitos em nossos cotidianos no
ambiente escolar, de trabalho, familiar etc. que, infelizmente, perpetuam em
palavras e gestos muitas discriminações contra mulheres, populações negras e
indígenas, pessoas LGBT que expressam diversidades sexuais, pessoas de culturas
e regiões distantes, pessoas idosas, pessoas deficientes, enfim, pessoas de
grupos historicamente marginalizados, que compõem a beleza plural e a riqueza
cultural da humanidade. No círculo, aprendemos que somos iguais e diferentes,
que precisamos conviver e aprender uns com os outros, e que esse rico e novo
aprendizado pode ser prazeroso, alegre, lúdico, libertador, terapêutico e
transformador.
Para desenvolvermos e refletirmos sobre estas
questões e outras correlacionadas, elaboramos um volume dedicado à
sistematização e disseminação de algumas experiências com Danças Circulares e
Educação e promoção da Cultura de Paz, realizadas nos últimos anos em nosso
país.
( … )
Este volume foi
pensado como um repertório afetivo e criativo de linguagens artísticas, sobretudo
da dança e da música, com foco no movimento cultural das Danças Circulares,
contendo também reflexões pedagógicas que transitam no campo das Humanidades,
das Artes e da Saúde Pública. Trata-se de um produto cultural, que pretende ser
um dispositivo provocador de novas ideias, práticas e caminhos para a
construção de uma educação para as diversidades e para a paz. A Cultura de Paz
que queremos ensina a reconhecer, valorizar e respeitar as riquezas culturais
de todos os povos que constituem uma única humanidade em meio a tantas
diversidades, sem transformá-las em desigualdades.
Esperamos que
cada pessoa, educadora ou de outra formação profissional, construa novos conhecimentos
em conjunto com autoconhecimento, que possa fortalecer, empoderar e inspirar,
dando legitimidade e criando oportunidades para a realização de novos projetos
inter/transdisciplinares em que as Danças Circulares estejam presentes em seus
ambientes de trabalho e de convívio, em novas rodas de afetos,
amizades, compreensões e aprendizados mútuos, com respeito e solidariedade numa
Cultura de Paz. Gratidão a todos/as que estão nas rodas de Danças Circulares,
espalhadas nas escolas, parques, praças, universidades, centros de
convivência, em espaços públicos e privados no Brasil e mundo afora, cultivando
círculos para que mais pessoas possam aprender a dançar, corporificar,
incorporar as diversidades culturais como cidadãos e cidadãs dançantes em
busca do estabelecimento da paz e do convívio saudável entre diferenças que
constroem igualdade de direitos humanos com equidade e justiça como legado
histórico e cultural para as futuras gerações.
Andrea Paula dos
Santos Oliveira Kamensky
Professora
Dra. da UFABC, Coordenadora do Projeto Gênero e Diversidade na Escola (GDE /UFABC),
Professora Pesquisadora do Centro Simão Mathias de Estudos em História da
Ciência – CESIMA/PUC-SP e do Núcleo de Estudos em História Oral – NEHO/USP
[1] In: KAMENSKY, Andrea Paula et alli (orgs.) CIRCULARIDADES –
Danças Circulares e Diversidades Culturais: Educação para uma Cultura de Paz. Série
Direitos Humanos, Gênero e Diversidade na Escola (GED-UFABC), vol.8.
Apresentação. São Paulo: Editora Pontocom, 2016, p. 14-22.
[2] Professora Dra. da UFABC (Universidade Federal do ABC, São
Bernardo do Campo-São Paulo), Coordenadora do Projeto Gênero e Diversidade na
Escola (GDE/UFABC), Professora Pesquisadora do Centro Simão Mathias de Estudos
em História da Ciência – CESIMA/PUC-SP e do Núcleo de Estudos em História Oral
– NEHO/USP.
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