Por Redação – on 19/08/2018Categorias: Desigualdades, Destaques, Mundo
Diante do crescimento do populismo de direita em todo o mundo,
Nancy Fraser sustenta: há revolta positiva no ar; é preciso dar-lhe
sentido
Entrevista a Shray Mehta | Tradução: Inês Castilho
Quando emergem na cena política personagens como Jair Bolsonaro,
parte da esquerda tende a uma atitude defensiva. Em face de um perigo
corretamente associado ao fascismo e à violência, seria o caso de
preservar a normalidade do sistema institucional, e mesmo de convocar
alianças em seu favor. A repercussão que o discurso de ódio encontra
entre parcelas amplas da sociedade indicaria que é hora de refrear o
passo, até que a onda regressiva se esvazie.
Associada a um marxismo heterodoxo, a filósofa e feminista
norte-americana Nancy Fraser julga que esta atitude não afastará o
perigo — e pode, ao contrário, torná-lo maior. Uma visão particular
sobre o chamado “populismo de direita” a faz pensar assim. As maiorias,
crê Fraser, têm boas razões para se revoltar contra a ordem. Ao longo
das três últimas décadas, elas foram castigadas, na maior parte dos
países, pelo desmonte dos direitos sociais. Em muitos casos, partidos
associados à esquerda envolveram-se ativamente neste processo (no
Brasil, vale lembrar a adesão do segundo governo Dilma ao “ajuste
fiscal” proposto pela direita). Agora, há raiva e rancor. Enxergar os
que nutrem estes sentimentos como “fascistas” só agravará o cenário.
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O feminismo é, para Fraser, uma chave para encontrar outro
tipo de resposta. A crise global da esquerda está associada à transição
do capitalismo industrial ao financeirizado — e, portanto, à ineficácia
das antigas estratégias de resistência, que se baseavam na ação dos
trabalhadores organizados. Agora, o centro de geração de valor e
acumulação de riqueza do próprio sistema deslocou-se: já não é a
fábrica, mas a produção imaterial, que se espraia por toda a sociedade.
Não bastaria isso para enxergar a relevância (e a potência
transformadora) de formas de trabalho não-reconhecidas e
não-remuneradas, secularmente associdas às mulheres?
Como fazê-lo? Na entrevista a seguir, concedida em março
deste ano ao jornalista indiano Shray Mehta, Fraser oferece algumas
pistas. “O que necessitamos”, diz “é o que André Gorz chamou de
‘reformas não-reformistas’. Elas melhoram a vida das pessoas aqui e
agora, enquanto trabalham também numa direção contrassistêmica, em parte
por desestabilizar o equilíbrio do poder de classe em detrimento do
capital”. Porém, estas reformas, prossegue a filósofa, “não podem estar
focadas exclusivamente na produção e trabalho remunerado. Precisam,
igualmente, tratar da organização social da reprodução – a oferta de
educação, moradia, saúde, cuidado das crianças, cuidado dos idosos, meio
ambiente saudável, água, serviços, transporte, emissões de carbono – e o
trabalho não remunerado que sustenta as famílias e os laços sociais
mais amplos”.
Esta estratégia dá resultados concretos, mostra Fraser. A
Inglaterra é o exemplo eloquente. Lá, boa parte dos votos de rancor
dados ao Brexit, há dois anos, tem sido recuperada por Jeremy
Corbyn, líder rebelde do Partido Trabalhista, que propõe precisamente um
programa radical de recuperação e ampliação dos serviços públicos. Foi
esta postura, aliás, que desarmou o partido xenófobo (UKIP) — líder do
voto contra a União Europeia, mas hoje esvaziado e dividido.
E no Brasil: qual o melhor antídoto contra os Bolsonaro e os
Alckmin? A equação de Fraser sugere que talvez não seja uma esquerda
defensora da ordem — mas, ao contrário, capaz de desafiá-la por meio de
medidas distributivas e antissistêmicas bem mais profundas que as
praticadas pelo lulismo, em sua primeira experiência de governo. Fique, a
seguir, com as ideias da filósofa (A.M.)
Muito obrigado pela oportunidade desta conversa. O
mundo está assistindo a uma aumento alarmante de líderes populistas e o
padrão parece repetir-se com frequência em todo o espectro político,
não restrito apenas ao Norte ou ao Sul globais. Como se pode
contextualizar essa expansão do populismo como um momento histórico
mundial? Ele teria uma dinâmica sistêmica que vai além das nações e está
localizado na economia internacional e crise do capitalismo?
O populismo está situado numa dinâmica histórica mundial. Ele
sinaliza uma crise hegemônica do capitalismo – ou melhor, uma crise
hegemônica de uma forma específica de capitalismo que temos hoje:
globalizado, neoliberal e financeirizado. Esse regime suplantou a
variedade anterior, do capitalismo gerido pelo Estado, e dizimou todos
os ganhos que as classes trabalhadoras haviam conquistado no período
prévio. O populismo é, em grande medida, uma revolta dessas classes
contra o capitalismo financeiro e as forças políticas que o impõem. Para
entender a revolta, é preciso entender o bloco hegemônico anterior que
está sendo rejeitado. Eu chamei esse bloco de “neoliberalismo
progressista”. Como formação dominante, o neoliberalismo progressista
estava centrado nos Estados mais poderosos do Norte global, mas tinha
também postos avançados em outros lugares. Exemplos incluem o “Novo
Trabalhismo” de Tony Blair, na Inglaterra, o “novo” Partido Democrático
de Bill Clinton, nos EUA, o Partido Socialista na França, e os últimos
governos do Partido do Congresso, da Índia.
O que é específico do “neoliberalismo progressista” é que ele combina
políticas econômicas regressivas, liberalizantes, com políticas de
reconhecimento aparentemente progressistas. Sua economia política
baseia-se em “livre comércio” (que em realidade significa livre
movimentação do capital) e desregulamentação das finanças (que empodera
investidores, bancos centrais e instituições financeiras globais para
ditar políticas de “austeridade” para o Estado por meio de decretos e da
chantagem da dívida). Entretanto, seu lado de reconhecimento centra-se
na compreensão liberal do multiculturalismo, do ambientalismo e dos
direitos das mulheres e LGBTQ [lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros,
queer]. Inteiramente compatível com o neoliberalismo financeiro, essa
compreensão é meritocrática, oposta ao igualitarismo. Focados na
“discriminação”, eles buscam assegurar-se de que uns poucos indivíduos
“talentosos” de “grupos sub-representados” possam ascender ao topo da
hierarquia corporativa e alcançar posições e remuneração paritárias com
os homens heterossexuais brancos de sua própria classe.
O que não é mencionado, contudo, é que enquanto esses poucos “quebram
o teto de vidro”, todo o resto continua preso no porão. De fato, o
neoliberalismo progressista articulou uma política econômica regressiva
com uma aparente política progressista de reconhecimento. O lado
progressista de reconhecimento serviu como um álibi ao lado econômico
regressivo. Isso possibilitou ao neoliberalismo apresentar-se como
cosmopolita, emancipatório, inovador e moralmente avançado – em
contraste com as classes trabalhadoras aparentemente paroquiais,
atrasadas e incultas.
O neoliberalismo progressista foi hegemônico por umas duas décadas.
Encabeçando vastos aumentos da desigualdade, foi uma grande bonança para
o 1% global, mas também para o estrato gerencial profissional. Foram
atropeladas as classes trabalhadoras do norte, que haviam se beneficiado
da social democracia; os camponeses do sul, que sofreram desapropriação
renovada por dívida, em escala maciça; e um vasto precariado urbano no
mundo inteiro. O que se vem denominando populismo é uma revolta desses
estratos contra o neoliberalismo progressista. Ao votar em Trump, no
Brexit, em Modi (Índia) e no Movimento Cinco Estrelas na Itália, as
maiorias declararam que se recusam a continuar desempenhanado o papel
que lhes foi atribuído, de cordeiros de sacrifício, num regime que não
tem nada a lhes oferecer.
Os movimentos poulistas são frequentemente apresentados como
“fascistas”, assim que começam a articular suas demandas. Contudo,
quando vistos como uma articulação das preocupações populares contra a
apatia sistêmica, surge um cenário mais complexo. Por exemplo, a
ascensão de Trump está baseada até certo ponto no apoio de uma base
eleitoral que é apressadamente descartada como “homens brancos
racistas”, embora possam ter votado em Obama nas duas últimas eleições.
Num outro contexto, na Índia, a ascensão do nacionalismo hindu é taxada
de fascista sem vê-la na perspectiva histórica, de reação às políticas
neoliberais dos governos anteriores, do Partido do Congresso. Como
perceber essa rejeição completa das preocupações populares no discurso
público, por um lado, e a rotulagem da reação popular como fascista?
Concordo com sua visão nesse assunto. O liberalismo tem uma longa
história de tentar deslegitimar a oposição a ele – estigmatizando seus
opositores como, por exemplo, “stalinistas”, “fascistas”, o que seja.
Isso é certamente o que está acontecendo agora com relação ao termo
“populismo”. Essa palavra é hoje amplamente usada pelos liberais para
desqualificar como ilegítimas as forças populares que estão se rebelando
contra seu domínio. Mas você está certo, é uma tática defensiva por
parte dos defensores do “neoliberalismo progressista”. Ao estigmatizar a
oposição, eles esperam ressuscitar seu projeto. Nos Estados Unidos,
estão procurando desesperadamente um novo líder, com mais apelo que
Hillary Clinton, sob o qual possam restaurar uma nova versão do
neoliberalismo progressista. Essa é a agenda de uma grande parcela da
“resistência” anti-Trump. Não conheço o suficiente da política indiana
para ter certeza, mas imagino que o Partido do Congresso está usando
tática semelhante na esperança de retomar o poder.
Eu certamente jamais endossaria Trump ou Modi [o presidente da Índia]
– isso é óbvio. Todavia, não estou infeliz com o fato de que quem foi
massacrado pelo “neoliberalismo progressista” levante-se contra ele. Em
alguns casos, é claro, a forma que esta rebelião assume é problemática.
As populações frequentemente equivocam-se quanto à verdadeira causa de
seus problemas, e fazem de bode expiatório os imigrantes, muçulmanos,
negros, judeus e outros. Mas é contraprodutivo simplesmente
desqualificá-los como racistas e islamofóbicos irredimíveis. É tolo
assumir, de saída, que não há qualquer possibilidade de ganhá-los para a
esquerda, seja para o populismo de esquerda ou para o socialismo
democrático.
Além disso, a ideia de que todos esses eleitores não passam de
racistas de carteirinha não bate com os dados. Nos EUA, como você disse,
8,5 milhões de pessoas que votaram para Obama em 2012 mudaram de
posição e votaram em Trump em 2016. Muitos deles eram pessoas da classe
trabalhadora em comunidades do “cinturão de ferrugem”, que sofreram
maciçamente com a desindustrialização, precarização e uma grande
epidemia de adição a opiáceos, orquestrada pela indústria farmacêutica.
Foram eles que entregaram a presidência para Trump. Em ambas as
eleições, 2012 e 2016, votaram contra a economia neoliberal – primeiro
para Obama, que fez campanha à esquerda, adotando a retórica do “Ocuppy
Wall Street”, e depois para Trump, cuja campanha baseou-se não somente
no reconhecimento excludente, mas também na economia populista. O que
isso mostra é que as questões identitárias não estavam, na mente desses
eleitores, acima de tudo. Nessas questões, eles foram bastante volúveis,
agindo de diferentes maneiras, conforme as opções oferecidas. Ao
contrário, foram consistentes na rejeição da terceirização, “livre
comércio” e financeirização; no apoio à proteção social, pleno emprego e
salários dignos. O mesmo é verdade, aliás, no Reino Unido. Muita gente
da classe trabalhadora do norte da Inglaterra que votou a favor do
Brexit apoia agora, fortemente, Jeremy Corbyn. Na França também, houve
grande troca de votos, de um lado pro outro, entre a Frente Nacional [de
ultra-direita] e o candidato de esquerda, Jean-Luc Mélenchon.
Meu ponto é que todos esses eleitores (e outros!) têm queixas
legítimas contra o neoliberalismo progressista. Ao invés de
desqualificá-los como racistas, a esquerda deve validar suas críticas.
Ao invés de assumir que eles não têm jeito, devemos partir da premissa
de que muitos eleitores populistas à direita podem ser, em princípio,
conquistados pela esquerda. Precisamos atraí-los, validando suas queixas
e oferecendo-lhes uma análise alternativa da verdadeira causa de seus
problemas e uma proposta alternativa para resolvê-los.
Sobre oferecer uma explicação e uma visão alternativas, não é
a primeira vez que ocorre essa troca de eleitores entre a esquerda e a
direita. Sabemos que há precedentes históricos. A direita é capaz de
estabelecer nexos casuais entre os problemas sistêmicos e grupos sociais
tais como judeus, muçulmanos ou imigrantes, para sugerir que
transformá-los em alvos pode resolver os problemas de emprego – isso tem
apelo para as pessoas. Ainda que a esquerda tente intervir, a visão
alternativa parece muito utópica para as pessoas. Você sente que ainda
há uma lacuna crucial, na esquerda, com relação a isso?
Sim, eu concordo. Há com certeza uma lacuna programática na esquerda.
Isso se deve em parte ao fim do comunismo soviético, que teve o infeliz
efeito de deslegitimar não apenas aquele regime esclerosado, mas também
ideias de socialismo e igualitarismo social em geral. A atmosfera
resultante beneficiou grandemente os neoliberais, enquanto intimidava e
desmoralizava a esquerda.
Mas isso não é toda a história. Nesse clima, uma parte significativa
do que poderia ter sido uma opinião à esquerda foi direcionada para o
liberalismo. Pense por exemplo no feminismo liberal, no anti-racismo
liberal, no multiculturalismo liberal, no “capitalismo verde” etc. Essas
são as correntes dominantes, hoje, de parte dos novos movimentos
sociais, cujas origens foram, se não diretamente à esquerda, ao menos
esquerdizantes ou proto-esquerdistas. Hoje, porém, falta-lhes até mesmo a
mais pálida ideia de uma transformação estrutural ou uma economia
política alternativa. Longe de buscar a abolição da hierarquia social,
sua mentalidade está voltada a atrair mais mulheres, gays e não-brancos
para os altos escalões. Certamente, nos EUA mas também em outros países,
a esquerda foi colonizada pelo liberalismo.
A meu ver, o melhor caminho para reconstruir a esquerda é ressuscitar
a velha ideia de um “programa socialista de transição” e dar a ele um
novo conteúdo, apropriado ao século 21. Hoje, não podemos começar
dizendo às pessoas que vamos socializar os meios de produção e em
seguida elas terão empregos seguros e bem pagos. Essa retórica está
vencida. O que necessitamos, ao contrário, é o que André Gorz chamou de
“reformas não-reformistas”. Elas melhoram a vida das pessoas aqui e
agora, enquanto trabalham também numa direção contrassistêmica, em parte
por desestabilizar o equilíbrio do poder de classe em detrimento do
capital. Além disso, essas reformas não podem estar focadas
exclusivamente na produção e trabalho remunerado. Elas precisam,
igualmente, tratar da organização social da reprodução – a oferta de
educação, moradia, saúde, cuidado das crianças, cuidado dos idosos, meio
ambiente saudável, água, serviços, transporte, emissões de carbono – e o
trabalho não remunerado que sustenta as famílias e os laços sociais
mais amplos.
Embora longe da perfeição, a campanha de Bernie Sanders nos EUA teve
algumas ideias que apontavam nessa direção. Acima e além do aumento do
salário mínimo para 15 dólares a hora, Sanders fez campanha pelo
“Medicare para todos”, ensino universitário gratuito, reforma da justiça
criminal, liberdade reprodutiva e a quebra dos grandes bancos – tudo
isso ligado ao emprego. Suas ideias não foram inteiramente
desenvolvidas, é certo. E elas são possivelmente mais social democratas
do que democráticas socialistas. Mas representam a primeira inspiração
de uma alternativa populista à esquerda, nos EUA.
A esquerda precisa também pensar sobre finanças e bancos. Um dos
pesadores mais interessantes nesse assunto é Robin Blackburn, que
defende que as finanças deveriam tornar-se um bem público, como
costumava ser a eletricidade — o que significa que devia pertencer a
todos e ser alocada publicamente. Decisões sobre crédito, onde investir e
quais projetos financiar deveriam ser tomadas com base não na taxa de
retorno, mas no valor e utilidade social. E deveriam ser tomadas
democraticamente – por meio de conselhos eleitos, encarregados de
representar as comunidades e outras partes interessadas. Essa é uma
ideia muito interessante, porque precisamos, é claro, de um sistema de
crédito. Abolir os bancos e instituições financeiras globais não é a
resposta. O que é necessário, ao invés disso, é socializar as finanças.
Aliás, esses são tempos perfeitos para desenvolver um programa de
esquerda para as finanças. Muita gente está agora aberta para esse
problema. Afinal, era exatamente este o ponto do Occupy Wall Street.
Todo mundo sabe que os circuitos de investimento que causaram a crise
estão de volta a seus velhos truques e que nada foi feito no sentido de
uma reforma estrutural para prevenir um derretimento global, no futuro
próximo. Os norte-americanos estão bem conscientes de que Obama usou os
impostos para socorrer os bancos, cujos esquemas predatórios quase
derrubaram a economia global — mas não fez nada para ajudar as 10
milhões de pessoas que perderam sua casa na crise de execução das
hipotecas. Não há dúvidas de que muitos estão abertos a repensar esse
sistema. Nessa questão, nem a direita nem o centro têm nada a oferecer,
de modo que é uma grande oportunidade para a esquerda.
Gostaria agora de debater algumas preocupações teóricas. No seu artigo “A morada escondida de Marx” (“Marx’s HIdden Abode”), na New Left Review,
você argumentou longamente sobre como o valor é produzido não apenas
pelo trabalho produtivo, mas também pelo trabalho não remunerado. Este
último seria o que, na verdade, suporta e sustenta o primeiro. A
certa altura você sugere que uma parte da expansão do capitalismo é o
“potencial emancipatório do capitalismo”. Esse “potencial emancipatório”
é um tema muito debatido no pensamento marxista. Argumenta-se que
frequentemente o trabalho não livre é ainda mais aprisionado, na
dialética da “dupla liberdade” do capitalismo. Nesse contexto, como se
pode entender o potencial emancipatório do capitalismo no que diz
respeito ao trabalho não livre?
A expressão “dupla liberdade” é irônica. O lado positivo tem a ver
com o fato de podermos circular e termos o direito de aceitar
“voluntariamente” um contrato de trabalho. Mas, como você sabe, ela
carrega um outro lado. Ao tornar-se livre para vender sua força de
trabalho, uma pessoa também livrou-se de – quer dizer, foi privada de –
ter acesso aos meios de subexistência e aos meios de produção. Marx
ressaltava que os proletários haviam sido “libertos” do acesso à terra,
ferramentas, matérias primas e outros bens de que necessitariam para
organizar seu próprio trabalho e satisfazer suas necessidades. Em
consequência, não têm escolha senão aceitar um contrato de trabalho com
um capitalista. O lado bom da liberdade está severamente comprometido,
quando não é simplesmente ilusório.
A liberdade no capitalismo é de fato uma faca de dois gumes. Se
alguém é escravo ou servo, a possibilidade de tornar-se um trabalhador
remunerado é certamente um passo adiante, como o próprio Marx
frequentemente ressaltava. Mas isso não significa que essa pessoa se
torne livre num sentido completo e robusto. Ao contrário, o proletariado
torna-se sujeito de dominação. De modo que eu não superestimaria o
potencial emancipatório do capitalismo, mas também não o ignoraria.
O ponto focal, contudo, é outro: o capitalismo não é um sistema
uniforme. Ele não trata todo mundo do mesmo modo ao mesmo tempo. Mesmo
quando “emancipa” alguns da dependência e trabalho forçado,
transformando-os em proletários duplamente livres, ele deixa outros –
muitos outros, de fato – em contextos e formas de dominação
tradicionais. Ou, ainda, transforma aquelas formas e contextos
tradicionais em formas novas, frequentemente muito opressivas.
De fato, argumentei recentemente, na palestra Contribuições ao
Conhecimento Contemporâneo, que a exploração de “trabalhadores livres”
está intimamente ligada — depende, na verdade — da expropriação de
“outros” dependentes. O que quero dizer com expropriação é o sequestro
de bens de pessoas subjugadas (seu trabalho, terra, animais,
ferramentas, crianças e corpos) e o afunilamento desses bens
sequestrados em circuitos de acumulação de capital. Compreendida dessa
maneira, a expropriação difere nitidamente da exploração. A exploração é
mediada por um contrato salarial: o trabalhador explorado troca
“livremente” sua força de trabalho por salários que supostamente cobrem
os custos sociais médios necessários a sua reprodução. A expropriação,
ao contrário, dispensa a folha de parreira do consentimento e toma
brutalmente propriedade e pessoas, sem contrapartida – seja por força
militar ou por dívida. Minha visão é como a de Rosa Luxemburgo e David
Harvey: a exploração por si só não poderia sustentar a acumulação de
capital ao longo do tempo. Esta depende, antes, de contínuos movimentos
de expropriação. Então, os dois “ex” estão interligados. E é o processo
combinado de exploração e expropriação que cria o valor excedente.
Essa ideia é lindamente ilustrada numa frase de Jason Moore, relativa
ao início da industrialização. Ele diz, “Atrás de Manchester fica
Mississippi”. Isso significa que a indústria têxtil altamente rentável
de Manchester, sobre a qual Engels escreveu, não seria rentável sem o
algodão barato fornecido por meio do trabalho escravo das Américas. Sou
tentada, por sinal, a acrescentar um terceiro M — para Mumbai, para
assinalar o importante papel desempenhado no crescimento de Manchester
pelo destruição calculada da manufatura têxtil da Índia pelos
britânicos. Este é um caso em que a expropriação é condição para a
possibilidade de exploração lucrativa. O capitalismo joga um jogo duplo
com as pessoas, encaminhando alguns à “mera” exploração e condenando
outros à brutal expropriação — uma diferença que historicamente tem sido
associada com império e raça. De modo que eu rejeito a alegação, com
frequência atribuída a Marx, de que o valor é produzido apenas pelo
trabalho assalariado. Há muitos outros fatores não assalariados no
processo, inclusive o trabalho social-reprodutivo das mulheres, sem o
qual o trabalho assalariado não seria possível.
Para aprofundar isso, você poderia por favor explicar essa
dinâmica do potencial emancipatório do capitalismo tendo em mente as
economias “periféricas”? Você acha que pode-se continuar a pensar nelas
como periféricas, num contexto do neoliberalismo que parece prover
liberdade completa ao capital, ao restringir o trabalho em bases
nacionais?
O conceito de “centro e periferia” faz menos sentido agora do que fez
em períodos anteriores, mas estamos ainda lutando para encontrar uma
alternativa satisfatória. Defensores da teoria de sistema-mundo falam de
países semiperiféricos com estratégias para subir os degraus da escada
de valor agregado baseados na produção de commodities. Mas mesmo isso
não é inteiramente adequado para uma situação em que a indústria está
sendo realocada em escala maciça. Dado o peso das economias de países
como os membros do BRICS, é difícil chamá-los de “semiperiféricos”,
quanto mais de periféricos. O que complica a situação ainda mais é que, a
despeito de seu peso econômico, os países dos BRICS não estão (ainda?)
em posição de afirmar-se como potências globais no cenário mundial. Ao
contrário, uma potência econômica decadente (os EUA) ainda desempenha o
papel de hegemonia global, a despeito de sua credibilidade moral que
desaba e a mudança em seu status para uma nação devedora. Ainda não
sabemos aonde tudo isso leva — e depende muito da China. Mas embora as
coisas funcionem assim, precisaremos desenvolver um novo vocabulário e
enquadramento para apreender a nova situação histórica.
Ainda assim, uma coisa já está clara: tem havido uma tremenda mudança
no relacionamento entre exploração e expropriação no capitalismo
financeiro. Isso ocorre em grande parte graças à realocação da indústria
para longe de seu centro histórico e à universalização da expropriação
pela dívida. Este último fator é óbvio no caso da desapropriação de
terras e dos programas de ajuste estrutural, que impõem
condicionalidades de empréstimo aos países do Sul global. Governos de
todo lugar, da América Latina à África e à Grécia tiveram de cortar
gastos sociais e abrir seus mercados ao capital estrangeiro,
vampirizando seu povo para o benefício do capital. Nesses casos, a
dívida é um veículo de expropriação na (ex) periferia e semiperiferia,
mesmo que essas regiões também estejam se tornando locais primários de
exploração.
Ao mesmo tempo, a expropriação está aumentando no “centro” histórico.
À medida em que o trabalho precarizado e de baixos salários nos
serviços ultrapassa o trabalho industrial sindicalizado, o capital paga
seus trabalhadores menos do que o custo socialmente necessário para sua
reprodução. No entanto, ainda precisa que esses trabalhadores cumpram o
duplo dever como consumidores. Então, o que fazer? A solução é aumentar a
dívida dos consumidores, que permite às pessoas comprar coisas baratas
produzidas em outros lugares. Aqui, também, a expropriação alimenta
aqueles que também são explorados em “McEmpregos”.
Ou seja, estamos diante de uma nova constelação, que mistura a velha
divisão exploração/expropriação. A maior exploração costumava ocorrer no
centro histórico, enquanto a maior parte das expropriações era feita na
ex-periferia. Não é mais o caso. Agora os dois ex não formam um ou/ou,
mas um ambos/e. Não mais alternativas mutuamente excludentes, eles
encontram-se em grande proximidade; frequentemente as mesmas pessoas são
submetidas a ambas.
Você perguntou sobre as implicações disso para a emancipação. Essa é,
a meu ver, a questão chave para a esquerda em nossos tempos. O que se
segue, politicamente, ao fato de que o capitalismo não mais atribui a
exploração a um grupo social ou região e a expropriação a outro grupo ou
região? Quanto era assim, os cidadãos-trabalhadores “livremente”
explorados do centro podiam dissociar facilmente seus objetivos e lutas
daqueles sujeitos subjugados, racialmente expropriados da periferia. E
isso enfraquecia as forças da emancipação, pois permitiam o
dividir-para-governar. Agora, contudo, quase todo mundo está sendo
simultaneamente explorado e expropriado. Então, parece que a base
material para aquelas divisões políticas intra-classe-trabalhadora está
desaparecendo. Em teoria, isso poderia abrir perspectivas para alianças
novas e ampliadas. Se aqueles que sofrem podem agora entender que
exploração e expropriação são elementos — analiticamente distintos, mas
praticamente enlaçados — de um único sistema capitalista, o qual é a
própria causa raiz da maioria de seus sofrimentos, então podem concluir
que compartilham um inimigo comum e deveriam unir forças. Mas esse
resultado não é nem automático, nem assegurado. Por ora, ao menos, as
mudanças associadas ao capitalismo financeiro estão gerando paranoia e
ansiedade, que conduzem a formas exacerbadas de chauvinismo, inclusive
nos populismos de direita que discutimos no início.
Na verdade, fechamos agora um círculo completo nesta conversa. Mas
devo ressaltar novamente agora o que disse antes. Ainda que
solidariedades ampliadas não sejam geradas automaticamente, pelo simples
fato de que ocorreu uma mudança estrutural, elas ainda podem ser
criadas politicamente, através de intervenções políticas de esquerda.
Estas, como disse antes, precisam rejeitar firmemente os jogos
táticos-assustadores que o liberalismo desempenha com a palavra
“populismo”. Sem medo dessa palavra, e determinados a conquistar aqueles
que estão agora atraídos por suas variantes de direita, devemos montar
nossa própria crítica de esquerda estrutural-sistêmica do neoliberalismo
progressista e nossa própria visão transformadora de uma alternativa
emancipatória. Rompendo definitivamente tanto com a economia neoliberal
quanto com as várias políticas de reconhecimento que ultimamente lhe
deram suporte, devemos abandonar não apenas o etnonacionalismo
excludente, mas também o individualismo liberal-meritocrático. Somente
unindo uma política de distribuição fortemente igualitária a uma
política de reconhecimento substancialmente inclusiva, sensível à
classe, podemos construir um bloco contra-hegemônico capaz de nos levar
além da crise atual, em direção a um mundo melhor.
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Esta entrevista foi realizada em março de 2018, quando Nancy Fraser
foi convidada pelo Departamento de Sociologia da Universidade do Sul
Asiático para fazer uma palestra sobre “Raça, Império, Capitalismo:
teorizando os nexos”.
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Shray Mehta é um acadêmico do Departamento de Sociologia da Universidade do Sul Asiático, em Nova Deli.
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